10:04, de Ben Lerner
Por Pedro Fernandes
Com este
romance, Ben Lerner parece querer dizer que toda literatura é literatura do eu:
toda obra literária é produto de um movimento cujo epicentro é o próprio autor,
para recordar um texto de Laura Fernández que concorda neste mesmo ponto. Sabendo
disso, o romancista forja um narrador marcado pelas mesmas características que embalam
a existência dessa categoria no romance: o de ser máscara, disfarce do autor. A
diferença é que, como em toda metaficção, aqui o leitor tem acesso ao que se
passa na coxia ou aos movimentos da caixa de máquinas desse sistema.
Antes de
melhor compreender essas questões é necessário esclarecer que a ressurreição do
autor não significa a morte do narrador tampouco o autor sobre o qual falamos
deve se confundir com a pessoa física e cívica do escritor. Este último tem a
existência marcada no texto pela referência pré-textual mostrada na inscrição de
seu nome enquanto autor do texto que o leitor tem em mãos. Mas o autor é, assim
como o narrador uma entidade manifestada textualmente, com possivelmente uma diferença
essencial, a de constituir-se dentro e fora do universo fundado pelo texto. Ao
pensar assim, recupera-se a dimensão segundo a qual o texto é entidade aberta,
não no sentido proposto por Umberto Eco, mas no sentido de órgão que simultaneamente
constitui força com o universo da ficção e o anterior a ela, que comumente
o chamamos de realidade. Ou aquilo que em Retratos
para a construção do feminino na prosa de José Saramago se chama de
realidades fabricadas.
Assim, o
autor de 10:04 constrói um romance
que questiona ainda outros dois limites: o das relações entre ficção e
realidade, esta manifestada como uma sucessão invariada, uma vez se marcar pela
repetição e pela descontinuidade. Já o ficcional continua a ser o resultado das
manipulações ora propositais ora necessárias do autor. E o autor deste romance escreve
como alternativa de compreender-se nas engrenagens de um tempo marcadamente complexo,
um tempo de iminências paradoxais.
Um exemplo
ilustrativo está no estrondoso sucesso que alcança com a publicação de um conto
na The New Yorker e o fracasso criativo
de responder a altura com a escrita de um romance; ou, para citar mais um, o anúncio
noticiado pelas agências climáticas de uma tempestade de grandes catástrofes em
Nova York e o pedido de sua amiga Alex para que sirva ao sonho dela em ser mãe;
ou ainda, para citar a terceira e última linha do enredo, a descoberta pelo autor
de uma doença coronária que pode levá-lo à emergência de um hospital ou à morte
em qualquer circunstância alta de stress
e a necessidade de concluir a obra que escreve previamente vendida pela editora
como “uma literatura perto da perfeição”. Com um detalhe a mais: o autor nunca
escreveu ficção a não ser o conto de grande sucesso; sua atividade é mesmo escrever
poesia. E a obra que ela almeja é esta que o leitor tem em mãos e é aqui quando
se confundem o autor da ficção 10:04
e autor do romance 10:04.
Este título
e a engenhosidade desse objeto artístico é dado a partir da experiência do
autor da ficção 10:04 numa exposição chamada
The clock – uma montagem com 24 horas
de duração composta por cenas de filmes e algumas de TV editadas para serem
exibidas em tempo real, isto é, cenas que correspondam a atividades corriqueiras
desempenhadas por nós em determinadas horas do dia. Dirigida por Marclay, a combinação
dada por várias cenas constitui-se “em uma ficção poderosa e coerente em parte
pelo uso da repetição”; “algo como um relógio circadiano do gênero”; “Marclay
formara um supergênero que tornava visível o nosso sentido de coletivo e inconsciente
dos ritmos do dia – quando esperamos matar ou nos apaixonar, tomar um banho ou comer,
foder ou consultar nosso relógio e bocejar”.
No grande
relógio circadiano de Marclay, as ações desenvolvidas no romance em questão correspondem
ao minuto que o intitula: 10:04. Em The clock, esse minuto corresponde ao de
quando o relâmpago atinge a torre do relógio do tribunal em De volta para o futuro permitindo que
Marty retornasse a 1985. O autor da ficção 10:04
é apaixonado pelo filme de Robert Zemeckis
e é a estrutura da narrativa fílmica que fornece os elementos estruturais do
seu romance: um fato designadamente catastrófico que o faz transformar
instantes do presente em condições futuras a partir de sua capacidade imaginativa
e, neste mesmo intervalo de idas ao futuro se processam pequenas situações do passado
que se apresentam como interferências a partir do presente no qual se situa o
autor.
Lidando com
invenções sobre um mesmo instante da vida? Pergunta-se o leitor depois de
atravessar o segundo capítulo de 10:04
o romance. Nesta e só nesta ocasião encontramos o autor de 10:04 a ficção construindo uma série de modificações, substituindo acontecimentos
que se passariam do grupo principal de personagens de 10:04 o romance a outro grupo de personagens, este de 10:04 a ficção. A ruptura com a ordem de
sucesso das ações evidentemente coloca em xeque as condições de verdade
assumidas pelo romance e reafirma uma constatação cujo diálogo nasceu com The clock e De volta para o futuro: a realidade é, como na ficção, um contínuo
acúmulo de mesmas situações que ganham contornos de diferente porque se passam
noutros contextos e com outras personagens, um contínuo simulacro e, muitas
vezes, somos nós mesmos que estabelecemos a realidade enquanto convicção de
nossos interesses.
Assim, o
tratamento das situações e a obsessão do autor de 10:04 a ficção em escrever um romance a partir de um interessante jogo
de falsificações de um escritor famoso, que se mistura à possível relação de
vida e morte acontecida com o pai do autor e, por conseguinte, ele próprio, converte
10:04 o romance num pântano, o converte
numa obra em comum acordo com alguns dos interesses da ficção contemporânea: a narrativa
enquanto possibilidade – efeito verificado numa série diversa de obras da
literatura.
Isto é,
embora o episódio de obsessão do autor se apague em detrimento à composição do
que poderíamos designar como um esquete de sua própria vida no instante de construção
de seu livro, perdura o interesse sobre a fraude; este se verifica em várias
frentes. Enquanto parte da narração, como a desconstrução do grande discurso de
Ronald Reagan depois do fim trágico do projeto espacial Challenger ou o
questionamento sobre a farsa do projeto Apollo 11 que levou as primeiras
presenças do homem à Lua.
No fim, o
próprio romance se mostra enquanto embuste de romance ao se apresentar como anotações
diversas para a possibilidade de uma obra – espécie de diário em que se
registram as várias experiências originais para a composição da matéria ficcional.
E, em parte, são situações vividas pelo contato com outras expressões artísticas
e textuais: é notória a preocupação do autor com as artes plásticas no geral, com
as histórias que escuta dos outros, como transformar esses materiais em elementos
de sua ficção. A experiência alcança o sentido comum evidenciado contemporaneamente:
a dimensão imaginária é a mais indispensável aos artefatos forjados pela criatividade
e dela não escapa toda a massa de realidade que vimos julgando desde o advento
da razão como a verdade inquestionável.
Que o romance
é sempre a ficção do eu, com 10:04 e
toda a literatura, somos permitidos a dizer que o eu é também um embuste, suas
feições se revestem de uma variada quantidade de elementos que nos favorece a
sensação de verdade. Quando nos damos conta disso, mergulhamos noutra possibilidade
de leitura sobre nós e sobre a realidade. A consciência sobre isso talvez nos coloque,
paradoxalmente, mais próximos do ideal de verdade, obsessão que nos persegue
desde o advento da razão e que persegue a todo ficcionista desde o ideal mimético.
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