Minotauro, de Benjamin Tammuz
Por Pedro Fernandes
Ovídio,
autor romano, descreve o Minotauro como metade homem e metade touro. Na
mitologia grega, a criatura é representada como um homem com cabeça bovina; conta
o mito que habita o centro de um sofisticado labirinto construído para o rei
Minos e projetado pelo arquiteto Dédalo e seu filho Ícaro. Dessas origens,
Benjamin Tammuz preserva uma diversidade de significações que não deve ser
desprezada pela leitura de um romance cujo título propositalmente traz explícito
o nome da figura mítica. Dessas significações, este texto elege três delas, ao compreendê-las
enquanto esclarecedoras do intrincado imbróglio narrativo proposto pelo escritor
israelense.
Quando a
família de Alexander Abramov descobre que as fronteiras do grandioso paraíso que
erguem numa zona neutra da Palestina não são suficientes para a educação do
filho, este é obrigado a sair do conforto e zelo extremos para conhecer uma
realidade árida em todos os aspectos; tão logo vence os anos de educação básica
o agora adolescente é levado para uma escola interna onde cumprirá a única formação
possível para o lugar onde vive: o curso de agronomia. É nesta ocasião que o
mundo se revela como uma máquina cruel ante a qual é preciso estabelecer um
itinerário no qual se preserve, acima de tudo, seus interesses individuais, sob
pena de perecer à primeira dificuldade.
A condição de
apartado do mundo garante a Alex a possibilidade de construir essa persona cuja
inteligência e astúcia ao mesmo tempo em que lhe garante sua sobrevivência pode
significar sua ruína. Nos três períodos da sua vida revelados pela narrativa,
há três episódios que o revelam enquanto encarnação da figura mítica que nomeia
o romance – e aqui está a primeira das significações apresentadas nesta leitura.
Sempre
situado no centro de tudo – é a figura principal da propriedade onde vive com
os pais e a criadagem, o menino que se senta no meio da sala de aula, o
elemento pelo qual todos os do alojamento guardam reverência por sua condição
excrescente no ambiente – quando conhece a pequena colega de turma Léa e esta
perde o pai assassinado por árabes, toma para si as dores dessa perda e assume
o compromisso com a menina de, quando puder, vingar a morte do pai.
Antes disso,
porém, Alex pune os colegas que o insulta pela condição de centro de tudo arrancando-lhe
sangue numa briga violenta. É seu primeiro contato com a natureza primitiva da
força enquanto ordenadora das coisas. Depois, na escola técnica, quando se vê ameaçado
por um árabe das redondezas que o incita à morte, Alex faz as vezes do assassino
numa luta de extrema força selvagem. Depois de adulto, novamente recorrerá a
esse poder para resolver o que passa a considerar uma figura capaz de tornar
impraticável seus planos para com a jovem Téa.
Isto é, as
situações e os episódios trazem ecos da natureza do Minotauro. A centralidade
no mundo, o gênio ardiloso e a sede de sangue se constituem em força instintiva
que pode pertencer a qualquer um, mas encontra nesta personagem as condições
favoráveis de operação: todos que de alguma maneira servem ao desmantelamento
de seu círculo individual perecem à sua força.
A imagem do círculo
oferece ao leitor de Minotauro pelo
menos três sentidos cujo ponto de inflexão é o labirinto: o espaço onde habita
Alexander, uma casa de reboco vermelho situada no centro de um extenso pomar no
alto de uma colina; a teoria que ele próprio formula para tratar sobre a
possibilidade de instaurar uma revolução na música, tal como seu compositor
favorito Mozart, consiste em romper com três círculos, que parte da melodia,
passa pela composição e alcança o encontro com outra percepção da essência constitutiva
do material musical. Esta teoria da qual a própria personagem desconfia de sua
possibilidade porque o terceiro círculo pode significar um não retorno à ordem
e porque só é possível de se realizar pela estreita cumplicidade com outros
será transformada na própria maneira como constrói para si sua existência,
fabricada esta de outras três rupturas: da prisão
a que foi condenado na propriedade dos pais; dos limites de domínio sobre a vida;
e da expropriação do outro em nome de sua obsessão amorosa.
O terceiro
sentido que a imagem do círculo se apresenta no romance é a própria estrutura
narrativa de Minotauro. É a partir do
centro que mobiliza todo o imbróglio narrativo – isto é, as correspondências entre
Alexander e Téa – até a exposição de todas as situações que aproximam as duas
personagens que se constrói o fio que sustém a história. Circular, labiríntico –
Minotauro é um puzzle. Este exercício constantemente apresentado como a principal característica
desta obra de Tammuz, portanto, encontra relações que preenchem tema, estrutura
e forma, cuidadosamente alinhavados com um intuito apenas: responder pelo caráter
de verossimilhança do romance; tornar crível a estreita aproximação entre
figuras de condições e universos tão distantes e distintos.
O fio principal
não é apenas o da história de amor obsessivo entre Alexander e Téa; entrelaça-se
a este outro, o da obsessão de G. R., vizinho de Téa, ainda quando garoto. A
história entre G. R. e Téa é espelho da história entre Alex e Léa e porque o
palestino julga o mesmo destino da sua história para a dos dois ingleses e se
posiciona no seu interstício interessado em mudar as linhas então mais ou menos
determinadas. Obviamente que o destino, quase sempre cruel com quem se mostra
seu opositor reserva uma resposta a Alexander.
E é nesse
desfecho não previsto pelo faro astucioso de Alex em que reside a última das
significações que o romance recupera do mito. Se reiteradamente esta personagem
é descrita pela segurança de suas atitudes, pela centralidade no mundo, pela
astúcia, pela racionalidade, pelo porte físico inusitado frente às figuras coadjuvantes,
a descrição oferecida pela narrativa sobre seu fim se apresenta marcada por certa
infiltração fantástica que confunde a imagem do homem com a da criatura mítica.
É quando claramente o leitor se encontra ante a revelação da imagem que responde
pelo título do romance e que se espraia por toda narrativa.
Ciente da
impossibilidade de amar será justamente quando tragado pela força indelével a
que todos os mortais estão suscetíveis que Alexander Abramov se perde no
próprio labirinto erguido por suas forças. O amor, primeiramente apresentado como
uma obsessão, é elemento que, justamente pela condição aqui vivida, o conduz à
ruína. De Alex, Téa e todos os demais: G. R. e Nikos. O amor principal neste
romance não é o amor comum, mas sua forma sublime, também mítica porque
idealizada, de cariz platônico, realizado pela imaginação e talvez por isso
impossível de se materializar plenamente na confluência dos corpos.
Nisso, Minotauro toca em outra das questões
pertinentes a existência de nós todos: as expectativas que costumamos deitar
para o nosso futuro. G. R., Nikos e Alex nutrem-se dessa mesma condição. Tão
logo encontram Téa reconhecem nela a mulher de suas vidas e em torno dela depositam
toda uma existência baseada no ideal que os move. Ela, por sua vez, se perceberá
horrorizada com a desventura que traz à vida dos outros, talvez porque assuma a
culpa alheia, sempre incapaz de incorrer ao homem, de que somos metade ora o
que prevemos ora o que o acaso nos impõe. Se de um podemos construir suas determinações,
do outro não nos resta quaisquer possibilidades de controle.
Benjamin Tammuz revisita alguns lugares do mito para dizer o quanto ainda seu imaginário (determinado ou não) participa das nossas existências, para bem ou mal. Isto é, e o leitor atento terá per cebido ao longo deste texto, o romance lida com parte delicada de nossa condição; a partir de um tema tão recorrente na literatura (e nas nossas relações), a narrativa de Minotauro investiga sobre nossas angústias e, claro, como a ideia, aparentemente banal (no sentido de uma morte daquele ideário romântico do amor) estende suas determinações sobre temas tão distantes e tão determinantes de nossa coletividade.
Benjamin Tammuz revisita alguns lugares do mito para dizer o quanto ainda seu imaginário (determinado ou não) participa das nossas existências, para bem ou mal. Isto é, e o leitor atento terá per
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