Lady Bird, de Greta Gerwig
Por Maria Vaz
Um filme de mulheres. Com problemas de mulheres. Um filme onde duas
gerações do mesmo sexo se encontram nas suas diferenças, nos seus antagonismos,
na diferença de sonhos, no choque de personalidades, na tentativa de domínio de
uma sobre a outra. Um filme de rebeldia e ampliação da consciência. De
transformação de conceitos, onde aprendemos que amor pode não ser nada daquilo
que achávamos que era ou ‘deveria ser’; onde aprendemos que amor pode ser
atenção ou preocupação, presença. E que, embora mais se assemelhe a carma do
que a mar-de-rosas, pode ser incondicional. Um filme imperfeito, sobre mulheres
imperfeitas que, pela simplicidade da imperfeição, transparece realidade,
veracidade.
Se estiverem à espera de normalidade cinematográfica com o glamour de
Hollywood, em que tudo acaba no ‘foram felizes para sempre’, não vejam o filme,
porque irão detestar. Se estiverem em busca de algo incrível, inusitado e
fantástico arriscaria dizer que também não irão achar graça nenhuma. Todavia,
se buscarem ‘pequenos nadas’, o filme ressoará de forma distinta. Não falo dos
problemas de crescimento e das descobertas da adolescência em torno do corpo,
do sexo, da dinâmica das relações de amizade e da aceitação da personalidade,
que pode parecer mais do mesmo em filmes de adolescentes. Falo, antes, da vida
quotidiana, na fenomenologia dos acontecimentos, das metáforas com que a
personagem principal se engana a si própria para, mais tarde, se descobrir.
Há neste filme pequenos brilhos que me cativaram – a rebeldia e a
coragem de Christine, interpretada por Saoirse Ronan. É certo que essa rebeldia
nem sempre apresenta a maturidade que deveria, mas acaba por evidenciar um
defeito estrutural da personagem que a leva a realizar o sonho de sair da pequena
cidade de Sacramento, na Califórnia, e rumar à costa leste, onde imagina uma
Nova Iorque recheada de cultura, diversidade e arte – um ambiente que não
consegue encontrar em Sacramento. A veia artística da personagem também é
evidente em pequenas coisas, desde a decoração do quarto ao desprezo pela
ordem, sem problematização, nos discursos dogmáticos do colégio católico que
fora obrigada a frequentar. Lady Bird tinha, em si mesma, ânsia de liberdade,
de vida – uma liberdade, de vez em quando, ocasionava comportamentos evitáveis
à luz da normalidade que a família esperava dela.
Perdida no tédio do colégio, descobre o clube de teatro, onde se
inscreve com a sua melhor amiga e onde começa a viver uma série de aventuras
que lhe trazem as normais crises existenciais (desde a descoberta da
homossexualidade do primeiro namorado ou a indiferença do seguinte).
Entre ‘pequenos nadas’ o filme trás à tona: um trecho das ‘vinhas da
ira’ de John Steinbeck; alusões à filosofia de Santo Agostinho, São Tomás de
Aquino ou, ainda, ao pai do existencialismo – Kierkegaard; faz referência à
música de Alanis Morissette; e aviva, ainda, o nome do grande Jim Morrison.
Lady Bird – acreditando ter ódio pela Califórnia –, informa o pai de
que gostaria de ir para uma faculdade em Nova Iorque e que, para isso, teria de
se candidatar a fundos ou bolsas de auxílio financeiro. Esconde a ideia da mãe.
A relação com os pais era complicada, especialmente com a mãe que, como ela
antecipou, lidou muito mal com a situação.
Pelo meio da metragem, o pai é despedido e Lady Bird percebe que ele sofre de
depressão há muito tempo e que o irmão tem problemas para arranjar emprego. A
mãe é muito dura com ela, mas sofre em silêncio por achar que Christine tem
vergonha dos pais, por morar ‘do lado errado’ do caminho.
A personagem principal consegue o que tanto queria e voa até Nova
Iorque para realizar o seu sonho. A mãe não se despede bem dela, entre
argumentos de razão pura e crua onde a emoção nunca entra. Contudo, ao chegar
ao seu destino encontra as cartas que a mãe lhe tentara escrever, mas que fora
incapaz de entregar, por iniciativa do pai, que as colocou na sua mala depois
de as resgatar do lixo. Nesta linha de pensamento – depois de se aperceber do
vazio relacional que também se pode encontrar numa grande cidade envolta em
arte e cultura (e depois de ter ido parar sozinha ao hospital, alcoolizada) –,
Lady Bird, fiel a si mesma, quase num ato de cair em si, sente saudade das
raízes a que prestava tanta atenção. Num aparente antagonismo, resolve ir à
missa e enviar uma mensagem de voz à mãe, em que diz que a ama, despedindo-se
como Christine.
Esta despedida é muito simbólica no filme, na medida em que deixa
transparecer a ideia de que o nome ‘Lady Bird’ mais não era do que uma forma de
provocar a progenitora, não aceitando o nome que esta lhe atribuiu depois do
seu nascimento. Christine descobre interiormente, na saudade provocada pela
adversidade, o porquê de uma freira da escola lhe dizer que, ao ler a sua
redação para a faculdade, ficara com a ideia de que ela amava Sacramento. Pela
atenção que dava aos pormenores que observada. Pelas minudências. Christine,
longe da imaturidade da puberdade, descobre o que significa ‘ter raízes’.
Descobre que é para lá que nos dirigimos, mesmo quando não se volta
fisicamente. São incondicionais.
O filme foi nomeado para 5 óscares. Independentemente das escolhas da
Academia, três mulheres estão de parabéns:
Saoirse Ronan; Laurie Metcalf; e Greta Gerwig (que, curiosamente, nasceu
em Sacramento).
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Maria Vaz nasceu em Mirandela a 19 de Setembro de 1990, muito embora tenha vivido toda a infância e início da adolescência em Vila Flor. Aos 11 anos, apaixonou-se pela poesia ao encontrar, por mero acaso, um livro de Alberto Caeiro. A par da poesia e da literatura, é uma apaixonada pelas artes em geral, de entre as quais ressalta a música, dado que tocou clarinete entre os 11 e os 21 anos. Publicou o seu primeiro poema em Março de 2015, numa antologia de poetas portugueses contemporâneos e escreve regularmente no seu blog (“The philosophy of little nothings”). É agora colunista do ‘Letras in.verso re.verso”. Além da escrita, é doutoranda em ciências jurídico-criminais, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, desde finais de 2014.
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