Greve e morte como duplo desvelar em Incidente em Antares
Por Rafael Kafka
Incidente em Antares é uma marca
realista mágica interessante dentro da literatura nacional e da obra de Érico
Veríssimo que, assim como os primeiros tomos de sua saga O tempo e o vento, cria uma pequena arqueologia das oligarquias que
dominaram – ou ainda dominam – a região sul do país. A diferença é que a saga
se detém de forma demorada em criar literatura em cima de fatos históricos
concretos, cumprindo perfeitamente bem a missão de recriar e recontar, haja
vista que mesmo sendo densa e longa, O tempo e o vento – ao menos em suas partes iniciais lidas por mim até agora
– é uma obra de leitura bastante agradável. Enquanto isso, Incidente em Antares repassa de forma acelerada fatos históricos do
século XX mostrando como duas famílias rivais – Vaccarianos e Campolargos – se
unem em prol de um bem maior: dar-se bem com as artimanhas políticas.
Podemos
dizer que os protagonistas dessa obra são os discursos reacionários das
famílias, em especial nas figuras de Tibério Vaccariano e Quitéria Campolargo,
cuja essência é um terrível medo da esquerda comunista chegar ao poder nesse
país. Mas uma análise nem tão profunda assim da história do país e desses
discursos exibidos na obra nos faz entender como nem perto chegamos de um
comunismo como o havido em Cuba, por exemplo. Para os dois patriarcas esse medo
se justifica por um discurso esquerdista cada vez mais focado em defender
reformas de base, como a agrária, algo que custaria o poder a João Goulart.
Podemos
dizer que o livro é dividido em duas partes. Na primeira, temos um livro de
leitura agradável e simples, até mesmo rápida, com os fatos a crônica de
Antares sendo narrada em contraponto aos fatos políticos de nosso país. É
quando descobrimos haver uma espécie de greve geral dentro do município por
trabalhadores em busca de melhorias em diversos pontos de sua sofrida jornada
laboral. Em dado momento, defrontados com a resistência dos chefes em negociar
as pautas, os proletários decidem-se a fechar as portas do cemitério impedindo
qualquer enterro.
Um pouco
antes, sete mortes ocorreram, inclusive a de Quitéria, já em um indício do
realismo mágico presente no texto, afinal as mesmas ocorreram de modo bastante
sincronizado, digamos assim. Os caixões dos sete mortos ficam em poder dos
operários e durante a noite os mortos renascem e buscam entender o que se
passou com eles para ainda estarem acordados. São mortos das mais variadas
camadas sociais, como Cícero Branco, advogado caxixeiro – como diria um
personagem de Jorge Amado – que ajudou o prefeito da cidade e outras
autoridades em diversas falcatruas – e Barcelona, um sapateiro
anarco-sindicalista.
Tais mortos
chegam à conclusão de que a morte os igualou em condição, criando uma curiosa
antítese, complementadora, porém, da visão de Heidegger da morte como prova
concreta da individualidade humana. Morremos sozinhos e sentiremos sozinhos o
peso da morte, mas ao mesmo tempo nos tornamos iguais já que ricos e pobres
teremos de encarar esse momento. Após a morte, teremos nossos corpos corroídos
pelos micro-organismos responsáveis pela decomposição material dos mesmos e
isso evidencia como somos apenas tempo nesta existência minúscula.
A morte
então rechaça as diferenças sociais e aos poucos os ricos como Quitéria devem
aceitar o fato. A aceitação se torna ainda mais forte quando todos são
liberados para visitar seus parentes e amigos e Quitéria descobre que seus
parentes estão mais preocupados em discutir a divisão da herança do que em
sentir o luto ainda recente da importante senhora. Cícero, por outro lado,
descobre a esposa na cama com um jovem garoto universitário – espécie de
fetiche da dama – o que evidencia como as classes dominantes vivem um mundo de
ilusão material e discursiva.
Os mais
pobres encontram apoio e consolo em amigos, como a prostituta que conversa com
uma colega de trabalho, o bêbado que toma um último gole com o amigo e o morto
por tortura que arranja a fuga da mulher para longe das garras da ditadura
militar, que já começara a se instaurar em Antares e no resto do país.
Em dado
momento, os mortos decidem se unir no coreto da praça central da cidade e ali
fazer exigências no tocante aos seus enterros. Neste momento, um conflito entre
vivos e mortos passa a ocorrer e aqueles passam a expor todos os males morais
existentes no meio social de Antares. A morte aqui se revela um desvelar, um
despir-se de convenções, uma exposição de tudo o que há de podre dentro de um
organismo vivo. A morte se revela como algo vivo a exibir a angústia de existir
e tudo o que fazemos para manter uma capa social aceitável. Em dado momento, os
mortos seguirão seu rumo, mas o estrago está feito já.
Não há uma
explicação didaticamente dada, e nem deveria haver, do que levou os mortos a
renascerem, mesmo com seus corpos zumbificados. Podemos perceber, porém, uma
certa correlação entre o incidente e a greve. Podemos dizer que Érico expõe a
greve como uma espécie de ruptura aparente a ordem social das coisas, mas na
verdade ela tão somente expõe o que está ali diante de nós posto, mas ignorado.
As péssimas condições sociais dos trabalhadores, como a favela Babilônia citada
no romance, é algo que vemos todo dia, mas sem nos atentarmos muito, dando um
olhar de viés para aquilo que nos ofende enquanto mortais sensíveis. A greve,
assim como o discurso dos mortos, é um ato político de desvelar o que não
queremos ver, a miséria de nossa sociedade dominada por uma classe rica a qual,
para manter as aparências de glamour, felicidade e sofisticação condena
milhares de homens e mulheres a viverem em condições medíocres.
A greve e a
morte assim servem de duplo desvelar do discurso reacionário exposto acima. Se
a ação política dos trabalhadores expõe as brechas do regime político dominante
em Antares, a morte revela as frinchas morais desse regime, o qual se mantém
com um discurso cristão recheado de atos corruptos no poder.
Interessante
analisarmos um efeito carnavalizante muito forte na obra, a qual é a presença
da praça. Érico Veríssimo cria com maestria uma cena que mais parece uma peça
de teatro com elementos trágicos e cômicos com pobres, ricos, vivos, mortos,
jovens, adultos, velhos, crianças, trabalhadores e patrões se enfrentam em uma
arena discursiva viva e pujante. O carnaval é justamente um desvelar social no
qual todos se assemelham pela busca de prazer e diversão e na literatura essa
ruptura se dá quando diversos opostos se atraem, como nas ruas carnavalescas de
nosso país.
Mesmo sem os
elementos polifônicos de obras clássicas com elementos carnavalescos, Érico
mostra que a essência do incidente é a perturbação social que com a greve
atinge o paroxismo e mostra os mortos vivos entendendo os limites das
aparências. A lamentar somente que os pobres não tiveram a aparência da riqueza
em suas vidas para lhes dar algum sentimento de dignidade mínimo.
Após a ordem
social começar a voltar ao absurdo rotineiro, o fato passa a ser ocultado da
memória popular por uma comissão formada por representantes da prefeitura. Não
se deveria falar, escrever, mencionar, registrar nada sobre esse estranho
incidente no qual diversos mortos além de cometerem a audácia de saírem do
túmulo resolveram expor os aspectos mais podres da sociedade antarense.
Impossível não lembrar da cena de um dos Aurealianos preso em um trem de
pessoas mortas pela polícia em Macondo e depois percebendo que o fato
simplesmente não existia mais, mesmo ele tendo sentido na pele a dor da
violência.
Gabriel
García Márquez usou um discurso mais engenhoso e alquebrado sem dúvida alguma
em seu Cem anos de solidão, mas ainda
assim Érico consegue mostrar com qualidade como fatos sociais são criados,
recriados e mesmo destruídos com o interesse político contando com apoio de
asseclas inclusive dentro do campo midiático. Nesse sentido, o seu romance que
começa aparentemente sem grandes pretensões é um livro interessante para
entendermos como as práticas discursivas criam um verniz o qual disfarça
relativamente bem as contradições sociais cotidianas, que ainda assim ficam
ali, pululando, como à espera da explosão do barril de pólvora que as irá
expor.
A realidade
se mostra em Incidente em Antares
como ela é: uma espécie de antítese entre esconder e expor tudo o que há de
baixo em nossa sociedade provocado não apenas por falta de caráter e sim pelo
desejo das camadas mais altas em disfarçarem sua pequenez pelo luxo conseguido
à custa da opressão sobre as camadas sociais mais vulneráveis.
***
Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
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