Os outros e eu


Por Luiz Mendes

Xuan Ioc Xuan



Sobre a transferência de sensações proporcionada pela literatura

A literatura, definitivamente, é uma experiência demasiado intimista. E é justamente essa a razão que torna dura a tarefa de levar outros a terem as mesmas sensações suas quando leem obras de ficção, ou mesmo a terem sensações distintas a partir do compartilhamento de suas sensações. Entretanto, é certo que chega um momento em que essa experiência intimista precisa eclodir, ser ouvida por outros, o que me faz crer que a ficção, em um momento posterior a sua interiorização, clama por ser transferida (não é o termo suficiente, mas não me veio um melhor que esse apropriado da psicanálise).

Portanto, é, sem dúvida, árdua a tarefa de escolha do texto literário a ser lido e compartilhado com outros leitores, especialmente os jovens, ouvintes sempre atentos, como que esperando um pouco de cais no meio do caos (efeitos da literatura!).

Morando em Brasília, e lidando com jovens dessa cidade, fui surpreendido pela notícia do lançamento do novo livro de Milton Hatoum, o primeiro de uma série, A noite da espera, cujo cenário é a capital do país. Pronto! Estaria aí o motivo para a escolha dessa obra como próximo texto literário a ser disponibilizado aos jovens leitores. Será? Certamente não! O ambiente pode contribuir para a escolha, mas não se resume a isso. O primeiro passo, na verdade é ser tocado de modo profundo pelo que leio. Desejar fervorosamente ler até o final; sentir vontade de compartilhar com alguém o que estou lendo; enxergar possibilidades de vislumbrar o humano nas páginas percorridas de um modo singular. Sentir, afinal!

Obviamente, meu passo inicial foi encomendar o livro à Cultura, já que estava em fase de pré-lançamento e o livro ainda não tinha chegado à livraria. Precisava ler urgente a obra... “Dia 27/10”, data de chegada de meu exemplar à livraria. Enquanto isso, assistia pela TV e pela internet às primeiras entrevistas com o autor e lia os primeiros esboços críticos lançados em blogs e jornais. Até que tive uma ideia de sobressalto. Se o livro é ambientado em Brasília, certamente haverá lançamento aqui. Não pensei duas vezes, entrei em contato direto com o autor:

O lançamento do novo romance em Brasília será no final de novembro, em data e lugar ainda indefinidos. Talvez no Beirute da Asa Sul.
Espero encontrá-lo por lá.
Um abraço,
Milton

Essa foi a resposta de Milton Hatoum quando a ele questionei se teria lançamento em Brasília e quando seria. Mesmo sendo evidentes as dúvidas sobre o local, em e-mails posteriores a esse ficou confirmado o Beirute como espaço do lançamento, às 18 horas do dia 30/11. Falei outros assuntos com ele, sempre gentil e atencioso, incluindo temas como literatura, falta de incentivo à leitura no Brasil e nas escolas. Interessante seria compartilhar nossa conversa, mas fica para outro momento. Quero focar aqui minha intensa busca pela escolha da obra exata a ser lida em grupo...

Fui! Na companhia de minha esposa, chegamos pouco antes das 18 horas. O dono do Beirute, um senhorzinho simpático, já folheava o livro, certamente buscando referências (que não eram poucas) de seu estabelecimento. Como muitos devem saber, a história trata da vida do jovem Martim, que inicia o romance com dezesseis anos e, junto de seus amigos da UNB, frequentam sempre o bar mencionado. Um homem, de uns quarenta e cinco anos, estava sentado à mesa próximo ao local onde Milton autografaria. Olhava-nos, bebendo cerveja e fingindo ler as primeiras páginas do romance. Um pouco mais distante, em outra mesa, dois jovens riam falando asneiras e bebendo cerveja. “A noite da espera” servia de suporte ao celular e à carteira de bolso de um deles. O bar estava cheio; era evidente o sorriso gratuito do gerente. Isso parecia pouco importar ao dono, que, em momento algum, conferia a quantidade de fregueses presentes. Apenas aguardava o escritor; eram amigos de outras datas...

Simples, amável com o senhorzinho e com outras senhoras presentes há mais tempo que eu, após alguns cumprimentos na recepção, Milton se dirigiu à mesinha onde iria atender a seus leitores. Falava vigorosamente com cada um antes de autografar, até que, ao ver a fila aumentar, reduziu as palavras e praticamente apenas escrevia as dedicatórias... Eu seria o próximo, depois de uma senhora, quando um jovem atrás de mim reclamou da demora. Sabia que não seria elegante conversar tudo o que queria com Milton. Entreguei meu livro, onde o escritor, após pensar brevemente olhando o espaço em branco das primeiras folhas, começou a escrever. Sentei a seu lado para fotos, tiradas por minha esposa; me apresentei como sendo “O Luiz do e-mail”. Ele reconheceu e me pediu desculpas pela demora em responder a algumas mensagens. Que nada! Quase não demorava. Talvez uns dois dias, no máximo. Esse pedido de desculpas me fez confirmar sua simpatia. No calor de Brasília, ele suava. Uma mosca o incomodava. Apenas uma garrafinha de água de seu lado esquerdo, sobre a mesinha, derramando as últimas gotas que escorriam pelo plástico, evidenciando que o conteúdo já não estava mais gelado. Enfim, não estava muito confortável o local. Valia a receptividade do bar, mas decididamente não foi uma recepção tão interessante quando a que ele tinha acabado de ter em São Paulo. Brasília sempre nos surpreende... para melhor ou para pior!

Esse encontro foi bom e certamente contribuiu na escolha de A noite da espera para ser lido com os jovens, além, é claro, do primeiro motivo dito acima que me levaria a tomar essa decisão: a ambientação. Avenidas de Brasília, L2 Norte, W3 Norte e Sul; locais conhecidos de Brasília, como a rodoviária do Plano Piloto, o Beirute, as superquadras das Asas Norte e Sul e, claro, a região da UNB e o Lago Paranoá. Restava o primordial para eu bater o martelo da escolha da obra: a minha leitura, as minhas sensações sobre o romance.

Eu já havia lido boa parte do livro quando fui ao lançamento no Beirute da Asa Sul e já estava evidenciado um aspecto de que estava gostando muito: a formação sentimental do jovem Martim, separado da mãe em São Paulo, após esta declarar sua paixão por um pintor a Rodolfo, o pai. Este, por sua vez, vindo trabalhar em Brasília, na Novacap, empresa de construção civil, trouxe consigo o filho, Martim.

Na nova cidade, um canteiro de obras com construções frias, às vezes vazias de sentido, sem amigos e com saudades da família em São Paulo, os conflitos com o pai, que se agravariam mais ao longo da história, e a espera por um reencontro, sempre adiado, com a mãe, foram constituindo as tramas desse enredo. Além disso, desvelavam-se diante de Martim cenas difíceis de represálias do período da ditadura, especialmente nas redondezas da UNB e na atualmente extinta escola de aplicação da universidade. Nesse entremeio, amigos de um grupo de teatro atuante contra a ditadura que ele conheceu ao acaso formam sua nova e intensa convivência.

Fui sendo conduzido de forma convincente, admirando a clareza narrativa de Milton, a descrição precisa e agradável dos espaços da capital, a formação sentimental do personagem narrador. Ou seja, me senti atraído pela história desde o começo, simpatizando-me com Martim. No entanto, minha atitude de conivência foi aos poucos mudando quando percebi que aquilo que Milton disse em uma entrevista sobre o fato de não ter tido intenções de elaborar um romance sobre a ditadura militar no Brasil, ou que este período da recente história brasileira apareceria apenas como pano de fundo não se confirmou! Na realidade, o período ditatorial é a mola propulsora de toda a narrativa. É ela que determina as ações dos personagens, chegando a dispersá-los, a separá-los, no final, permitindo que o enredo siga outros rumos e nos faça esperar pelo segundo volume da trilogia. Passei, então, a dialogar de outro modo com a obra. Vislumbrei características românticas (do Romantismo) evidentes na costura dos personagens, especialmente Martim, cujo nome, inclusive, lembra o personagem de Iracema, do Alencar (para mim, não apenas lembra, tem relação direta com a obra romântica). Mas haveria problemas nesse tipo de ralação? Em princípio não. Porém, gritou forte a constituição de Martim como um personagem bom, sofredor, saudosista, às vezes passivo ante as truculências do pai. Sem falar em sua participação “de tabela” nos movimentos estudantis da ditadura. Um perfeito exemplo de humano rousseauniano. (Não acredito muito em Rousseau. Fui convencido por Nietzsche). Me deu a sensação de que Martim estava completamente perdido e, seguindo a onda dos amigos, não tinha outra opção a não ser assimilar o discurso de seus companheiros. Por exemplo, a cena em que Rodolfo dá a Martim um cheque de alto valor, depois, por motivos não muito claros, a não seu embate com o filho, exige que o jovem o rasgue porque iria sustar o valor é de dar “pena” do personagem. Se não fosse o amigo Nortista, que toma o cheque e o desconta imediatamente, Martim teria seguido as ordens do pai. Muito ingênuo nosso protagonista, não?

Bom, de modo estranho, distinto, essa característica romântica da constituição dos personagens e da história em si foi o aspecto que, ao ser percebido por mim, me prendeu à narrativa até o momento final, quando surge novamente a questão: seria o caso de essa obra ser escolhida como texto a ser lido e discutido com os jovens sob minha responsabilidade? Bom, retomei os argumentos anteriores e cheguei a uma síntese:

Primeiro, o cenário, a ambientação, como falei antes. Uma Brasília familiar aos jovens de hoje, por suas ruas, avenidas e construções frias e ao mesmo tempo ainda desconhecida deles, por ser marcada fundamentalmente pela ditadura militar. É certo que do ponto de vista como foi tratada na história de A noite de espera, o tema “ditadura militar” beira certos clichês, entretanto, mesmo assim, vale a pena ler.

Segundo ponto: o autor. Excelente contador de histórias, ou melhor, de memórias, sem dúvidas, é o Milton Hatoum. O encontro por e-mails, o autógrafo no Beirute. Muito simpático, receptivo e humano nas palavras.

Terceiro: o personagem. Ressalvadas suas características românticas que o tornam meio perdido e, em minha ideia, sempre com as sobrancelhas arqueadas, olhos arregalados e a boca semiaberta, em expressão de surpresa e susto, Martim é cativante. Conveniente fazer ressalvas a essas características ou não, elas podem ser postas em discussão no ato da leitura, em processo de autoidentificação, ou não, entre protagonista e os jovens leitores de meu convívio.

Basta! Tenho os argumentos suficientes para finalmente decidir que vou adotar A noite da espera. Não porque seja, em certo sentido, um reflexo do que está ocorrendo nos dias de hoje no Brasil, como alguns críticos têm dito, ou porque seja um romance de formação que possa tocar direto nos jovens que o lerão. Não! Acredito mais que minha escolha partiu de vários conflitos internos que vivi durante a leitura do romance, pincelados acima.

Eis, finalmente, um aspecto tão necessário da arte literária para nosso caos moderno: ela nos leva a criar percepções e afetos e, partindo da obra de Milton, dialogando com e contra os sentidos ali presentes, a fim de criar novas sensações ainda não ditas, pretendo levar a cabo esse trabalho com os jovens. Quando finalizar, volto aqui para lhes contar o que nos sucedeu nessa empreitada...          

Comentários

Unknown disse…
Muito bom professor! Como sempre um exímio critico de boas leituras, sutil nas análises e fiel no que acredita! Grande abraço!

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

16 + 2 romances de formação que devemos ler

Mortes de intelectual