Por que o pensamento político de Simone de Beauvoir é importante hoje

Por Skye C. Cleary

Simone de Beauvoir em seu apartamento em Paris, 1985. Foto: Gérard Gastaud


Simone de Beauvoir é conhecida pela frase “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Uma face de seu pensamento menos conhecida, e particularmente relevante hoje, é seu ativismo político, um ponto de vista que nasce diretamente de sua atitude metafísica sobre o eu, segundo a qual não temos essência fixa.

A máxima existencialista de que a “existência precede a essência” é sustentada pela filosofia de Beauvoir. Para ela, como para Jean-Paul Sartre, primeiro nos lançam ao mundo e então criamos nosso ser agindo.

Embora existam acontecimentos de nossa existência que não podemos escolher, como nascer, quem são nossos pais, ou nossa herança genética, não deveríamos usar a biologia ou a história como desculpas para o comodismo. O objetivo existencial é ser agente, tomar controle sobre nossa vida, transcender ativamente os acontecimentos de nossa existência perseguindo objetivos escolhidos por nós mesmos.

É fácil encontrar desculpas para não atuar. É tão fácil que muitos de nós passamos a vida fazendo isso. Pensamos que não temos liberdade individual – embora alguns neurocientistas estejam descobrindo que nossa vontade consciente pode controlar nossos impulsos. Convencemo-nos de que nossa posição não mudará nada, ao invés de dar forma ao mundo em que queremos viver. Culpamos ao Facebook por permitir as notícias falsas ao invés de avaliar criticamente o que lemos e repassamos adiante. Não é só preguiça fugir de responsabilidades do tipo, mas o que Beauvoir chamava “falta moral”.

Já que todos estamos afetados pela política, se decidimos não se envolver em criar condições de nossas próprias vidas nos reduzimos ao que Beauvoir chamava “vegetação absurda”. É um equivalente à recusa pela existência. 

O problema é que nem sempre está claro qual lado escolher. Inclusive a Beauvoir foi caro aprofundar-se nesta questão. Adotou posições políticas questionáveis: uma vez, por exemplo, considerou Mao – responsável pela morte de mais de 45 milhões de pessoas – “não mais ditador” que Franklin D. Roosevelt. A filosofia do compromisso político de Beauvoir tem um lado obscuro e pessoalmente cometeu vários erros de juízo, embora na sua filosofia exista uma forma de se enfrentar este tema.

Em Por uma moral da ambiguidade (1947) afirma que ser livre é ser capaz de justapor-se num futuro aberto cheio de possibilidades. Este tipo de liberdade pode se perder, mas não significa que podemos fazer o que queremos. Compartilhamos a terra e nos preocupamos uns com os outros, se respeitamos a liberdade para nós, temos que respeitá-la para os outros também. Usar nossa liberdade para explorar e oprimir o outro ou apoiar o lado que promove essas políticas é inconsistente com esta liberdade radical existencial.

Com os regimes opressivos, Beauvoir reconheceu que os indivíduos normalmente pagam um alto preço por enfrentar ditadores e a tirania da maioria, mas demonstrou concretamente – através de sua escrita e de seu compromisso político – o poder da ação coletiva para provocar uma mudança estrutural. Como boa intelectual, Beauvoir usou sua escrita como arma, rompeu estereótipos de gênero e se opôs às leis que proibiam as mulheres de ter o controle de seus próprios corpos. Coescreveu e colaborou com o “Manifesto das 343”, em 1971, que abriu o caminho para os métodos anticonceptivos e o aborto na França. Sua obra mais famosa, O segundo sexo (1949), serviu para que surgisse uma nova ordem do feminismo em todo o mundo.

Hoje, mais que nunca é vital reconhecer que a liberdade não pode ser assumida. Algumas das liberdades pelas quais Beauvoir lutou na metade do século XX estão em perigo. Ela alertava que não podemos nos surpreender que se utilizem os conceitos de “natureza” ou “utilidade” como argumento para restringir nossas liberdades. E tinha razão. Por exemplo: o argumento de usado por Donald Trump e outros de que a gravidez é um inconveniente para as empresas é uma maneira implícita de comunicar a visão de que é natural e econômico para as mulheres ser as máquinas que fazem bebês enquanto os homens trabalham. Beauvoir assinala que “a anatomia e os hormônios não definem nada mais que uma situação” e fazer dos métodos anticoncepcionais e do aborto, e que as permissões de paternidade não estejam disponíveis, encerra as possibilidades de homens e mulheres para poder ir mais além de suas situações, reforçando os rótulos estereotipados que mantêm as mulheres presas ao trabalho doméstico não remunerado e os homens na cadeia do trabalho remunerado.

Em tempos de agitação política, alguém pode se sentir oprimido, sofrer ansiedade e mesmo ver-se tentado a pensar como Sartre que “o inferno são os outros”. Beauvoir nos anima a considerar que os outros também nos oferecem o mundo porque lhe dão sentido: só podemos encontrar sentido na vida que nos rodeia entendendo os objetivos dos outros. Esforçamo-nos por entender nossas diferenças e aceitar a tensão que há entre nós. 

Há um itinerário até à paz mundial, já que nem todos escolhemos os mesmos objetivos, mas podemos todavia buscar maneiras de criar solidariedades – como trabalhar para revisar a posição dos autoritarismos, revoltar-se contra os tiranos, amplificar as vozes dos marginalizados – para abolir a opressão. A persistência é essencial porque, como diz Beauvoir, “a vida de um tem valor na medida que alguém atribui valor às vidas dos outros, através do amor, da amizade, da indignação e da compaixão”. Beauvoir seguramente tem razão: este o risco, a angústia e a beleza da existência humana.

* Este texto é uma tradução de “Simone de Bauvoir’s political philosophy resonates today” publicado em Aeon.

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