Juan Carlos Onetti, Santa María ante o Boom
Por Ignacio Bajter
Pouco depois
de a Compañía Fabril haver publicado O
estaleiro em 1961, Juan Carlos Onetti atende com enorme desconfiança ao
chamado do Boom. A partir de então,
cedo, e sobretudo depois de passado os anos, mantem uma conversa à distância –
às vezes fria, outras vezes ríspida, quase sempre irônica – com os escritores
da primeira linha daquele fenômeno que o incomodava por carecer de definição.
Escutou, e melhor, falou pouco, fiel ao seu estilo. Quando tudo aquilo tomava
forma e começava a envolver-se em polêmicas pesadas, este homem respeitado por
todos, em quem é difícil encontrar contradições, forjava lentamente a explosão
de Santa María, o incêndio da cidade que havia criado através da alucinação de
uma personagem.
Em junho de
1962, Onetti se refere ao Boom com
seu conhecido ceticismo e define sua atitude, uma mistura de atenção ao seu
entorno com tons ácidos e arltianos que havia criado em Marcha, há mais de vinte anos, em colunas que assinava como
“Periquito el aguador”. Fala do Boom de
passagem, em meio a um artigo dedicado ao renascer de Gardel, e encontra a
melhor ocasião para jogar uma pedra no lago, para agitar as águas quietas de
Montevidéu. “Emir Rodríguez Monegal
inventou, segundo detratores, que exista, agora mesmo, um Boom da literatura latino-americana”, escreve. “Os ianques se
acabaram, os europeus se autossatisfazem com jogos intelectuais. Então, nós, os
sujos ou meticulosos – a depender de onde se olhe e se opine – estamos condenados
a ocupar o território vago da literatura mundial”. Seria necessário sublinhar
algumas palavras.
Nos anos
depois desta nota, Rodríguez Monegal lida muitas vezes com mal-estar esta
suposta invenção, que sabia que não era sua. Fez malabarismos durante mais de
uma década para dar um contorno crítico ao Boom
e sua pré-história, sobre a qual desenhou um detalhado e erudito esqueleto
que outros haveriam de estudar. Nessa década se enfrenta quase sempre com Ángel
Rama, o outro crítico que passava a Onetti, pela imprensa ou pessoalmente,
notícias frescas acerca do romance latino-americano. Naquele artigo em que Onetti atribui
a invenção do Boom a Monegal, escreve
sua posição, sensível, aludindo satiricamente a Keynes, a questões de “dinheiro
e altas finanças”. A razão econômica será parte do assunto, quase sempre, já
não apenas do Boom narrativo mas do
futuro da literatura. Quem paga, quem cobra, quanto vende, coisas que Onetti
não se importava, vulgaridades puras nos ouvidos de um formalista. Mas já que
lia Keynes, o interessante é ver que quando se produz o Boom, Onetti está do outro lado do círculo, no bust, na órbita da falência. Acaba de publicar o grande romance do
fracasso, de poetizar um mundo a um milímetro de vir abaixo.
Se de
economia se trata é preciso recordar Blas Matamoro: Onetti é filho de uma
réplica ao sul da Grande Depressão.
Quando tem
as primeiras notícias do Boom, então,
de imediato quer que se acabe. E noutra estranha apelação às ciências sociais,
que desde então – aliás – não deixarão entrar na literatura, refere a Simmel e
diz que “uma aventura” como o Boom,
“prolongada em excesso deixa de ser aventura e se converte no inexorável
marasmo cotidiano”. A história seguiu adiante sem ouvir Onetti, que continuou
trabalhando com a decadência e a ruína. O Boom
não deixou de dar notícias: em finais daquele ano de 1962, quando Onetti
esperava que se acabasse, definia uma de suas datas de origem. Uma breve coluna
do Marcha de 14 de dezembro de 962,
escrita por Rama, dá notícia do Prêmio Biblioteca Breve de Seix Barral a Mario
Vargas Llosa por A cidade e os cachorros
e apresentava o autor como alguém próximo, um colaborador do jornal.
Onetti estava
acordado e podia ouvir qualquer barulho de fundo. Na sua solidão tão racional e
mundana não deixava de pesar a decadência, contemplando (não há verbo melhor) a
situação da arte e do artista, termos graves e pretensiosos que não só envolvem
a literatura e seus escritores. Por isso que Onetti não tinha nada com o Boom e não fazia falta que ele próprio o
esclarecesse. Do que se dava nessa época pouco lhe pertencia, se havia formado
um mundo feito com outros ideais. Apesar de algum memorável sarcasmo, não foi
um detrator do Boom, ao contrário.
Pouco depois de ter as primeiras notícias já se deixou tocar por seus reflexos,
em pequena e em grande escala.
Em 1964, a
editora Alfa, de Montevidéu, que participava na dimensão uruguaia do Boom das editoras culturais, com as
chamaria Rama, publica Junta-cadáveres
com um sucesso tamanho que é logo reeditada dois anos depois. Em junho desse
ano viaja para o congresso do Pen Club em Nova York, do qual resultam algumas anedotas e algumas fotografias, entre elas
uma famosa que reúne Pablo Neruda, Rodríguez Monegal, Carlos Fuentes, Carlos
Martínez Moreno escondido por trás de Patricia Llosa (ela por sua vez muito
próxima a Neruda). Onetti está fora do círculo, parece uma figura recortada e é
o único (com Vargas Llosa na ponta) que olha para a câmera. Se esta foto fosse
tudo, se poderia dizer que Onetti passa pela história do Boom dando um passo atrás.
Depois de
Nova York escreve com suas maneiras livres, irônicas, uma espécie de manifesto
que publica no diário Acción em 13 de
novembro de 1966 sob o título “Reflexões literárias”, recolhido logo em Réquiem para Faulkner e outros artigos.
É um texto de alto valor, uma visão da época. Em meio ao clima de renovação do
romance latino-americano, coisa que Onetti não acreditava nem acreditaria,
coloca para frente sua preocupação por esse “jogo sem sentido demonstrável”
chamado arte, com tudo o que ali cabe. Escreve o artigo poucos dias depois de
ler uma reportagem com o romancista Iliá Ehrenburg publicada em Marcha num número que trazia ainda uma
entrevista com Pierre Boulez que também chamou sua atenção, e meses mais tarde
um artigo em que Rama manifestava, disse Onetti, “seu assombro e seu
desconcerto pelo fato de que a revolução artística que se registra em todas as
exposições e galerias de Montevidéu não tivera seu equivalente ao se referir ao
romance”. Estava de acordo com isso e o levava mais além da capital uruguaia. É
preciso imaginar O jogo da amarelinha penetrando
nas mentes da juventude e Onetti dizendo que não via nenhuma “revolução
artística”. O que deixava à vista, fora de qualquer gênero particular, era a
pulverização de todo “classicismo”: a música havia rompido com a melodia, a
poesia (do verso ao poema visual) com o tempo, e a pintura se acabava com “a
fatigante reaparição Dadá”.
Acusava
notícias da pop art e da
“pop-literatura”, fenômenos que se instalavam na América de maneira mais aguda
e penetrante que o Boom e suas
derivações. Onetti criou ou quis acreditar que aquilo que estava vendo e lhe
soava o culteranismo ou estafa burguesa, era passageiro.
Não era o boom o que lhe preocupava quando tinha
em vista, tremulando, nem as obras de seus escritores a quem não lhes negava o
talento. Não entrou no Boom e
atribuiu suas instituições sobre o movimento a Rodríguez Monegal. A Onetti não
lhe preocupava a literatura classificada uruguaia, platense, latino-americana,
mas a situação e o futuro do romance, este que Joyce, segundo diz no artigo,
havia levado ao limite – “uma pedreira inesgotável”. Quando quase todos, os
críticos e os escritores, faziam suas listas cada vez mais abundantes de nomes
e títulos, e tratavam de decifrar a novidade, Onetti se perguntava pelo futuro
da ficção, por esse refúgio que lhe havia outorgado um lugar indiscutido entre
os escritores latino-americanos. A ficção como realidade autônoma, resistente
ao tempo em seu caso, era o que os romancistas do Boom, e não só eles, admiravam em Onetti. Como alguém era capaz de
criar um mundo de semelhante solidez e de habitá-lo, como podia sustentar uma
realidade que não respondia a outra lei que não fosse ela própria. Os modelos
eram o de sempre: Faulkner, Céline, Hemingway, sujeitos desta natureza. A
partir de Eladio Linacero, protagonista de O
poço, Onetti representa de maneira radical a condição do artista, aquele
para quem é tão atrativa e poderosa a matéria com a qual trabalha, que todo o
resto (dinheiro, prestígio, reconhecimento) carece de importância, cai em
descrédito.
A divisão de
Onetti com o Boom é evidente e está
no próprio destilar da escrita. Estava de acordo com Iliá Ehrenburg: “A arte
está mais próxima da biologia que a mecânica”. Naquela entrevista que pôde ler
em Marcha, o romancista russo conta
que em Istra, próximo de onde teve lugar a reportagem, Tchékhov começou sua
vida de escritor e trabalhou como médico. “Aqui Tchékhov escreveu que a
medicina era sua mulher a literatura sua amante”, diz Ehreburg. Onetti toma a
frase e a usa todo o tempo para diferenciar-se de Vargas Llosa, a quem tinha
como modelo de escritor que mantém com a literatura uma relação conjugal. Diz
sobre ele mesmo pouco depois, “sem que Mario se ofendesse”, num quarto de hotel
em San Francisco. À sua maneira e como suas personagens, Onetti estava abandonado
ao seu próprio humor e visitava a literatura quando tinha interesse. Sempre foi
assim. Sobre o final não apenas se distinguia, como se burlava do fazer
profissional que antes dizia invejar. O jornalista Lamas, em Quando então, numa obscura homenagem a
Vargas Llosa, fala de umas “caixinhas” onde “tinha um notas de papel porque
era um romancista escravo da ordem e da disciplina”.
A essa
altura, 1987, Onetti não acreditava em nada e havia visto cair “o já mítico e
defunto Boom” (“Reflexões de um presidente”),
o que nunca havia entendido “de maneira convincente”, como escreveu em artigo
sobre Felisberto Hernández em 1975. Mas,
muito antes do exílio em Madri, de sua longa estadia na cama e da velhice pouco
elegante, Onetti viu em Montevidéu, com nitidez, algo que se relacionava com a
atitude ante o leitor, e isso era tudo. Escreve na entrada de “Reflexões
literárias”. Considerava que há uma diferença extrema na atitude de escrever
para dar a entender – como ele mesmo fazia – e escrever para ser entendido,
para esclarecer o que não tem explicação. “O verbo entender”, diz naquele artigo, “aplicado a qualquer expressão
artística, não entranha exclusivamente uma compreensão lógica”. Não é a idade
nem as técnicas nem o número de vendas o que separa Onetti do Boom e de qualquer fenômeno novo, mas
seu trabalho na sugestão, na arte enigmática, conjetural e esquiva de mostrar e
esconder o absurdo das coisas. Sua literatura não funciona pela via
instantânea, que é a que todo mundo prefere e a tendência do Boom quando se consolida, mas por um
caminho mais demorado. Onetti é um escritor de longa duração e seus leitores
sabem: entendem aquele detalhe, aquele aspecto incompreensível ou o sentido de
uma história inteira de maneira surpreendente, inclusive muito depois de entrar
num conto ou num romance. Isso acontece em qualquer parte, na rua, na vida, no
momento menos esperado e com efeitos nada previsíveis.
Se ainda
forem poucos os desencontros, o Boom
coincide com o regresso na obra de Onetti à beligerância vanguardista de Eladio
Linacero, em O poço, com o fim de
Santa María. São anos de uma voraz inquietude pela pintura e nisso se gesta,
premeditada e lentamente, a vida e a obra do comissário Medina, pintor,
protagonista de Deixemos falar o vento,
que será publicado em 1979. Quando a arte começa a fazer-se de fragmentos, o
último pintor da cidade-lenda busca plasma uma “onda ideal” e para isso volta,
através de imagens soltas, ao impressionismo, como se tudo (Santa María mesma)
se desprendesse daí. Onetti continuava ligado à arte e através do comissário
Medina faz uma história sutil de Cézanne e Guaguin a dissolução do quadro e o
fim da pintura. Não estavam esquecidas nem perdidas, pelo contrário, suas
conversações com Torres García, pouco antes e depois de publicar O poço, e com um destacado aluno deste,
Julio Payró, o historiador e crítico de arte com quem discutia por
correspondência.
Quando a
narrativa latino-americana se multiplica, Onetti se recolhe e escreve entre
pausas seu grande romance final. Passam-se quinze anos entre Junta-cadáveres e Deixemos falar o vento, embora não deixe de publicar o plano de
“obras completas” nem de projetar-se com sucesso fora de Montevidéu,
frequentando as mesmas rotas e aeroportos que os escritores do Boom, a quem tratava com distância
afetuosa e ocasionalmente provocava (sobretudo Gabriel García Márquez e Mario
Vargas Llosa, também Julio Cortázar) a longa distância ou quando os tinha por
perto. Onetti se deixa levar pela corrente, está em órbita dos benéficos do Boom com maior presença que Juan Rulfo,
embora não acredite na narrativa latino-americana mas em “escritores exilados”.
Confronta desde os valores de seu mundo de ficção, e seus problemas de fundo
são mais complexos que a simples tomada de partido nas típicas guerrilhas de
escritores. Em todo caso confronta não por suas opiniões, que costumavam ser
contundentes (“a riqueza de García Márquez e Vargas Llosa procede em parte da
selva, do clima, da topografia, de seus países), mas por planos formais, que
nem Rodríguez Monegal nem Ángel Rama nem outros intelectuais vizinhos seus
contestariam em longas inquisições sobre o renascimento do romance
latino-americano. Onetti reclamava o direito de ler além de uma região e uma
língua e via ao retorno, nas vozes próximas, o que estava inventado, e por
acaso essa repetição de formas que conhecia tão bem (a novidade continuava
sendo Ulysses) o levara a suspeitar
que “o romance é um gênero condenado a morrer”, por razão do esgotamento e não
porque um dia fosse deixar de ser escrito.
Na metade
dos anos sessenta, Onetti parece farto de tudo, também de si mesmo. Precisaria
de buscar casos de tédio e crise existencial nessa trama da biografia que
escreveu Carlos María Domínguez, Construção
da noite. Nesses anos algo pesa demais, está no ar. A época do Boom forma parte da mesma “saturação
cultural” que via, num povoado qualquer da União Soviética, Iliá Ehrenburg.
Onetti mantém sua expedição literária em outra parte, dentro e fora da
notoriedade, fazendo um esforço, depois de Junta-cadáveres,
por manter a respiração de Santa María. No que lê como “romance novo” encontra
apenas “a teimosa vontade de complicar as coisas”, “desnecessários entraves de
diálogos e pensamentos”, restos dispersos da vanguarda e de Joyce, a quem tinha
como último criador de formas. Não via a renovação mas o panorama do repetido –
que durará mais de vinte anos a partir da matriz do Boom – que o leva dizer: “é forçoso que se esfrie nossa fé no
futuro do romance”.
Quando
publica Requiem para Faulkner e outros
artigos em 1975, Onetti insitia que o bum
(escrito dessa maneira) “é um fenômeno bem organizado por revistas e editoras”,
embora em Espanha não se tenha tornado pública essa posição tão primitiva,
rígida. O texto onde estão suas últimas e mais nutridas observações sobre o
fenômeno, junto a outras, se intitula “A literatura: ida e volta” e foi
construído por Jorge Ruffinelli a partir de várias reportagens. O que diz
Onetti parece pensado adiante, pois descreve com precisão esses pequenos booms de curta vida em que os autores,
laçados a uma fogueira, sobem e caem prontos. Os fenômenos de há dez anos são
pré-história quando alguém os recorda. Parece trabalhar, com mais intensidade
que antes, uma força que pelo caminho resolve algo importante, enquanto dá
lugar, espaço, um pouco de comodidade. Passa por ele muitos escritores desde os
tempos do Boom: num momento estão em
todas as partes, logo se apagam e quando voltam, mais tarde, não conseguem
superar o próprio desgaste. Escuta-se mais ou menos o mesmo, vozes inspiradas
pelo medo de desaparecer para sempre, de cortar amarras com essa força superior
e desconhecida que outorga uma existência temporal. Por isso se estranham
mundos de ficção capazes de instalar-se e levar-se na cabeça, e figuras
singulares como as de Onetti, que dizia o que queria, assim não tivesse com
quem falar. “Sentimo-nos impulsionados a dar uma voz de alerta [sobre a arte].
Voz que, naturalmente, deve ser destinada a ser ouvida somente por nós”,
escreve em “Reflexões literárias”, depois de uma viagem a Nova York.
Embora se
acabasse a cultura que havia se formado, Onetti mantinha a esperança, a fé no
romance capaz de absorver e representar; nisto seguia Joyce, todo arte. Prepara
o incêndio de Santa María, e adeus, põe fogo ao que havia imaginado e aí ficam
as cinzas. Haverá pouco mais, promovido por Carmen Balcells, a quem dedica Quando já não importa em 1963. Onetti
havia entrado no futuro que suspendeu em Montevidéu, à metade dos anos
sessenta, e a situação desse presente lhe dava razão. Mas a essa altura, relativamente
próximo da nossa data, Onetti parecia está fora de tudo. Keynes, desde o
início, havia triunfado. A discussão de mercados e economias se fez moeda corrente,
um lastre que deixou no Boom a
crítica e os costumes de fazer escolas, listas de nomes e filiações que nunca
se sabe bem aonde vão dar. Os leitores se dividiram em distâncias frias, a
literatura começou a comentar-se distante de si mesma e tudo começou a soar
estéril. O mecanismo de precisão chamado juízo, que nunca havia funcionado
muito bem, passou a ser instrumento da publicidade e do disparate e chegou a impensáveis
níveis de depreciação até resultar obsoleto.
“Talvez nos
convertamos em serventes da cibernética”, escreveu Onetti no artigo de 1966. Era
pessimista mas não apocalíptico, e em algum ponto deixava passar luz: “sempre
sobreviverá em algum lugar da terra um homem distraído que dedique mais horas a
aspiração que ao sonho ou ao trabalho”, diz, “e que não tenha outro remédio para
não perecer como ser humano que o de inventar e contar histórias”. Este era seu
ponto de fuga e serviu de alento para aqueles que tinha paciência e tempo de ouvir
“o que se vai fabricando algures”.
* Este texto é uma tradução de "Juan Carlos Onetti: Santa María ante el boom" publicado em Letras Libres.
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