Letras andróginas
Por Silvia Alexandrowitch
A poesia de
Lord Byron e Arthur Rimbaud não coincide em nada, mas a vida e as características
dos dois todavia permanecem como modelo estético de artistas do tipo boêmios e
malditos. O primeiro foi um poeta romântico, o segundo, um simbolista. O primeiro
morreu em 1824 e o segundo nasceu em 1854. Por nenhum deles passou pela cabeça criar
um pseudônimo para se proteger numa sociedade embora disposta a aplaudir suas
obras, moralmente rígida, e logo condenatória de suas vidas extravagantes. O
dandismo, a androginia e a ambiguidade sexual foram motivos para escárnio, mas,
no fim de tudo, eram homens com todos seus atributos. Isto somado ao imenso
talento permitiram-lhes escrever intensa e prolificamente e viajar por países
exóticos. Eram homens, tinham seus direitos.
Byron acumulou
dívidas e escândalos, excessos de todo tipo: amantes, amores homossexuais,
filhos abandonados, travestismos. Buscou o autoexílio para se livrar da censura
britânica que o acusava de sodomia e incesto; viajou por todo o Mediterrâneo até
se cansar e ficar na Grécia, onde apoia a luta pela independência do país do
jugo do Império Otomano. Lutou sem experiência junto ao exército rebelde, adoeceu,
morreu e se converteu num herói. Tinta trinta e seis anos, mas sua influência
poética e estilística ia muito longe na imaginação de várias mulheres que começavam
a escrever às escondidas. Sua bissexualidade pode ter representado para elas um
exercício do mais livre capricho.
O poeta
menino e primeiro enfant terrible da
história da literatura, Arthur Rimbaud, escrevia poemas em latim já aos 11 anos
de idade e quatro anos depois os publicava. Aborrecia-se profundamente de sua provinciana
Charleville e proclamava que “a moralidade é a debilidade do cérebro”. Fugiu para
Paris e sua da escrita abandonou todas as características românticas e
parnasianas para se entregar em corpo e alma a ser “um alquimista das palavras
através do desordem dos sentidos”. Nesta etapa escreveu sua famosa frase “O eu
é um outro”. Esse outro necessitava de gênero. Aos 17 anos seduziu o poeta
simbolista Paul Verlaine. Sua vida selvagem empapada de absinto e haxixe não impedia
escrever seus extraordinários e moderníssimos versos. Aos 18, Rimbaud se refugiou
em Londres com Verlaine para viver uma relação atormentada que acabou em tiros
e prisão para seu amante desesperado. Deste período de sua vida saíram as pioneiras
obras Uma temporada no inferno e As iluminações, antecipando toda a
poesia que viria depois.
Rimbaud, Harar, 1883. |
Aos 20 anos,
Rimbaud havia se aborrecido da escrita. viajou, encontrou emprego no Iêmen,
onde teve várias concubinas e finalmente se instalou em Harar, na Etiópia, onde
fez fortuna com o tráfico de armas. A velha
ferida no joelho provocada pelo tiro de Verlaine o obrigou a voltar para a
França para que fosse amputada sua perna. Seis meses depois morreu. Tinha 37
anos. Depois de deixar uma obra poética deslumbrante, uma vida de excessos e,
sobretudo, um patrimônio imaterial e atemporal de herói maldito que serviria a
homens e mulheres de todos os tempos.
No longo intervalo
de tempo do século XIX que vai do romantismo de Lord Byron ao simbolismo de
Rimbaud e ao naturalismo do fim do século surgiu um fenômeno que agora poderíamos
chamar de “protofeminismo”. Algumas grandes escritoras desse século de Byron e
Rimbaud decidiram vestir-se como os homens de sua classe para conseguir entrar
em bibliotecas, clubes e espaços masculinos, aprofundar-se no gênero humano e
suas relações a fim de criar personagens de ficção. Outras compreenderam e
desenvolveram sua androginia desde quando jovens como um dom para a criação literária.
Amantine Lucille
Dupin nasceu em 1804 e 28 anos depois optou por se chamar George Sand e
vestir-se com roupas masculinas. De seu romance com o também escritor Jules
Sandeau surgiram seu debut literário e seu pseudônimo: em seu primeiro romance,
Indiana, já assinava com George Sand.
Em 1932. Seguiu-se a este livro uma torrente de romances inspiradas em sua vida
no campo e seus notáveis envolvimentos amorosos com escritores e artistas, uma
rica correspondência com outros nomes da literatura de seu tempo, artigos de crítica
literária e ensaios sobre política.
George Sand, 1864 |
Suas relações
amorosas sempre foram intensas e igualitárias. Ela escreveu: “Nenhuma criatura
humana pode dar ordens ao amor”. E dos romances vividos estão os com Mérimée,
De Musset, Chopin e a atriz Marie Dorval, entre outros artistas. Sua reputação
foi questionada em inumeráveis ocasiões, não apenas por sua aberta vida amorosa
com homens notáveis, mas por seus elegantes trajes masculinos. Sand se justificava
humoristicamente alegando que a roupa de homem era mais barata, cômoda e
duradoura que o traje feminino da nobreza na época e que assim vestida podia circular
livremente por Paris e fumar cigarros e charutos. Mas sua reputação como escritora
e jornalista não fez mais que consagrá-la com uma das mais importantes do século
XIX. O romancista Ivan Turguêniev escreveu sobre ela: “Que homem mais valente
era e que mulher melhor”.
Na mesma época,
a moral vitoriana da Inglaterra e dos Estados Unidos chocava com o romantismo. Escreviam-se
romances que combinavam o realismo, a fantasia, o horror e o melodrama. Uma destas
obras se destacou sobre as demais por sua violenta força dramática: O morro dos ventos uivantes. Era 1847. Seu
autor, Ellis Bell, de 29 anos, irmão de Currer e Acton, com quem havia publicado
um ano antes um livro de poemas. Quem era Ellis, esse homem capaz de escrever com
tanto arrebatamento, paixão e poder sexual?
Obviamente, ninguém
naquela época poderia pensar que o autor era uma mulher. Se chamava Emily
Brontë, e suas irmãs, Charlotte e Anne. As irmãs Brontë inventaram um pseudônimo
masculino para superar os sólidos prejuízos da sociedade, que aprisionava mulheres
ao ambiente doméstico e aos trabalhos do lar. Haviam lido Byron e Shelley e
estavam dispostas a que ninguém as detivessem. Emily, que sempre teve ares de
um efebo ou de uma ninfa, morreu de tuberculose um ano depois da publicação de
sua única, mas magna, obra. Tinha trinta anos.
“Nunca é
tarde para ser o que poderias ser”, escreveu George Eliot. Aliás, Marian Evans,
a escritora britânica mais estudada da época vitoriana. Evans, antes de ser
Eliot, trabalhou intensamente em Londres como editora, crítica e tradutora, o
que a aproximou da comunidade de intelectuais transcendentalistas. Adotou o
nome de George Eliot para se assegurar de que seus romances fossem levado à
sério e escapassem assim do estereótipo de mulher que só escreve romancezinhos
encantadores e também para evitar o escândalo por sua relação aberta com o escritor
Lewes, um homem casado.
Seus vinte e
sete romances fogem do romantismo e se filiam ao realismo numa Inglaterra
rural. A especulação sobre a identidade de George Eliot cresceu no mesmo ritmo
da popularidade de seus romances. Quando Marian Evans admitiu sua autoria e saiu do armário, veio o escândalo. Sua obra
literária está astutamente impregnada de política, especialmente em seu livro
mais célebre, Middelmarch. George Eliot
morreu aos 61 anos. Seu pai a havia educado como um homem para que sua grande
inteligência fosse seu sustento, pois, segundo ele, sua “feia androginia” como
mulher ia condenar sua independência.
Do outro
lado do Atlântico, em Nova Inglaterra, nasceu em 1832 Lousa May Alcott. Foi educada
entre pensadores como Hawthorne e Thoreau, mas teve que trabalhar desde muito cedo
para ajudar sua família, alternando vida e escrita. Vestia-se de forma austera
e modesta, e sempre levava calças e lenços sobretudo para se proteger dos
gelados invernos da região de Boston e dar longos e solitários passeios. Seu comportamento
era selvagem e independente “como o de um menino”: em sua obra mais conhecida, Mulherzinhas, de caráter autobiográfico,
ela é a indisciplinada Jo.
No início de
sua carreira literária assinava-se como A. M. Barnard, o que deixava a intriga
de umas iniciais que a maioria logo identificou como masculinas. Aos 16 anos,
Alcott se declarou feminista e abolicionista. Durante a guerra civil estadunidense
trabalhou como enfermeira e suas belas e divertidas cartas sobre a organização
dos hospitais e indiferença dos médicos levam-na ao primeiro êxito por parte da
crítica. Depois passaria a assinar como Bernard vários romances apaixonados e
dramáticos para adultos e outros tantos para jovens. Alcott não se casou e declarou
numa entrevista: “Estou convencida de que sou uma alma de homem embutida num corpo
de mulher... Apaixonei-me por muitas mulheres preciosas e, jamais em minha vida,
por um homem”. Escreveu numerosas colunas em jornais progressistas pedindo o
sufrágio feminino até antes da sua morte por um infarto aos 55 anos.
Isabelle Eberhardt, s.d. |
Si Mahmoud
Essadi é o nome argelino de homem que adotou a viajante suíça Isabelle
Eberhardt para poder ir ao Saara a cavalo e viver entre os nômades do deserto
em plena liberdade. Sua primeira viagem à África foi aos 20 anos, em 1897, quando
rompeu todos os laços que a uniam em sua boa e convencional educação. Converteu-se
ao islamismo e fez contatos com uma irmandade sufi que lutava contra os colonizadores
franceses. Eberhardt assinava os livros e reportagens de viagens que ia publicando
na França com seu próprio nome (Novelas
argelinas, À sombra do Islã);
mas, no norte da África seu nome foi sempre Si Mahmoud. Casou-se em Marselha com
o soldado argelino por quem havia se apaixonado. Uma violenta tempestade os
levou para o além. Tinha 27 anos e foi enterrada com seu nome árabe seguindo o
ritual islâmico. Antes deixou escrito: “Continuarei sendo um nômade, apaixonado
de lugares distantes e inexplorados”.
Se alguém contempla
os retratos de Rimbaud e de Eberhardt achará uma aparência indiscutível: seus
olhos azuis, o rosto de menino, os traços da boca desdenhosos e selvagens. Poderiam
ser irmãos ou indivíduos do mesmo sexo. Mas qual sexo? Andróginos, como os autores
aqui nomeados. Todos pioneiros em escapar dos róis sociais e de gênero que seu
sexo havia imposto ao nascer para criar sua obra e sua vida sempre em flerte com
o disfarce. Então, a androginia não era nem uma opção e nem uma tendência: era
parte da natureza do artista, uma condição para modernizar a sociedade.
* Este texto
é uma tradução de “Letras andróginas”, publicado inicialmente no jornal El País.
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