Escrever romances
Por James Salter
Os romances são
mais longos que os contos e, em virtude dessa extensão, ou digamos amplitude, têm
a oportunidade – e obrigado, mesmo – de ser mais complexos e possivelmente envolver
mais personagens, chamá-las personas. A maioria dos romances são narrativas, ou
seja, linhas em forma e fiéis à cronologia, movem-se para frente ou flutuam
entre idas e vindas no tempo. A narrativa conta uma história e as histórias são
a essência das coisas, o elemento fundamental. E. M. Forster, em Aspectos do romance, um ensaio inglês
ligeiramente ultrapassado, fala da importância da contar uma história e as habilidades
de uma de seus mais brilhantes artífices, a perspicaz filha do vizir, Sherazade.
E embora
fosse uma grande novelista, requintada em suas descrições, prudente em seus
julgamentos, engenhosa para narrar incidentes, avançada em sua moral, eloquente
na caracterização das personagens e grande conhecedora de três capitais do Oriente,
não recorreu a nenhum destes dotes para tentar salvar a vida ante seu intolerável
marido. Não eram mais que um elemento secundário. Se sobreviveu, foi graças ao
que compôs para que o rei se perguntasse sempre o que aconteceria depois.
Cada vez que
via amanhecer ficava pela metade de uma frase, deixando o homem boquiaberto. “Neste
momento, Sherazade viu raiar as primeiras luzes do dia e, discreta, guardou
silêncio.” Essa última frase, como adverte Forster, é a chave de As mil e uma noites: Sherazade guardava
silêncio. O que acontece depois? A curiosidade de saber é o motor da
literatura: por favor, continue contando a história.
A trama é
algo além da história. Inclui os elementos causais e as surpresas. A história
de Lolita é sensível: Humbert descobre
Lolita, e digamos que a seduz, faz com que se passe por sua possível filha, uma
situação detestável mas sedutora, e um rival a rouba dele. Ele se lança em sua
busca, os encontra e mata o ladrão. Mas é a trama, com seus diversos enlaces cômicos,
a progressiva revelação dos motivos e dos incidentes grotescos, o que a engrandece.
Lolita no início foi mal
interpretada, como é natural, e se salvou do previsível esquecimento ou de acabar
naquele rol dos livros picantes graças a Graham Greene que a incluiu na sua
lista no Times como um dos três
melhores livros do ano e lhe concedeu desse modo respaldo literário. Nabokov
era então um escritor pouco conhecido.
Vou tentar falar sobre escrever romances, mas
devo advertir de antemão que talvez não seja sobre o romance que vocês estejam
pensando escrever, ou começaram a escrever, ou talvez tenham meio terminado. Na
verdade, é sobre os romances de certas pessoas. Não pretendo que sejam lições
sobre como se faz.
Isso porque
não acredito que alguém possa ensiná-los como se escreve um romance, não em
menos de uma hora. É difícil escrever romances. É preciso que você tenha a
ideia e as personagens, embora talvez as personagens se agreguem ao longo do itinerário.
Você necessita da história. Necessita, se me permite dizer assim, da forma:
qual extensão terá o livro? Estará escrito em parágrafos longos? Ou curtos? A
narrativa, em qual pessoa? Manterá um fio condutor ou se dispersará em todas as
direções? Como será a trama? Quando você tem a forma, pode escrever o romance. Quando
tem o estilo. O estilo. Onde se situa como escritor. Seus julgamentos. Seu posicionamento
moral. O modo como esse livro deveria ser lido. E depois você necessita de um começo.
“Duas cordilheiras atravessam a República, quase de norte a sul...”, as primeiras
palavras contidas no suplício final do cônsul em À sombra do vulcão. O começo é de suma importância. Já mencionei o começo
de Adeus às armas*. Tudo está nessas
primeiras frases: a guerra da qual procuram se afastar os que dela fogem. No momento
se encontram protegidos, vendo-a passar, mas seus destinos estão ligados a ela.
Uma das coisas
mais difíceis, dizia Gabriel García Márquez, é o primeiro parágrafo. Passava meses com um primeiro parágrafo, explicava, mas uma vez conseguido o
resto era simples. Tinha o estilo, o tom, mas o problema era como começar a
plasmá-lo. O primeiro parágrafo dava a pauta do que seria o resto do livro.
O princípio
de tudo, como começar. Depois disso, escrito em ordem ou em desordem, vem o
restante, cena a cena, página a página. É uma tarefa longa. Como escritor, você
enfrenta constantemente a necessidade de visualizar uma cena, ou uma sequência,
ou um sentimento, para em seguida, de maneira mais clara possível, colocar
isso em palavras. Há muitas intenções falidas, ao tratar de arrancar de dentro
algo que às vezes é inexpressável. É um trabalho com muitos aspectos, muitos, e
ao menos um deles deve ficar escrito de um modo linear, palavra por palavra,
até o ponto de chegar quase a perder o interesse. Há sempre muitas opções, ou não
há nenhuma, nenhuma via possível. No começo você é capaz de escrever em
qualquer lugar, mas precisará de dedicar tempo a escrever, precisará escrever invés de viver. Precisará dar muito para receber algo. Receberá só um pouco,
mas é algo. Não há valores estabelecidos; você pode dar muito em troco de nada;
fazer tudo a troco de nada, como no princípio Justine fazia amor em troca de uma
camisa de algodão.
Se
verdadeiramente é assim, se é tão difícil e para quase todo mundo há tão pouco
a se ganhar, pouco dinheiro... Bom, de fato, é uma maneira de ganhar dinheiro; você não necessita nada para começar, só as palavras. mas, qual é o impulso? Por que
se escreve? Aí está a essência. Então, por quê?
Bom, certamente
por prazer, embora esteja claro que não é um prazer tão grande. Nesse caso,
para satisfazer a outros. Escrevi com isso em mente às vezes, pensando em certas
pessoas, mas seria mais honesto dizer que escrevi para que outros me admirem,
para que me queiram, para ser elogiado, reconhecido. No fim de tudo, essa é a
única razão. O resultado apenas tem nada a ver. Nenhuma dessas razões dá a
força do desejo.
Sempre penso
em Paul Léautaud, um velho crítico teatral, pobre, quase esquecido. No fim,
quando vivia sozinho com uma dezena de gatos, escreveu: “Écrire! Quelle chose
merveilleuse!”
Você é herói
de sua própria vida: pertence somente a você, e ao menos é a base de um primeiro
romance. Nenhuma história está mais ao seu alcance para que disponha dela.
Philip Roth escreveu seu primeiro livro, Goodbye,
Columbus sobre si mesmo e um amor de juventude com uma jovem de Nova Jersey.
Esse segmento de sua vida é a história e suas complicações formam a trama.
Voltaire escreveu
Cândido como crítica social, o fez de
uma sentada quando tinha sessenta e cinco anos.
Theodore
Dreiser visitou seu amigo Arthur Henry no verão de 1899 em Maumee, Ohio. Henry
estava trabalhando num romance. “Por que você não escreve um também?”, sugeriu-lhe
a Dreiser. Este se sentou, pegou uma folha de papel e escreveu na parte
superior: Sister Carrie.
Dreiser era
filho de uma família de dez irmãos que se criou na pobreza em Warsaw, Indiana.
Um mestre bondoso pagou seus estudos para que fosse à universidade, embora não tenha
concluído a carreira acadêmica. Duas de suas irmãs, ficaram grávidas
ou fugiram de casa. Dreiser precisou de trabalhar como cobrador nos bairros da
periferia de Chicago, mas tinha um olho perspicaz e ávido, observando as coisas
que lia nos jornais. Mandou vários artigos a um deles e logo passou a ser um escritor
de sucesso e depois jornalista e diretor de uma revista. Tinha vinte e oito anos
quando começou a escrever Sister Carrie,
sem uma ideia pré-estabelecida, sem saber sequer sobre o que trataria. Limitou-se
a abrir mão de suas vivências e permitiu que a memória dispusesse as coisas com
apenas um ligeiro temor. Levou quatro meses para escrever o livro, incluindo o
abandono ao concluir que era péssimo. Tinha pouco a perder. Carrie foi publicado num mundo em que um
dos temas estabelecidos da ficção era o da honra manchada que no final
triunfa. A obra foi retirada de circulação em seguida por razões morais. Dreiser conhecia
um mundo de uma realidade mais ampla e o rude mercantilismo de muitas cidades: Chicago,
St. Louis, Pittsburg, Nova York. Havia lido Nietzsche, Balzac e Zola e sentia-se
fascinado pelas ideias vagas de um super-homem, assim como o deus do dinheiro e
os reis do dinheiro. Sabia que “a maldade do indivíduo, para ser amada, deve se
vestir de glória”, disse Robert Penn Warren, e essa ambição ardeu nele durante
toda a vida. Escapuliu-lhe o Prêmio Nobel, que foi concedido em troca a Sinclair
Lewis. Dreiser era um mau escritor, repetitivo, vulgar, previsível e falacioso,
mas também era um grande contador de histórias, incansável e transbordava de
ideias. Além disso, foi o primeiro escritor estadunidense que vinha dos bairros
de periferia. Samuel Clemens também, mas num sentido diferente.
Por que falo tanto sobre Dreiser, uma presença
contundente, excessiva, que acredita na base materialista da vida é a verdade
fundamental? Não é por isso. Os livros que escreveu se aproximam tanto de sua
própria vida de cidades, bares, restaurantes, bordeis, do sucesso e fracasso,
do medo em não conseguir nada, que é difícil saber o que acrescentou para convertê-lo
em ficção. O relevante é sua visão da ordem estabelecida, seu conhecimento da
vida nos estratos mais baixos, que tenta ascender através das impenetráveis capas
da sociedade, que trata de alcançar um lugar próprio.
John O’Hara
era filho de um médico, mas sempre se sentiu como se viesse dos bairros suburbanos.
Ressentia-se profundamente por não ter ido a Princeton ou Yale, ser “diferente”.
Foi repórter de jornal e desenvolveu, como Dreiser, o hábito da observação minuciosa
juntamente com o conhecimento nada romântico da conduta humana. A liberdade
para escrever e um bom olfato para as histórias são vantagens, também, de uma
vida dedicada ao jornalismo. Nos contos de O’Hara há centenas de personagens e
não se incomodava em traçar mais que um apontamento, sem se aprofundar muito. Seu
método consistia em colocar uma folha em branco na máquina de escrever e
imaginar dois rostos de alguém com quem talvez tivesse visto no trem, e, sem
saber nada sobre essas pessoas, fazia com que se encontrassem ao acaso num
restaurante, ou num avião, e deixava que falassem, no início coisas triviais
durante um ou duas páginas, até que começavam a ganhar vida. Era tudo através
do diálogo. À medida que falavam, um ou outro acabava dizendo algo tão
revelador que a partir daí era só questão de ver até onde poderia seguir
interessado nas suas personagens. Era um escritor de diálogos, hábil no vitupério
e no matiz social – o lugar de cada um na escala –, e as histórias assim apareciam-lhe
em abundância.
Ao abordar
um romance, O’Hara era minucioso com as personagens que apareciam e elas eram
elaboradas com consciência. Todos os detalhes pessoais estão aí, a vestimenta,
e talvez inclusive as lojas de onde saiam as roupas, os costumes, virtudes,
defeitos. Recria com tanto milagre as cenas que, de fato, pode-se vê-las: o
revolver e as luvas de couro do agente de polícia, seu chapéu, onde apanhou o carro
e por que, e também ante quem abaixa a cabeça e sobre quem sabe algum episodio sórdido.
Você vê a sociedade que O’Hara está descrevendo e se estremece um pouco ao imaginar
onde levarão esses acasos tão enraizados e esses comentários inesperados.
Essa gente,
essas personagens, são retirados da vida? Se baseiam, fisicamente e nas demais características,
em pessoas de verdade? Suas atitudes e algo que dizem ou as marcas de sua fala,
extraem-se da vida? Acredito que vocês saibam – embora entre os escritores
sempre exista certa suscetibilidade a respeito, como se inspirar-se na vida
fosse uma renúncia à arte – que, talvez, muitos ou a maioria dessas personagens
de ficção estão tomados da vida.
*“No final
do verão daquele ano, ocupávamos uma casa, numa aldeia, de onde, além do rio e
da planície, víamos as montanhas”.
** Em 2015,
pouco antes de morrer, James Salter ofereceu três conferências sobre seu
próprio ofício e sobre as leituras da obra de outros colegas. Os textos foram
reunidos num livro, A arte da ficção
(tradução livre). E esta é a tradução de uma passagem da obra.
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