Por quem os sinos dobram?
Por Rafael Kafka
A cena final de Por quem os sinos dobram mostra Robert
Jordan, prestes a morrer por uma ideia, escondido pronto para matar um oficial
do exército franquista, um gesto simbólico que para seu grupo de guerrilheiros
representa muito: ferir uma figura de alto escalão era visto como um duro golpe
contra um exército muito mais bem equipado em número e em recursos materiais. A
cena em si não mostra o momento da morte, mas não precisa. Ela está ali no
romance o tempo todo, no ritmo seco e pujante de Ernest Hemingway, cuja
reflexão central no enredo parece ser o luto inerente à própria guerra.
O terror existente nos conflitos
bélicos é justamente o fato de estarmos diante da certeza de que do outro lado
das trincheiras há também seres humanos. Matá-los é de certa forma matar a si
mesmo, pois estamos matando um pouco da humanidade. Jordan, cuja missão no
livro é destruir uma ponte importante para o exército de Franco, aos poucos se
apercebe disso e chega a demonstrar relutância diante da missão a que foi
confiado. Ainda assim, chega ao momento da explosão, quando algumas coisas saem
erradas e ele precisa encarar a dura certeza de que morrerá na guerra civil
espanhola.
Na cena em questão, Jordan está
prestes a matar Berrendo, oficial franquista que demonstra profunda humanidade
no momento em que Hemingway relata a morte do grupo de El Sordo, outro
importante braço guerrilheiro da resistência. Berrendo não assume a postura
mecânica e cruel de outro oficial morto pelos guerrilheiros, cuja posição ele
assumirá após o dito conflito. Assim, o oficial com espírito profundamente
cristão que ora pelos inimigos acaba servindo para o autor mostrar como do
outro lado do campo de batalha há seres que assim como os republicanos lutam
por uma causa, não sendo necessariamente criaturas sanguinolentas e demoníacas.
Tal fato acaba se mostrando
bastante provocativo nos tempos atuais, quando cada vez mais nos vemos com
pessoas normais defendendo ideais fascistas. Devemos entender o caos ao nosso
redor como um convite do medo ao ódio: a violência leva muitos de nós à defesa
de posições extremas do fortalecimento estatal no sentido de garantir a
segurança pública. Temos a impressão de que a escola não funciona na sua missão
de tornar os cidadãos em “pessoas de bem” que se contentem em procurar empregos
com baixo rendimento e a viverem uma vida de trabalho duro e honesto. O
fascismo usa do medo para convencer os cidadãos de que o discurso em prol dos
direitos humanos é uma falácia gigantesca e devemos usar a rigidez e da força
para garantir a paz pública.
Há os ideólogos do fascismo, os
quais se usam sem receio do temor dos seres humanos para gerar raiva e
ressentimento. Esses devem ser combatidos, pois suas ideias são assassinas.
Porém quando na guerra cidadãos comuns passam a defender seus posicionamentos
nos vemos diante da crueldade da realidade humana em sua essência mais crua e
visceral: estamos matando humanos, irmãos. Assim, os sinos dobram não apenas
pelos mortos, mas também por quem mata, pois este se vê destituído em grande
escala de sua própria humanidade.
No romance há uma longa cena em
flashback na qual Pilar, uma guerrilheira, relata a tomada de determinada
cidade e a morte por espancamento de diversos fascistas pelos soldados da
resistência. Em dado momento, Pilar mostra como o ódio dos guerrilheiros se
torna tão intenso que chega a lhe causar náuseas e o ato dos seus pares se
torna monstruoso aos seus olhos. A guerra nos embrutece e em nomes de ideias
cometemos crimes ferozes.
Mas Hemingway não parece usar
este argumento como convite a uma mera luta no campo das ideias. Na obra, fica
nítido que a guerra é provocada por quem busca usar do poder para torturar,
matar e sacrificar a liberdade humana. A dor da guerra, de matar inimigos que
na verdade são humanos como nós, está justamente nessa necessidade de
resistência. A guerra nada mais é do que a política com armas, como diria
Foucault em seu Em defesa da sociedade.
Na verdade, Por quem os sinos dobram assume um ar em nenhum momento moralista.
O tom seco do autor deixa os fatos praticamente falarem por si, como um bom filme
realista faria. Diante de nós há o terror da guerra, algo a ser lamentado,
vilipendiado. A cena final é emblemática, pois temos os dois lados contrapostos
e por um momento aquele que defende a posição mais humanitária, a república,
está na posição de assassino, ainda mais se lembrarmos que Berrendo é um bom
cristão o qual respeita os soldados de seu batalhão. Jordan e Berrendo se
mostram como seres igualados nesse momento deixado em claro pelo escritor, como
evidenciando com toda sua crueza o absurdo da existência e da morte.
Na guerra cotidiana de todos os
dias, a narrativa acaba nos revelando como muitas vezes nos fechamos em um
posicionamento nosso e paramos de ouvir o outro, vendo-o como uma
monstruosidade. O livro causa no leitor essa estranha sensação de reconhecer no
outro um similar que assim como nós defende seus posicionamentos. Tal estranha
sensação é o pensamento acerca da imprecisão onde começa e termina o debate de
ideias e os crimes de ódio contra a humanidade.
Destarte, a história de Jordan é
de uma interpretação paradoxal, pois nos causa um estranho sentimento de termos
muito a dizer, mas não conseguirmos, pois os fatos falam por si. Mesmo os
monólogos são profundamente narrativos e as ações das personagens coordenam o
enredo bem como a nossa visão sobre elas. O paradoxo existente nessa leitura
nos remete aos nossos dias quando parece estarmos cada vez mais afundados em
uma guerra e na qual o fascismo cresce a cada dia e não sabemos bem como
enfrenta-lo. Talvez o primeiro passo seja reconhecer que os sinos dobram por
todos nós e que de alguma forma é preciso ouvir o seu troar para começar a
agir, vendo o outro não como monstro, mas como humano que de alguma forma
precisa ser salvo de ideologias nefastas que o robotizam.
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