O Grafite e Édipo Rei
Por Wagner Silva Gomes
É próprio da
literatura a resistência porque a literatura parte do litígio, ou seja, da
contestação. Por surgir da tradição oral a literatura tem o caráter de ocupar
os espaços em que as pessoas atuam, convivem, e criam histórias a partir da
experiência sem necessariamente ter o aval de documentação legal.
Isso é o que
faz alguém contar a história de um filho abandonado pelos pais ao nascer e
levado para fora da cidade onde esses moram. Quando chega na juventude esse
filho volta, assassina seu pai sem o saber que era ele. E num momento que a
cidade era ameaçada por um monstro (a esfinge) ele é o único a revelar o seu
enigma, livrando a cidade da destruição. O jovem então namora com a coroa sem
saber que é sua mãe. Até que um dia um velho cego e sábio, a quem desprezam
suas palavras, que tinha encontrado o jovem em sua chegada, sabendo da
identidade do jovem observa os acontecimentos na cidade, e por fim revela
porque essa passa por maus momentos. Esta é, em linhas gerais e atualizada, a história de Édipo Rei, de
Sófocles, contada na Grécia Antiga por volta de 427 a.C.
Hoje nas
cidades o grafite é o enigma revelado por seus filhos abandonados sem precisar
revelar sua identidade, ou seja, sua autoria legal. Como um ditado popular, uma
máxima, as frases do grafite na modalidade pichação, a qual aqui me debruço,
trazem o olhar cidadão expresso em verdades produzidas pela ação do homem nos
espaços. Então o grafite é uma forma de revelar os mistérios da cidade em forma
de imagem e/ou escrita, esclarecendo-a, lembrando o pai da linguística moderna,
Ferdinand Saussure, que via na palavra o caráter de signo, como conteúdo e
forma. Faço aqui a minha pichação sobre ele.
O poeta
Paulo Leminski foi um autor que sacou essa veia poética do grafite na
modalidade pichação como uma voz ativa na construção dos espaços sociais. Um
poema como "Casa com cachorro brabo/ meu anjo da guarda/ abana o
rabo" é uma verdade, é a expressão de um modo de participação na vida
social, pois toda a gente já passou perto de uma casa com cachorro brabo, ele
latiu e provocou aquele frisson de reação que parece que alguém o agita e o faz
tremer, e o cachorro quando está parado e balança o rabo parece até que é
segurado (talvez por um anjo da guarda). Então esse poema poderia ser uma pichação
num espaço de casas com cachorros brabos, onde passa muita gente, sendo assim
uma máxima, um ditado sobre o local.
A
publicidade tem esse caráter de verdade sobre a vida, sobre o convívio, e
procura ocupar os espaços. Aliás ela tenta fazer com que a expressão de uma
marca seja tida como um ditado, uma máxima, uma verdade, e muitas vezes
consegue. O próprio nome Coca-Cola poderia ser uma pichação, pois é o
entendimento de que o gosto áspero da folha de coca gruda como cola. Mas a
frase "coca cola" está colocada no mercado para vender, não para
exercer a cidadania de nos alertar sobre a construção da cidade, sobre a
necessidade de revitalizar a vida.
Daí a
importância do grafite na modalidade pichação e da literatura que traz esse
caráter de máxima, de ditado, de verdade, de pessoas atuantes que se preocupam
com a cidadania, com o bem-estar, com o convívio, fazendo de sua experiência
coletiva a expressão de uma verdade.
Não precisa
ser grafiteiro ou poeta para isso. Esses o são pela regularidade e por assumir
uma bandeira. Mas quanto mais participação, voz ativa, através da compreensão
dos espaços, refletindo-os de forma inteligente, seja em uma ou duas frases,
mais a gente se verá neles, mais nos sentiremos com vontade de atuar neles,
mais os ocuparemos, e então mais eles serão nossos de verdade.
Propus a
leitura dos poemas de Paulo Leminski para um grupo de adolescentes no serviço
de Acolhimento Institucional, um serviço da Assistência Social promovido a
pessoas que por motivos graves foram separadas de suas famílias pela justiça,
até sua recuperação, ou, em caso de impossibilidade, até a adoção, até ficar
adulto, ou até a emancipação, com esse viés de expressão da ocupação sobre os
espaços, da verdade provinda da atuação e do olhar sobre a vida.
Essa seria a
minha fala na ocupação dos estudantes secundaristas na escola Almirante Barroso
em Vitória-ES, que fazem o protesto principalmente contra aplicação da PEC 241.
Nós do grupo de poetas "Sarau Contra o Golpe" falaríamos sobre a
coletânea de poemas "Osso de Escrever" e sobre resistência, após
assistirmos ao documentário sobre o grafite "A febre" e
disponibilizarmos livros para eles lerem, conversando com alguns estudantes que
chegavam até nós.
No entanto,
a nossa fala e o nosso sarau não foi possível porque os estudantes
secundaristas receberiam a imprevisível visita do Ministério Público, que está
dando o suporte legal e os informou sobre um possível mandado de desocupação da
escola, que seria emitido no dia seguinte, podendo assim ter ação violenta da
polícia. Então eles iriam se reunir em assembleia e fomos convidados a nos retirar.
Espero que
eles continuem resistindo na ocupação e que o Ministério Público seja honesto
com eles, os respaldando com base no direito de greve para impossibilitar a
invasão da polícia.
Dialogando
com o que eu falava antes, o direito de greve na resistência legal dos
estudantes é próximo à resistência da literatura e a do grafite, que são
expressões legais. Separar a modalidade do grafite pichação do direito de ser
grafite, de ser legal, é condenar o litígio, isto é, a contestação, como
separar a literatura engajada do direito de ser literatura também o é, embora
isso não a criminalize, ao menos em tempos de democracia. Esses dois exemplos
são formas de exclusão, claro que, em níveis diferentes. A ação dos estudantes,
tem a capacidade de acionar os dois níveis, pois separar sua ocupação da
legalidade é tirar deles o direito de fazer política, de construir a escola,
isto é, de contestar e intervir no espaço que atuam.
***
Wagner Silva Gomes é praticante e amante do olhar periférico
da molecagem que enxerga as coisas poeticamente. É licenciado em
Letras-Português pela UFES com o trabalho de conclusão Objeto Palavra: um
vagar entre matéria e pensamento na poesia de Casé Lontra Marques e
pós-graduado em Cinema e Linguagem Audiovisual pela Faculdade Estácio de Sá com
o trabalho de conclusão A Condição Humana em Psicose. É poeta, romancista,
professor e educador social. Publicou o romance Classe Média Baixa (Editora
Pedregulho, 2014), o romance em formato digital Nix: Microfone por Tubos de
Ensaio (Amazon 2017) e o livro infantil A Arrebolha na Boca da EDP Rainha,
também em formato digital (Amazon 2017). Figura na décima edição da Revista
Escala, nas coletâneas Osso de Escrever e Sabadufes, e em participações em
saraus como o Poesia na Calçada e a Cachaçada Literária. Escreve frequentemente
nas redes sociais poemas e magmas para possíveis assentamentos literários. Foi
integrante do programa da rádio universitária Teatro dos Desoprimidos com o
personagem Malcolm X.
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