Uma forma de saudade, de Carlos Drummond de Andrade


Por Pedro Fernandes



Carlos Drummond de Andrade não alimentou o espírito narcisista – tentador e quase sempre o ar que sopra favorável à fogueira das vaidades de todo criador. O neto Pedro Augusto abre as notas reunidas em Uma forma de saudade com esta constatação ao recordar a opinião do avô acerca do trabalho do escritor em manter e tornar público seu dia-a-dia. Na opinião dele, a obra é suficiente para dizer sobre o autor e um diário, por exemplo, resultaria em objeto redundante, ou, ainda pior, puro exercício de exibição.

Embora esta opinião do poeta de “No meio do caminho” tenha seu fundamento, ela é factível a diversos desenvolvimentos. Nela parece residir uma ideia segundo a qual os teóricos da literatura começaram por pensar a partir de uma negativa; na obra, haveria todas as marcas possíveis, ou quase isso, representativas de quem a escreveu, sendo impossível negar totalmente a presença do escritor na sua criação.

Se, por vezes, Pedro encontra na obra do avô uma alternativa para nos revelar a opinião, sua compreensão sobre a diversidade de temas caros ao pensamento, condição visível nas antologias que compõe com seleções temáticas da poesia do poeta de sete faces, agora, parece recorrer na mesma estratégia, mas na via da contradição, para a organização de um livro que favorece o leitor atravessar as fronteiras que separam o homem da obra. Não tem o intuito de avivar as linhas da tradição teórica segundo a qual entre um e outro as relações não são diretas, isto é, não se trata de uma simples passagem da biografia para a obra, e, logo, quase-sempre, tais relações são de caráter não-definitivo, nem definidoras para a compreensão de uma obra.

Uma forma de saudade se reveste de uma dupla condição radical, portanto. Primeiro, contradiz, em parte, o autor dos textos aí reunidos ao revelar publicamente entradas à sua intimidade e reafirma a própria opinião do poeta ao nos fazer perceber a estreita relação que guardam esses fragmentos autobiográficos com a sua poesia – isto é, num traço de continuidade do trabalho já conhecido de Pedro com as antologias temáticas. Segundo, pela coerência entre a anotação diarística e a obra, a pensar se de fato essas linhas que separam o criador da criação são mesmo tão vivas quanto supõe as reflexões teóricas.

O material reunido nesta antologia expõe elementos de foro muito íntimo; embora uma parte já tivesse sido apresentada em O observador no escritório, grande parte dos textos é inédita. São anotações que Carlos Drummond de Andrade copiou ao longo de uma vida, de forma muito irregular – por isso, apesar de obedecer a ordem de um diário não chega a sê-lo –, e organizou para satisfazer a memória interior da família, que esta, numa ocasião qualquer que se sentisse motivada a saber sobre suas origens pudesse acessar este arquivo e então reencontrar seu passado; foi sua melhor maneira de preservação porque justificada pelo poder inviolável da escrita, e, evidentemente, uma forma de alimentar a perpetuação dos antepassados, favorecer à manutenção das suas memórias e ao aparecimento de outras.

Há dois acasos, desses muito raros de suceder, que sustentam a aparição pública desse envelope com textos de cariz autobiográfico do poeta mineiro: uma certa benevolência trágica do tempo que permitiu o autor a assistir ao desfazimento natural de sua família – “fiquei sendo o último vivo, dentre os seis irmãos que chegaram a idade madura”, recorda quando da perda da irmã Maria. Esta condição permitiu ao autor oferecer, apesar de uma escrita descontínua, uma ordem mais ou menos estabelecida sobre as personagens que compõem a história da sua família.

O segundo acaso é o de na família do poeta persistir certo apelo para a memória, algo que, desde sempre – e hoje mais ainda – tem servido apenas de motivo às disputas internas entre herdeiros. Quando não, fértil matéria para moagem do tempo na cadeia do esquecimento. Aliás, é graças a esse cuidado que o nome Carlos Drummond de Andrade se mantém presença constante entre os leitores de várias gerações, dentro e fora do país.

Assim, o material reunido em Uma forma de saudade amplia sua significação; ao tornar-se público o que antes era apenas sabor do ambiente íntimo da família agora exerce o papel de contribuir para uma proximidade ainda mais viva entre o autor, o leitor e sua obra, relação que sustém toda sobrevida do artista. Pedro Augusto recorre ao próprio avô novamente para justificar a importância desse material aos leitores: “a importância documental” e a compreensão de família como “um rio de sangue que flui através de uma geração para outra”. Um nobre gesto que amplia o conceito de família e, porque o seu autor deixou de ser há muito uma figura privada. Na sobrevida do artista, sua família é também constituída por seus leitores, assim como no plano privado, os amigos também participam desse núcleo de afetos. E é por isso que essas páginas não recordam apenas o núcleo familiar justificado pelo DNA. Dois importantes amigos, com os quais Drummond manteve uma aproximação que foi além do convívio intelectual são trazidos nessas memórias: Manuel Bandeira e Rodrigo Melo Franco de Andrade.



Mas, as memórias de Uma forma de saudade não têm sabor agridoce. O termo que intitula este conjunto de textos está próximo daquele sentido forjado por uma certa memória cristã em referência aos que se foram. O poeta se concentra no registro melancólico da perda, cada texto funciona como se um obituário ou subsídios para tal. Interessado no registro, como quem se preocupa em oferecer uma verdade documental sobre o acontecido, os textos se revestem de uma percepção destituída da impressão chorosa, como quem sabe a necessidade de aceitar a força indelével do tempo da qual nenhum ser vivo é capaz de vencer.

Desenha-se uma consciência sobre o fim e compreende esta condição como algo que assume variada face: ora é um sopro, ora é um contínuo exercício de sofrer. Mas, uma vez vencida essa linha limite o que resta de nós é o que se diz sobre nós, como assegura a estrofe de “(In) memória”, de Boitempo recordada como epígrafe da última parte do livro: “De cacos, de buracos / de hiatos e de vácuos / de elipses, psius / faz-se, desfaz-se, faz-se / uma incorpórea face, / resumo do existido”.

O que sobra aos vivos é tarefa de zelar pelos que foram. Esta talvez seja a melhor síntese para os registros reunidos neste livro. Uma tarefa que Drummond não cumpriu apenas pela conformação da escrita. O acompanhamento da dor, os pedidos de missa em intenção dos mortos e as tentativas de contorno dos ânimos dos mais atingidos pela perda demonstram-no interessado em compreender os sentidos que perpassam a finitude. A consciência sobre os mortos não está apenas em vigília por sua eternidade através da presentificação da memória; reside aqui uma certeza de que só é possível passar à memória quando os vivos se encontram em profunda comunhão com os que se foram. Uma rede de afetos que poderá passar a exercer o papel de lição às novas gerações cada vez mais presas à falsa ideia de que a existência se é feita apenas de presentes e presenças.

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