Introdução aos Poemas árticos
Por René de Costa
Poemas árticos é o exemplo mais precoce
de literatura vanguardista em língua espanhola e, porque contém poemas curtos,
foi o volume mais acessível aos leitores pouco familiarizados com a nova estética.
Seus poemas foram lidos e relidos, estudados e imitados por toda uma geração de
jovens espanhóis dispostos a aceitar tudo o que era novidade. Os que não podiam
comprar o livro copiavam a mão. Entre estes entusiastas, alguns, como Antonio
Machado, se sentiram perturbados pelas imagens extravagantes de Huidobro,
enquanto outros, como Gerardo Diego, viram nelas uma nova possibilidade para a
poesia lírica (Cf. Antonio Machado, 1957). Juan Larrea, que foi um dos logo convertidos,
recorda que, quando Gerardo Diego regressou de Madri em maio de 1919, “trazia
escritos na mão três poemas de Vicente Huidobro, que acabava de copiar do livro
Poemas árticos”. Para Larrea, estes
poemas eram decisivos: “Impressionou-me a novidade de tal maneira que a partir
desse dia comecei a me sentir outro” (1979, p.217-218). Um desses poemas era “Lua”:
Estávamos
tão longe da vida
Que o vento
nos fazia suspirar
A LUA SONHA COMO UM RELÓGIO
Inutilmente
temos fugido
O inverno
caiu em nosso caminho
E o passado
cheio de folhas secas
Perde a
trilha da floresta
Tanto fumamos sob as árvores
Que as amendoeiras exalam tabaco
Meia-noite
Sobre vida
distante
Alguém chora
E a lua
esqueceu de dar a hora*
O que mais
impressionava Larrea era a atmosfera, como de outro mundo, do poema, e particularmente
o aspecto intrigante do falso símile em torno do qual parece tudo ser
organizado: “A LUA SONHA COMO UM RELÓGIO”. Só depois de pensar sobre o poema e
de analisar o funcionamento de suas imagens, consegue decodificar a comparação:
o disco da lua cheia é tomado pelo rosto iluminado de um relógio de igreja; vai
caindo a noite e a lua-relógio não dá a hora. Para um leitor atento como
Larrea, o poema é desorientador apenas momentaneamente, e é aí que está seu
encanto. Um leitor menos atento ficaria excluído do poema, desterrado
totalmente de seu sistema privado de associações.
E este é o
tipo de problema que preocupava Juan Gris em Poemas árticos, seu hermetismo intermitente e a natureza forçada de
algumas de suas imagens. Isto fica explicitado numa carta (Beaulieu-près-Loches,
15-X-18) de Gris a Huidobro:
“Sobre teus
livros devo primeiro dizer-te sobre o grande prazer que me causou tua
dedicatória [‘A Juan Gris e Jacques Lipchitz, recordando nossas conversas vésperas
naquele rincão da França’] e em seguida a grande emoção poética que tive lendo sobretudo
os Poemas árticos. Deles se dégage algo que não existe por exemplo
no livro de Juan Ramón que me enviaste. O lirismo e a poesia que é tão raro
encontrar e que é o único que me interessa. E agora como sou teu amigo e como
repetidas vezes me pediste passo a fazer a crítica deles. Considero Poemas árticos superior a Equatorial ou pelo menos os compreendo melhor, possuo-os melhor por
serem mais familiar. O outro é para mim demasiado grandioso e não cheguei ainda
a penetrá-lo melhor. Os dois são seguramente melhores que Horizon carré, mas... Desde então tenho aqui refletido muito sobre
certas coisas e se antes admitia certos meios literários que tu utilizas, agora
não os admito; me explico melhor: há em tuas produções um certo desejo pelas
imagens que é exagerado e que impõe força a teus poemas e a verdadeira imagem
emotiva. Assim quando escreves nuvens hidrófilas fazes uma imagem engenhosa mas
seca e não poética, mas quando escreves, passaram as nuvens dançando para
oriente dás uma emoção, enquanto que o elevador como um búzio não tem outra
base que tua pura engenhosidade. Vês como todas as imagens fortes de teu livro
têm uma base sólida e comum. O inverno vem etc. (cemitério frio). Preso a um
barco etc. (preso ao seu destino) e nada mais vulgar que um lenço que seca ao
sol ao qual podes associar a lua. Seguramente, mais vale um adjetivo bom que
uma imagem não emotiva e engenhosa e uma considerável touffe de Mallarmé vale mais que uma imagem forçada”.
Huidobro
teve a sorte de contar com a crítica sincera de uma mente tão aguda como a de
Gris. Mas a arte estava se afastando do tipo cerebral do cubismo sintético
preferido por Gris; e o Dadá, com seu gosto pelas metáforas chamativas
“achadas” como por acaso, estava no ar, especialmente na Espanha, onde Picabia
havia regressado para conseguir 391.
Huidobro também se moveria nesta direção, ainda que por pouco tempo. Mas logo,
seus livros de 1918 devem ser considerados dentro do marco do cubismo
literário, um cubismo algo heterodoxo como sugere a crítica de Gris, mas
possuidor de uma imaginação que, embora extravagante, não era o resultado de um
processo casual, mas de uma invenção criativa do poeta. De fato, o que se passava com a poesia de Huidobro – e isto é algo que Gris captou totalmente
– era que, enquanto o poeta abandonava a ideia do poema pictórico à maneira de
“Paysage” por seu caráter essencialmente estático, começou a cultivar um novo
tipo de dinamismo textual baseado no princípio de que um poema se lê começando
pelo começo e digerindo-se até o final.
Mais que collage de palavras, um poema é na
realidade uma sequência verbal. De maneira similar, um livro é uma sequência de
textos. Em Poemas árticos, acontece
que um texto gera outro, e não dentro de um padrão rigidamente estruturado, mas
de maneira intertextual. Um poema como “Lua”, por exemplo, se relaciona com
outro, anterior no livro, intitulado “Lua ou relógio” no qual evoca uma cena noturna:
“Depois no vale sem sol / um mesmo ruído / a lua e o relógio”.
Muitas são
as imagens desse tipo em Poemas árticos,
imagens que, por força da repetição, perdem seu hermetismo e adquirem sua
significação mais plena apenas no contexto global do livro. Imagens, por exemplo,
de cigarros que brilham no escuro geram toda uma família de associações luminescentes
que servem para aproximar o distante ou distanciar o próximo. De maneira semelhante,
o tempo pode perder sua intangibilidade para adquirir corporeidade através de
uma relação implícita com a forma oval de um relógio de areia: “Os frutos que caem
são ondas / e as horas também”. Estes versos do poema “Donjon” podem ser
considerados reflexos de outros poemas
e, aliás, servem para esclarecer a imagem final de “Horas”, o primeiro poema do
livro:
A aldeia
Um trem
parado sobre a planície
Em cada poça
dormem estrelas
surdas
E a água
tremula
Cortinados
ao vento
A noite suspensa
no bosque
No
campanário florido
Uma goteira
viva
Sangra as estrelas
De quando em
quando
As horas
maduras
Caem sobre a vida
Neste caso é
a palavra “madura” a que desperta as associações entre a fruta e o tempo. De
maneira semelhante, alguns versos de “Cigarro” podem ser evocados para iluminar
a enigmática imagem central da noite “suspensa no bosque”: “Aquilo que cai das
árvores / É a noite”. A linguagem se torna elástica ao longo de Poemas árticos para tornar possível na
imaginação do leitor aquilo que não existe na realidade.
Em “Horas”
estamos diante uma sequência estática. Os verbos são usados para deter a ação
ou, alternadamente, para dar a cena a ideia de um êxtase perpétuo, quase parado
no tempo: um trem parado sobre uma planície, a profundidade da noite. Cria-se
uma noção de estabilidade com um vocabulário pouco usual: nomes coletivos
(cortinados, campanário) que apresentam reunidos o que, se usasse simples
plurais, ficaria desagregado (cortinas, árvores). Anima-se o inanimado, ainda
que estaticamente: estrelas “surdas”, a anos-luz de distância, estão postas ao
alcance da mão, refletidas, num charco, sangradas pelo tempo. Um tema tão recorrente
como o da cena noturna é transformado ao passar pela mente do poeta
dotando-o de uma existência nova e independente. Desta maneira o tempo, conceito
que de outra maneira seria abstrato, torna-se concreto. O tempo já não só
“pesa”, como na expressão popular; neste poema é obrigado a “cair”.
Esta é uma
utilização mais intensa do princípio de transformação artística da realidade
sugerida em Horizon carré. Com o
tempo, no manifesto prévio à Création
(novembro de 1921), Huidobro criaria a fórmula desta particular espécie de “criacionismo”: “Inventar é
fazer que duas Coisas paralelas no espaço se juntem no tempo ou vice-versa,
expressando-se assim, em sua conjunção, algo novo. O conjunto de diversas,
novas realidades unidas pelo mesmo espírito, é o que constitui a obra criada”.
Nesse tempo, Juan Gris dizia algo muito semelhante sobre seu próprio trabalho quando, ao
definir sua arte como uma “síntese”, especificava: “Tento tornar concreto o que é
abstrato, parto do geral para o particular, para assim chegar a algo novo”
(1921, p.533). A diferença entre os dois não é de método, mas de meios e de
temperamentos. Gris, como Reverdy, era disciplinado e analítico; Huidobro era
caprichoso e lírico.
A transformação
que faz o poeta de uma das imagens do pintor nos permite apreciar esta
diferença. Podemos recobrar que quando Gris estava traduzindo “Arte poética” de
O espelho de água acrescentou estes
versos, completamente por sua conta:
Un bouton
un léger
coup
et toutes les chambres s’éclairent.
A eletricidade
aparece como símbolo da idade moderna. Huidobro, nos Poemas árticos, ao colocar em espanhol a genial inspiração de Gris,
a ascendeu a um nível mais alto da fantasia. Em “Nadador” o clique do interruptor
não apenas acende a casa, mas o universo inteiro: “Apertando um botão / Todos
os astros se iluminam”.
Foi este
aspecto da obra de Huidobro o que então o atraiu ao Dadá, movimento do qual
participou de alguma maneira. O fato é que, quando Tzara incluiu “Cow boy”, um
poema de Horizon carré, em Dada 3 (dezembro de 1918), um crítico de
então baseou nele sua resenha do movimento, encontrando o poema não só
“representativo”, mas capaz “de encantar qualquer um que possua algum tipo de
sensibilidade lírica” (CANSINOS-ASSÉNS, 1919). Não a todos. O poema contém uma
variante da imagem do elevador melhor que um mergulhador que para Gris lhe
parecia tão gratuita em Poemas árticos:
em “Chove” dizia que “desce o elevador melhor que um mergulhador”; em “Cow boy”
sobe como termômetros (“Les ascenseurs montent comme des thermomètres”).
Huidobro, como o movimento vanguardista do qual fazia parte, se movia em
diversas direções ao mesmo tempo, sempre em busca do moderno.
Só de
maneira ocasional, por outra parte, nos encontramos em sua obra com os
convencionalismos da modernidade que tanto cativaram aos futuristas: aviões,
carros de corrida, arranha-céus etc. E quando aparecem, o fazem transformados a
fundo, caprichosamente modificados pela imaginação do poeta; as invenções
humanas se adequam à medida do homem, ao nível do cotidiano, como no exemplo do
elevador. Em “Universo”, um avião,
símbolo da época, não é mais que uma mariposa: “Junto ao arco das luzes / Um
aeroplano dava voltas”.
O grupo de Nord-Sud, marcado pelos aspectos mais
superficiais do moderno, pensava em si mesmo como o encarregado de restaurar
certo tipo de ordem dentro da vanguarda. Paul Dermée, em várias ocasiões,
propôs a ideia de um novo classicismo, especialmente em “Quand le Symbolisme fut
mort” (março de 1917) e “Intelligence et création” (agosto-setembro de 1917).
Huidobro, na Espanha e depois no Chile, falava do esforço do grupo nos mesmos
termos, impulsionando Cansinos-Asséns a escrever em 1919: “São como os novos
cavaleiros do Parnaso nesta evolução literária, como a reação termidoriana
desta revolução espiritual; eles mesmos se proclamaram clássicos”.
Este
classicismo poderia ser, e foi, interpretado de diversas maneiras. Sobre uma
base teórica, escrever como os clássicos significava imitá-los em sua
capacidade inventiva; e muito se falou então do feito de que os poetas (poietes) recebiam seu nome de uma
palavra que, em grego significa fazedor, criador. Sobre uma base prática,
classicismo implicava igualmente modernizar os clássicos, “traduzir” as grandes
obras do passado ao moderno idioma da vanguarda.
Huidobro fez
isto com San Juan de la Cruz, trabalhando sua poesia mística até impregná-la da
linguagem de Poemas árticos:
Sol poente
Há uma pane
no motor
E um aroma
primaveril
Deixa no ar
ao passar
Em algum lugar
uma
canção
ONDE ESTÁS
Em uma tarde
como essa
te
busquei em vão
Sobre a
névoa de todos os caminhos
Encontrava a
mim mesmo
E na fumaça
de meu cigarro
Havia um
pássaro perdido
Ninguém
respondia
Os últimos
pastores sufocaram
E os
cordeiros desgarrados
Comiam
flores e não davam mel
O vento que
passava
Amontoava
suas lãs
Entre nuvens
Molhadas de minhas
lágrimas
Por que
outra vez chorar
o já chorado
E então as
ovelhas comem flores
Sinal que já
és passado
Huidobro deu
uma explicação deste poema, ou, pelo menos tentou. Quando estava no Chile em
1919, predicando a nova estética, foi considerado um iconoclasta e, desejoso de
corrigir esta interpretação equivocada, visitou Hernán Díaz Arrieta, um amigo
dos dias de Musa joven e Azul que chegou a ser crítico do
influente semanário Zig-Zag. Como
evidência de seu classicismo, Huidobro chamou-lhe atenção sobre “Égloga” e
tratou de explicar-lhe suas imagens. O crítico, embora não muito convencido,
nos legou, afortunadamente, uma crônica da tentativa (ARRIETA, 1919):
“Depois de
uma minuciosa conversa com o autor de “Égloga” chegamos à seguinte explicação.
O sol poente é o velho sol que morre todas as tardes. A panne [pane] no motor?** Eu me figurava que o poeta havia saído numa
excursão automobilística e que seu carro havia sofrido um defeito; mas não; a pane
sofre o sol e por isso está poente. Assim diz Huidobro. Bem. No fundo a coisa
não tem a menor importância. Seguindo adiante, se escuta uma canção perdida,
alguém busca, recorda, se sente só [sic];
tudo dito de uma maneira extravagante; mas quando os poetas falaram como todo
mundo? Logo, na fumaça de meu cigarro havia um pássaro perdido; E isto? Que é?
Ninguém respondia; os últimos pastores se afogaram. Isto é, se calaram; alguém
pois, continua chamando alguém. Encontra umas ovelhas estranhamente equivocadas.
Acima as nuvens parecem suas lãs amontoadas. Uma reflexão para consolar-se. E a
explicação de que as ovelhas comeram as flores: o amante havia passado por
ali... “Entendes agora?”, pergunta Huidobro. “Pouquíssimo”. “Mas é a tradução de
uma égloga de San Juan de la Cruz!” “Nada estranho; se tu a traduzes para o chinês,
tampouco a entendo”.
A extravagância,
tão evidente nesta classe de inventividade, assombrou os leitores de Poemas árticos, exasperando alguns e fascinando
outros.
Notas
* Exceto o poema "Horas", cuja tradução é de Pedro Fernandes de Oliveira Neto, os demais poemas são traduções de Lucas Krüger e Manuel J. P. dos Santos para edição de Poemas árticos publicada no Brasil em 2018, ano em que passa o centenário da primeira edição do livro de Vicente Huidobro. A edição em questão é da Artes & Ecos Edições (imagem 3).
** panne. Galicismo de uso frequente no Chile
que, entre outras acepções, significa “avaria”.
Referências
ARRIETA, Hernán Díaz. “El creacinismo”. In:
Zig-Zag, n.15, vol.755, Santiago, 9
de agosto de 1919.
CANSINOS-ASSENS,
Rafael. “La nueva lírica” (Horizon carré, Poemas árticos, Ecuatorial)”. In: Cosmópolis,
n.1, vol.5, Madri, maio de 1919.
GRIS, Juan. L’Esprit Nouveau. Paris, n.5, 1921.
LARREA, Juan. “Vicente Huidobro en
vanguardia” In: Revista Iberoamericana,
n. 65, vol. 106-107, janeiro-junho de 1979.
MACHADO, Antonio. “Sobre las imágenes en la
lírica (al margen de un libro de V. Huidobro)”. In: Obras completas. Madri: Plenitud, 1957.
Este texto foi publicado incialmente em Huidobro. Los oficios de un poeta (Tradução de Guillermo Sheridan. México: Fondo de Cultura Económica, 1984, p.79-88). A tradução aqui é a partir da versão apresentada na revista Saltana.
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