Os Diários de Sylvia Plath: a arte próxima da vida
Por Fernanda
Fatureto
Sylvia Plath
não é a Marilyn Monroe da literatura moderna, como afirmou certa vez um de seus
biógrafos. O estereótipo de femme fatale aliado à ingenuidade construído por Marilyn
não condiz com a força intelectual de Sylvia – fato que se confirmou em sua
produção acadêmica e literária. Os Diários de Sylvia Plath: 1950-1962 reeditados
em 2017 pela Biblioteca Azul e organizado pela pesquisadora Karen V. Kukil, vem
confirmar o que leitores mais atentos já sabiam: Sylvia Plath foi muito mais
que uma devoradora de homens, como escreveu em seu poema “Lady Lazarus” (“I eat
men like air”). Também foi muito mais do que a escritora em profundo
descompasso emocional que cometeu suicídio aos 30 anos. A poeta norte-americana
escrevia diários que relataram seu desejo em ser reconhecida intelectualmente.
Seus diários mostram a profundidade de seu pensamento e a maturidade da escrita
que a alçou como uma das principais escritoras do século XX.
Os registros
começam quando tinha 18 anos e estava para ingressar no Smith College –
importante faculdade em Northampton, Massachusetts. Em plena década de 1950,
vivenciou a transição dos costumes onde a mulher via-se entre as possibilidades
do mercado de trabalho e a vida doméstica. Nessa época, Sylvia Plath já
demonstrava arguto senso crítico e escreveu no diário de 1950: “Enquanto a América morre como o grande
Império Romano morreu, enquanto legiões tombam e os bárbaros conquistam nossa
milionária terra tenra (…) em algum lugar estará o povo que de qualquer maneira
nunca teve muita importância em nosso esquema. (…) E as crianças na escola
suspirarão e aprenderão os nomes de Truman e do senador McCarthy. Ah, é duro
para mim me reconciliar com isso tudo. (…) Mas nos anos fáceis poderei
amadurecer e descobrir meu caminho. Agora estou vivendo uma situação crítica.
Estamos todos à beira do precipício, isso exige muito vigor, muita energia,
seguir pela borda, olhar para baixo, ver a escuridão profunda sem ser capaz de
identificar através da névoa amarelada e fétida o que jaz abaixo do lodo, na
lama que escorre cheia de vômito; e assim sigo em frente, imersa nos meus
pensamentos, escrevendo muito, tentando achar o centro, um significado para
mim”. Escrever era, portanto, um modo de encontrar sentido para a vida. Desde
cedo, sua arte era sua vida: “(...) desejo coisas que me destruirão no
final...imagino se a arte divorciada da vida normal e convencional é tão vital
quanto a arte combinada com a vida”, escreve.
Mas existia
um ponto de melancolia em sua personalidade como um poço fundo onde buscava
suas melhores metáforas, mas que também a jogava para baixo. Aos 18 anos
escreveu: “Se eu parar, se me voltar para dentro, enlouqueço. (…) E se você não
tem passado ou futuro, que no final das contas são elementos que formam o
presente todo, então é bem capaz de descartar a casca vazia do presente e
cometer suicídio.” A primeira tentativa foi em 24 de agosto de 1953, após uma
temporada em Nova York para fazer um estágio na revista Madeimoselle. Sylvia
foi selecionada para ser editora convidada ainda quando frequentava a
faculdade. Pode conhecer o lado menos glamouroso da cidade, como a competição,
o trabalho excessivo, a metrópole que devorava sonhos. Isso a exauriu e foi tema
para seu único romance, A redoma de vidro, que seria publicado em 1963, meses
antes de sua morte.
Após essa
primeira tentativa, em 1953, passou um período no Hospital McLean, em Belmont,
e voltou para concluir o último ano do Smith College em fevereiro de 1954. Este
episódio a marcaria por ter sido submetia a terapia de eletrochoques (método
brutal muito usado na época). Dessa fase não há registros nos diários. Apenas
entrelinhas que confirmam o ocorrido: “Pare de pensar egoisticamente em
navalhas & em se machucar & pôr fim em tudo. Seu quarto não é sua
prisão. Você, sim. E o Smith não poderá curá-la, só você mesma. (…) Nada
permanece igual para sempre.”
Após se
recuperar do susto, Plath volta a traçar metas. Inscreve-se e ganha uma bolsa
da Fullbright para o curso de inglês no Newnham College da Universidade de
Cambridge e parte para a Inglaterra. Frequenta o curso de 1955 a 1957. Por lá
escreve muitos poemas e contos, como deixa registrado: “Permanece o fato de que
escrever é, para mim, um modo de vida: E escrever não somente a partir de um
ponto de vista pragmático, para ganhar dinheiro. Confesso, considero a
publicação uma prova de valor e confirmação da habilidade – mas escrever exige
prática, esforço contínuo”. Envia seus trabalhos para diversas revistas
literárias e encontra portas abertas e muitas fechadas. O caso mais emblemático
na carreira de Sylvia Plath foi as diversas recusas da The New Yorker em
aceitar seus poemas. A importante revista só foi aceitar seus poemas na década
de 1960 – foram dez anos de tentativa e erro. Ela sabia onde queria chegar ao
se interrogar no diário: “Posso escrever? Conseguirei escrever se me dedicar o
suficiente? Quanta coisa preciso sacrificar para poder escrever, de todo modo,
até descobrir se sou mesmo boa?”.
Na
Inglaterra, mantém correspondência com Richard Sassoon e vive um romance
instável. Ao contrário dos outros amantes, Sassoon não correspondia à paixão de
Plath. Em 1956, numa festa de Cambridge, a poeta encontra pela primeira vez Ted
Hughes. O encontro determinaria a intensidade e violência dessa relação. Plath
registra no diário de 1956: “(…) e depois ele me beijou na boca puxa vida e
arrancou meu lenço do cabelo, meu querido lenço vermelho que enfrentara o sol e
muito amor (…) e meu brinco de prata favorito: ah, vou ficar com isso, rugiu. E
quando beijou meu pescoço eu o mordi com força no rosto, demoradamente, e
quando saímos da sala escorria sangue pela face dele. (…) Tanta violência,
posso entender por que as mulheres se apaixonam pelos artistas. O único homem
no local que era tão grande quanto seus poemas, as palavras jorravam maciças e
dinâmicas; seus poemas são fortes e intensos como o vento forte na viga mestra
de aço. Gritei para mim mesma, pensando: ah, me entregar a você, lutando,
esperneando. O único homem que conheci capaz de obliterar Richard, desde que
sobrevivi.”
Ted Hughes
era um poeta reconhecido na Inglaterra, com um livro publicado, quando casou
com Plath. A poeta ainda não havia publicado nenhum livro. O casamento seria
marcado pelo amor e pela competição entre dois poetas tentando se estabelecer
no mercado editorial. No início da relação, em 1957, Hughes tinha vantagens
sobre Plath. Algo que o tempo iria suprimir.
O fato
estranho é que, logo após a morte de Plath, Ted Hughes assumiu o espólio da
poeta. A primeira edição dos diários nos EUA vinha cheia de cortes e censura.
Eram partes que Hughes considerada prejudicial à sua imagem. E os diários dos
últimos três anos de vida de Plath – 1960, 1961 e 1962 – foram destruídos por
Hughes. Ele agiu assim, também, com a primeira edição do livro mais famoso de
Sylvia Plath – Ariel, publicação póstuma em 1965. Apenas recentemente é que se
pode conhecer a versão original de Ariel, escrita e organizada por Plath. Ted
Hughes tinha o domínio da vida intelectual de Plath. Em dado momento, ela
desabafa no diário de 1958: “Meu risco, em parte, é me tornar dependente demais
de Ted, creio. Ele é didático, fanático – esta última característica percebo
melhor quando estamos com outras pessoas que podem julgá-lo de modo mais
imparcial que eu (…). É como se eu fosse sugada por um redemoinho tentador
porém desastroso. Não há obstáculos entre nós – é como se nenhum de nós dois –
ou eu, especialmente – tivesse pele, ou tivéssemos uma única pele e ficássemos
a nos chocar & esfregar”. E conclui: “Mas eu preciso ser eu mesma –
tornar-me eu mesma & não permitir que minha personalidade seja construída
por ele. Ted me dá ordens (…)”.
Nos Diários
de Sylvia Plath também se pode saber das diversas influências que permearam a
escrita da poeta norte-americana. Era leitora de Virginia Woolf, tinha enorme
admiração pela escritora britânica. Afirmava que chegaria, um dia, a
ultrapassar Woolf. “Eu me sairei melhor que ela. Nada de filhos até que eu
consiga isso. Minha saúde é criar histórias, poemas, romances, da experiência:
é por isso, ou melhor, é por isso que é bom que eu tenha sofrido & descido
ao inferno, embora não todos os infernos. Não posso viver só pela vida: mas sim
pelas palavras que detêm a torrente. Minha vida, sinto, não será vivida até que
haja livros e histórias que a revivam perpetuamente no tempo (…). Virginia
Woolf ajuda. Seus romances tornam os meus possíveis”.
Sylvia Plath
era contemporânea das poetas Adrienne Rich e Anne Sexton. Conviveu com as duas
poetas em momentos distintos e o livro demonstra a competição que se
estabelecia entre as poetas. Todas iriam se destacar na literatura. O que as
diferenciam era permanecerem desconectadas do sentimentalismo, reforçando uma
linguagem original. Como Sylvia Plath descreve seu próprio método de escrita: “Preciso evitar a pieguice exótica-romântica-glória-glória. Incluir detalhes
preciosos. Qual é a minha voz? Feminina, ai de mim, porém implacável. Dura, por
favor, sem outra moral fora a crença de que amadurecer é bom”.
Os Diários
de Sylvia Plath: 1950-1962 se configuram, então, um dos melhores lançamentos de
2017 pelo cuidado editorial e pela extensão de detalhes – são 822 páginas
repletas de referências, incluindo apêndices e notas. Os diários são o ponto
central da produção de Sylvia Plath, onde o próprio ato de registrar a vida
real alimentava sua ficção e vice-versa, como escreveu: “Preciso lembrar,
lembrar, a partir desse material se faz a escrita, a partir do material
recolhido da vida.”
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