Aquela água toda, de João Anzanello Carrascoza
Por Pedro Fernandes
O corriqueiro
também está repleto de significâncias. Esta parece ser a constatação que serve
ao escritor contemporâneo. Claro, não é esta uma afirmativa que precise servir de
verdade inconteste a toda a literatura atual, mas ao menos se verifica com certa
precisão nesta antologia de contos de João Anzanello Carrascoza.
Aquela água toda, que serve de título para
a obra, pode ser por esta razão, a história principal das onze narrações que,
salvaguardando pequenas exceções, parecem recontar situações com as mesmas personagens:
dois irmãos, o pai e a mãe. Claro, em torno delas circulam outras que dividem a
cena narrativa das histórias contadas. Isso significa dizer que, além do mesmo
interesse que as une, há certo traço de continuidade narrativa marcada pela recorrência
de papéis, além, do mesmo tom de voz objetivo e soturno com as histórias são narradas.
A conclusão
acima apresentada é evidentemente produto de uma suposição interpretativa. A
variabilidade dos nomes próprios ou mesmo a ausência deles inscreve as
situações nesses contos numa ordem universal. Tanto é verdade que as narrativas
interpelam o acontecimento trivial para não apenas reapresentá-lo no tecido ficcional
– em grande parte há uma voz que recorda o que se narra – e sim evocar um
sentimento ou uma condição que todos os humanos estão fadados a atravessar ou
aprender a lidar com ela. De alguma maneira, esse registro recupera uma
dimensão bastante cara ao conto enquanto forma simples: a de compor uma espécie
de moral ou ensinamento. Não se trata, evidentemente, de um efeito pedagógico que
foi recorrente em certa passagem da história desta forma narrativa; trata-se de
uma dimensão marcada pelas forças da verossimilhança, isto é, as relações estabelecidas
propositalmente ou não entre o interior e o exterior do texto.
Tomemos
aleatoriamente o conto “Mundo justo”. Duas linhas se interseccionam no núcleo
narrativo: o contínuo esforço de um jovem no esporte pelo qual tanto deseja conseguir
um resultado capaz de fazer os mais próximos reconhecerem nele o status de jogador e em oposição a condição
quase alheada do irmão que dedica todo seu tempo aos livros. Enquanto o
primeiro conseguirá o resultado almejado, a estreita relação com o irmão, o único
dotado de uma sensibilidade para compreender o esforço daquele, é, pela força
do destino, cortada de maneira cruel e abrupta. Quer dizer, não é a situação do
jogo, nem a da figura que decide entregar-se à própria sorte de existir, é a capacidade
que precisará ser aprendida pelo jovem jogador segundo a qual a própria vida se
modela entre o ganhar e o perder ou não há vitória que implique numa derrota. E
isso o que dá forma ao que se responde pelos termos que nomeiam a história. E esta
é uma condição universal.
O conto
“Aquela água toda”, para citar outro exemplo, que mantém um estreito diálogo
com o universo contístico de Clarice Lispector, marcadamente pela presença
intertextual de “As águas do mundo”, inclusive por recuperar, pelo ponto de vista
masculino a mesma atmosfera da relação enigmático-existencial entre um indivíduo
e o mar. As memórias de um menino e seus encantos pelo reencontro com o mar vivido
a cada verão se confundem, numa das experiências, com o medo da perda dos pais e
de seu afogamento na agitação do mar de concreto da cidade. Novamente o
episódio corriqueiro serve ao contista para explorar os sentidos do desamparo marcados
pela ruptura com o universo de conforto e proteção propiciado pela unidade
familiar. E este é um sentimento universal.
Não é apenas
o tratamento das narrativas que oferecem ao leitor uma ideia de continuidade entre
os contos reunidos nesta antologia. Há relações de ordem temática. As primeiras
experiências de enfrentamento com a liquidez do mundo – assumidas nestas narrativas
de maneiras diversas – e os medos que nos são recorrentes nesse processo servem
de elemento principal para exploração do contista. Há mesmo um conto que
responde pelo título de “Medo”. Neste texto, seu narrador apresenta os vários medos
que acompanham um menino desde sua primeira compreensão de indivíduo só no
mundo. E como tais medos encontram um antídoto que é a confiança desmedida no
outro, condição que o levará, pela descoberta do quanto o outro pode não ser o
que imaginamos significar para nós, a atividade do exercício da coragem para
existir.
Há uma
passagem do conto “Chave” que podemos tomá-la pelo que significa a palavra que o
intitula para explicar a compreensão proposta nesta leitura de Aquela água toda. Depois de constatar a
repetição dos gestos triviais que enformam sua vida aparentemente presa às mesmas
situações, o narrador diz: “Nada era sempre a mesma coisa, que as mudanças eram
a força motriz do mundo”. Ao recuperar os episódios marcados pela simplicidade como
são vividos, João Anzanello Carrascoza os reveste por uma condição poética
muito semelhante à tarefa do poeta no mundo contemporâneo: quer expandi-los ao
ponto de nos dizer sobre os valores que neles se expressam, mas não conseguimos
ver porque tomados pela impossibilidade de reparar na grandiosidade das coisas
simples.
A tarefa, entretanto,
não é nada tão fácil. Imprimir importância sobre o que na aparência não guarda
importância alguma é uma das complexidades mais sofisticadas porque no mesmo
instante que o escritor não pode incrementar a situação narrada sob pena de romper
com o princípio básico do texto ficcional, a verossimilhança, precisa oferecer
possibilidades suscetíveis às sensibilidades do leitor na constituição dos
sentidos que fogem ao seu olho comum.
É um gesto investido
pelo contista parecido com o do pai em “Passeio” que aguça a curiosidade de
todos de casa, principalmente dos filhos, ao se propor revelar algum segredo grandioso
para todos; gesto, aliás, que rompe diretamente com o modelo comum de apreensão
na contemporaneidade, sempre marcado pela pressa e por uma cruel ansiedade que
nos impede de sorver melhor a existência. Com Aquela água toda Carrascoza trata esse mal com o ato de revelar aos
poucos para que o leitor veja tudo, devagar, na sua inteireza – como esclarece
no narrador do conto em questão na apresentação desse pai interessado em mover
todos para o seu enigma porque sabe que “são grossas as camadas da certeza” e
já agora parece que, como a menina desse conto, não podemos penetrá-las e ficamos
só na sua superfície.
Na contracorrente
dos modelos de vida que angariam um apagamento das potências do poético como
sentido fundamental para a existência, estes contos são uma maneira importante
de percebermos a necessidade de reaprender a compreendermo-nos entre o tempo e
as ações. Resta saber se estamos ainda em condições de uma reabilitação. Pelo sim
ou pelo não, o escritor é sempre este que nos incita à necessária revisão do
mundo.
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