Enterre seus mortos, de Ana Paula Maia
Por Pedro Fernandes
O título deste
romance aponta pelo menos para duas direções. A primeira corre em simultâneo ao
sentido imediato que a sentença recobra. Isto é, o ato de enterrar os mortos,
que remonta toda uma tradição de dimensões variadas: da necessidade de
preservar o corpo dos predadores, no alvorecer da comunidade humana, a um zelo
afetivo pela memória do outro, depois do surgimento das atividades de vivência
do luto.
A segunda
direção é dada pelas camadas sedimentares de sentidos que formam sob determinadas
expressões linguísticas. Neste caso, enterrar seus mortos significa resolver em
definitivo situações e sentimentos passados no intuito de restaurar uma ordem de
tranquilidade psíquica para com a existência. Não se trata de um apagamento, mas da
reafirmação do indivíduo no intuito de compreender o acontecido como uma condição
cuja força do momento exigiu-lhe uma tomada de decisão irreparável e até
distinta do seu código de conduta moral.
A obra de
Ana Paula Maia recorre, portanto, a duas dimensões comuns entre nós e
registradas de maneira diversa pelas representações artísticas. Por falar em criações literárias com essas possibilidades de sentido, no momento ocorre-nos duas
delas: o clássico grego Antígona,
de Sófocles e O filho de Saul, um
filme de László Nemes – para citar duas formas narrativas distintas que estabelecem
estreita relação para com os sentidos aqui apresentados. Tanto na tragédia sofocliana
como na narrativa fílmica recuperam-se a dimensão ética dos vivos para com os
mortos, tratam o enterro como direito universal e o tratamento de indigência como
ruptura para com a unidade de memória coletiva que nos distingue da condição
animal ou irracional.
Evidentemente
que, pelas distinções contextuais, o romance da escritora brasileira dialoga
ainda – e também o faz a tragédia grega e o filme de Nemes – com outra
dimensão: o tratamento jurídico que pesa sobre os vivos e não esquece os
mortos. Na conjuntura de organização sistemática das sociedades e do controle
exercido pelos poderes sobre os seus indivíduos, o aspecto ritualístico e
sagrado que até recente envolviam o enterro foram carcomidos pela burocracia e
pelos trâmites legais que legislam sobre o corpo inerte, principalmente se não
há quem o reivindique.
Em Enterre seus mortos somos apresentados a
Edgar Wilson, uma personagem que apesar do nome meio pastiche de western só guarda com a cena country o gosto pela música sertaneja;
quer dizer, a afirmação é duvidosa, implicância de quem observar, numa das
várias ocasiões quando se encontra com o companheiro de trabalho, Tomás selecionando uma trilha sonora do gênero enquanto digerem o jantar. Continuamente, apesar de em meio a tanta podridão,
as personagens nesse romance comem; à maneira de transeuntes. Talvez para
espantar o odor nauseabundo de carne, o olfato é sempre atiçado para os cheiros
da comida e mais para o cheiro de café que bebem aos galões.
Edgar
trabalha para uma pequena empresa ligada ao trato rodoviário e sua função é recolher
animais mortos nos constantes atropelamentos. Tomás é o novo integrante nesta
empresa que, depois de recolher os cadáveres, cuida da transformação deles em matéria
de compostagem. Afastado das atividades eclesiásticas depois que a Igreja descobre
seu passado negro, o rapaz carrega o dom de rezar pelos mortos com os quais tem
contato, homens ou animais. A rotina dos dois é continuamente tomada por
situações duvidosas e complexas. A região que cobrem retoma um Brasil profundo
e marcado pelas extensas sequelas históricas e sociais: a inoperância do
Estado, as pequenas e grandes corrupções, o levante das religiões evangélicas
que em nome da prosperidade seduzem os necessitados e os tornam asseclas da moral
e dos bons costumes, câncer em metástase que ganha a dimensão dos ódios
gratuitos, do recrudescimento das consciências aos níveis do selvagem.
Em duas das chamadas
para recolha de animais, Wilson, que de tanto lidar com a morte tem o mesmo
faro das aves de carniça, descobre dois corpos: na primeira vez, uma mulher
supostamente suicidada; na outra, um homem. Dessa maneira somos colocados em contato
por sob a condição feroz da profissão, por canais complexos da violência e da
banalização da vida humana. A figura dessa personagem encarnará então, nesse
universo integralmente marcado pela desumanização, os mesmos papéis de Antígona
e de Saul.
O trabalho
paralelo que desenvolve – ainda que parte de sua consciência e de todos que o encontram
acreditem que não é sua atribuição dedicar-se aos mortos humanos – servirá para
entrarmos ainda mais num extenso e complexo labirinto que revelam aquilo que
está anos-luz da nossa vida metida nas roupas da aparência e distantes das condições
impostas em parte pela imobilidade do Estado em parte pelos que fazem da morte
um negócio de lucrar e não guardam qualquer ética ou moral para com os seus
semelhantes.
No percurso
de Edgar Wilson e de Tomás descobre-se que o corpo, na sociedade capital,
perdeu a qualidade de refugo e tornou-se objeto – a mesma condição destinada
dos animais recolhidos nas rodovias. Descobre-se que a vida se tornou coisa manipulável à maneira das decisões individuais e alheias sobre sua continuidade ou não. Que todos estamos condenados ao mesmo fim determinado
pela força indelével do tempo é uma verdade sobre a qual não se resta mais interrogações;
que podemos estar sujeitos à indigência ou ainda à mercê de mãos alheias, entretanto, é algo que sempre nos escapa. O romance
de Ana Paula Maia é, aliás, a demonstração dessas possibilidades. Por esses
mortos que, ao contrário de outros, como os do grande monturo onde as duas personagens encontram os
restos de uma parente próxima a uma amiga em comum, se expõe o destino da significativa quantidade
de vidas levadas ao descarte pela instalação dos modelos centrados na violência.
Enquanto buscam
dignidade, descobrem as razões das mortes das pessoas que carregam; nesse percurso,
Tomás revisita sua história e pode oferecer um enterro ao segredo do passado que o levou ser excomungado. São dois trajetos então que se entrecruzam – um de
natureza coletiva (a violência é uma endemia social complexa e total) e outro
individual. E novamente Ana Paula Maia toca em situações tão próximas de todos,
mas que somos, por pura incapacidade ou porque conscientemente negamos ver, colocados
muito à distância. Impossível continuar o mesmo depois da leitura desse romance;
por através dele, os mortos que negamos falam com o mais profundo de nós: nossa consciência.
Onde ela está agora no simulacro que vivemos?
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