Dunkirk, de Christopher Nolan

Por Pedro Fernandes



Foi comum ouvir, quando da apresentação de Dunkirk, que este filme era mais um sobre guerra. Mas não é. Não necessariamente nessa ordem. Toda a narrativa toma como pano de fundo o cenário de começo da Segunda Guerra Mundial – há mesmo cenas de combate aéreo e de ataques, mas os interesses estão em sublinhar desde aspectos individuais a coletivos que respondem por temas como superação, sobrevivência, convivência, empatia, força comunitária, conflitos de culturas etc.

A história retomada é a da evacuação de Dunquerque; enquanto as forças de Adolf Hitler avançavam a largos passos sobre meia Europa, os britânicos necessitavam evacuar, numa mudança repentina de estratégia de ataque, 120 mil homens em cinco dias. A operação militar tinha o propósito inicial de levar 45 mil homens em dois dias; e, no fim, quase quatrocentos mil soldados conseguiram escapar entre 26 de maio e 4 de junho de 1940. Dos dez dias dessa operação, Nolan se concentra nos últimos sete, quando as primeiras forças nazistas já demonstravam sinais de domínio – acompanha uma semana a partir da perspectiva do soldado Tommy e suas tentativas pela sobrevivência; desse tempo, recorta ainda um dia na vida de um civil que convocado pela frente de guerra junta-se a outros milhares no trabalho de resgate dos soldados; e meio dia de um militar da aeronáutica que luta contra aviões de bombardeio inimigo.

Os recortes temporais são muito precisos e representam três ângulos possíveis de observação do conflito, perfazendo certa tarefa da onisciência normalmente ocupada apenas pela câmera que tem o privilégio de capturar o todo das situações. Nolan não deixa de lado essa possibilidade comum aos filmes do gênero, até porque há investidas constantes nos planos abertos, mas em grande parte prefere que tudo se filtre por um dos três pontos de vista escolhidos. É notável, por exemplo na narrativa do combate aéreo, em que as manobras de ataques e contra-ataques são, digamos assim, narradas pelos ocupantes do barco civil, pelo pai e pelo filho, sobretudo por este, que num passado muito recente perdeu o irmão num combate aéreo. Ou ainda que a perspectiva dos ataques inimigos seja sempre a dos alvejados.

Embora o enredo dessa narrativa de combate e mesmo a narrativa principal, a do resgate, adquira certo tom dos heroísmos buscados pelos filmes do gênero, o que se mostra até como uma necessidade de não se distanciar, por razão diversa, do trivial ou do que esperam os espectadores, são o drama e o embate da sobrevivência que adquirem maior relevância para a história. E é miraculoso como o cineasta consegue fundir as dimensões dos grandes cenários – a costa de Dunquerque vista do alto demonstra ser terra e mar a se perderem de vista – com os menores quando se concentra entre as extensas filas de soldados em direção aos embarques possíveis. Há sempre uma correlação entre toda grandiosidade espacial e as reduções do claustro como se esses homens estivessem – como parte estará depois – presa nalgum porão de navio ou bunker.

Sem se deter no caráter técnico que os críticos em cinema têm melhor competência para observar e não um leitor amador de narrativas, é possível sublinhar três ocasiões que podem ser tomadas neste trabalho em que as estruturas adquirem uma justa composição e ainda as três narrativas adquirem algum traço de relação, mesmo que não pareça ser este o objetivo maior do cineasta. O propósito das três narrativas, além de significar três pontos de vista complementares que melhor traduzem os acontecimentos de um ângulo diverso, ainda servem de compreensão sobre a estreita relação que aproximam histórias das mais diversas e como – por obra do acaso – as vidas alheias coparticipam da nossas, por mais isoladas que pareçam.

Os três episódios assinalam as três frentes assumidas por Dunkirk: por terra, mar e ar. O primeiro recorre a uma das alternativas assumidas entre um soldado inglês e um francês, amigos ao acaso que tentam furar as barreiras que os impedem o embarque imediato. A trajetória aparentemente curta toma a proporção de uma odisseia em que competem a ordem de fechamento dos embarques para a partida do navio, a possibilidade dos dois em se salvarem, e dos já embarcados sobreviverem aos ataques aéreos dos alemães. Entretanto, não é o drama que faz com que o expectador mentalmente instaure uma torcida pelo desfecho favorável para os dois rapazes, ainda que não estejam a fazer a coisa certa, o que mais chama atenção. É o amainar das relações de diferenças em nome de que a possível salvação não deve ser uma benesse apenas dos ingleses – se pensamos na estreita rivalidade entre os dois países; o amigo de passagem do inglês não sobreviverá, mas noutra ocasião, novamente entre soldados ingleses e franceses, será demonstrada a atitude humana deste homem. Quando refugiados numa pequena embarcação largada na praia se inicia o debate sobre qual dos ali são merecedores de ficarem ou se retirarem a fim de garantir a navegação desse meio de transporte.

No mar, um pequeno barco com três pessoas saído da Inglaterra atravessa o Canal da Mancha em direção a Dunquerque; no meio do percurso resgatam um piloto que tomado pelo drama da guerra instaura um limite de tensão semelhante ao experimentado em terra entre a multidão de quatrocentos mil homens. No embate entre um dos da embarcação e esse estranho que não aceita a atitude de voltar à praia francesa o rapaz é ferido mortalmente o que só agrava o estado psicológico do aeronauta, responsável direto pela situação. Numa narrativa em que contrastam vida e morte, ódio e perdão, essa situação é, talvez a das mais simbólicas. Como a que se passa em terra, que anseia uma destituição de fronteiras entre homens, aqui mais que isso, se necessita subverter a ordem da vingança em nome do objetivo maior: servir de salvação para outros milhares que estão à espera de um milagre. Este é, talvez, o drama melhor aproveitado por Nolan na composição de seu filme, sobretudo, no que concerne a exposição dos espíritos tomados pelas forças de uma guerra: a morte bestial e o apagamento das emoções em detrimento de atravessar um drama maior e mais complexo.  

O último episódio, também marcado pelo embate entre vida e morte, se dá entre o piloto que coloca todo o esforço possível para não permitir que os bombardeios sobre Dunquerque sepulte de uma vez por todas qualquer fio de esperança que possa restar entre a multidão à espera de um resgate. Não chega a ser o mais relevante para a narrativa principal de Dunkirk porque trata-se de uma medição de forças entre homens dotados de quase os mesmos aparelhos de luta, embora as condições sejam em tudo diferentes. É este episódio que culmina com a queda livre do avião sem combustível – depois, é claro, de sepultar o inimigo – que sobrepõe todos os protodramas preparados ao longo do filme pela simplicidade do espírito de heroísmo qual a atmosfera formada em O resgate do soldado Ryan, de Steven Spielberg.

Isso sepulta de vez a possibilidade de Dunkirk de ser um filme diferente dos demais? Grande parte diz que sim. Mas, quem disse que não podemos nos contrapor à grande parte? Christopher Nolan continua a perscrutar sobre os nossos limites em testar as possibilidades de sobrevivência. Que já sabemos que eles não existem, sabemos. A própria história que agora retoma com este filme prova isso. Mas, nunca será demais sublinhar o que não nos parece tão óbvio assim quando o assunto é a lida com as implicações mais simples do dia-a-dia. Isso significa dizer que, embora a guerra não pareça ser questionada com o mais fátuo dos empreendimentos humanos por maior que seja e pareça ser um filme pelo qual o diretor tenta corroborar o uso da técnica para causar efeitos no espectador que alguns cineastas agora acreditam só possíveis através de outras tecnologias que não o 2D, há muito a se ver com Dunkirk.


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