Corra!, de Jordan Peele
Por Pedro Fernandes
Corra!, à maneira de Mother!, de Darren Aronofski é uma
narrativa alegórica. Os termos se justificam pela ordem comum que designa o conteúdo
da alegoria como a demonstração de algo para significar outra coisa. É caso de
sublinhar ainda o filme de Jordan Peele como constituído por uma narrativa de corte
kafkiano. E como o alegórico não é utilizado aqui de forma gratuita, também a
menção à atmosfera do universo de Franz Kafka não é produto de uma mera comparação.
Isso porque os elementos do onírico, do absurdo e da burocracia, para citar três
das determinantes kafkianas, são encontrados na composição de uma trama cujo
interesse é de reativar o debate contínuo e necessário acerca da questão racial,
sobretudo num país que nunca foi um bom exemplo sobre, os Estados Unidos – não que
este tema seja recorrente apenas aí, afinal o racismo encontra-se
em toda parte, mas é que não deixará de vir à memória coletiva a aguda segregação praticada neste país mesmo depois das leis civis que asseguraram a reintegração da
unidade social.
Daí que as
limitações impostas pelas classificações de gênero segundo as quais Corra! é ora um filme de terror ora um thriller
de suspense são vagas e inúteis. Isso porque a presença dos elementos que melhor o aproximam
do suspense – jamais do terror – são insuficientes à explicação dos sentidos
propiciados pela narrativa fílmica, sobretudo, porque limitam esta ao arcabouço
racionalizante que zela pela compreensão das situações narradas apenas na superfície dos
acontecimentos. Perde-se, assim, totalmente a ideia propiciada por esta
narrativa de que os tais fatos narrados não estão nesse nível mas numa
interioridade da personagem principal, condição, aliás, não imposta pela
interpretação, mas pela maneira como o diretor propositalmente rompe com o que
seria uma narrativa em uma camada pelo que aos olhos do espectador ingênuo se
mostra como irreal e que julga ser uma sobreposição de um enredo comum por outro à maneira de
uma ficção científica.
Basta notar o
que sustenta essa ruptura na ordem geral da narrativa: tudo se inicia com o sonho
de Chris em que as impressões colhidas nas primeiras convivências com a família
de sua namorada levam-no à certeza de que foi hipnotizado pela mãe da garota. Estruturalmente
se oferece ao espectador a possibilidade, então, de que os acontecimentos pertencem a
um plano que não o da superfície empírica. O que observamos é uma sorte de situações reveladoras, tal como o pesadelo do jovem sobre a morte da mãe durante a infância,
sobre sua condição de alheado num mundo onde a convivência harmoniosa entre brancos e
negros não é sinônima de apagamento total das conturbadas relações assumidas
pelos imperativos que história passada e atual não param de revelar. Nesse sentido,
Jordan Peele destaca propositalmente o olhar de seu protagonista; e como este
ainda parece insuficiente para os que não captam sutilezas, Chris tem como hobby a fotografia – esta que capta o
que os olhos comuns não veem e ainda reduz contextos mais amplos a uma miniatura,
propondo-nos claramente que estamos guiados por um recorte propiciado pela visão imaginativa da personagem principal.
Como exterior
e interior mantêm relações de projeção, nota-se que o trivial do universo empírico
alcança outra dimensão pelas lentes da interioridade: assim, a frase solta de
Rose de que sua família é livre de preconceito e até o pai votaria novamente no
Obama, o atropelamento de um veado na viagem para a casa dos pais de Rose, o
trabalho da mãe da jovem de hipnose revelado como favorável à mudança de hábitos do
marido quanto ao cigarro, a aparente harmonia entre a família branca com
empregados negros, a história do irmão da namorada de Chris, totalmente marcada
pelas infiltrações racistas, de que a genética do rapaz tem influência no seu porte
físico e o favorece para a luta, o encontro de Chris numa recepção familiar com
um cego fotógrafo e outro negro em condição parecida com a sua, casado com uma branca,
ganham contornos nesse mundo, digamos, à parte que se desenvolve como um roteiro de ficção
científica em que uma seita de brancos estaria interessada, pelas condições genéticas
favoráveis aos negros, em utilizá-los como resolução das limitações que aqueles julgam lhe pertencer. Quer
dizer, Corra! incorpora na sua
narrativa toda sorte de enunciados que mesmo negando não ser racista carrega em
sua ordem o que se nega. Apenas a percepção aguçada do que carrega no corpo – imaginário
e histórico – tais marcas é capaz de sublinhar essa ordem interna das coisas e
é nela onde se situa o protagonista do filme de Peele.
Se o plano
estrutural de Corra! – perfeitamente elaborado
– responde que o seu interesse é pela interioridade simbólica dos enunciados ainda for insuficiente para os que se apegam cegamente à superfície do visível,
então, que se note propositalmente as chaves espalhadas ao longo da narrativa que
justificam a correlação entre exterioridade e interioridade de seu protagonista.
Aqui se destaca quão é fundamental o papel do amigo de Chris, que para estes
que se prendem apenas à superfície do visível, é ela somente a repetição do tipo negro
piadista que Hollywood há muito estereotipou. É Howery quem faz com que toda a condição
de alheado do amigo se transforme na história nonsense por ele vivida e com
isso possa assumir de vez um papel de herói que sua condição duplamente lhe
nega: por ser negro e por ser funcionário de uma corporação que cuida da
segurança e do controle de imigração nos Estados Unidos, esta sempre tida como
apenas uma pedra no meio do caminho dos que passam pelos aeroportos
estadunidenses. Howery justifica que Chris é vítima de uma seita de brancos
interessada em transformar negros em escravos sexuais; ele insinua que a
realidade na qual o amigo se insere é nada mais que um mundo à parte, qual o
universo de Os outros, o filme de
Alejandro Amenábar em que todo universo claustrofóbico que aí se anima é marcado
pela condição de que tudo pertence não mais à ordem visível da existência. Existirão
outras chaves, mas esta última, sobretudo reanima a leitura aqui proposta.
Muitos outros elementos poderiam servir de continuidade à compreensão
de Corra! o que só justifica a
riqueza dessa narrativa, além de se inseri-la, muito confortavelmente, entre as criações
ficcionais que dão brio, pela inteligência, a se pensar sobre o que se mostra e o
que se oculta ou o que se oculta quando se mostra nos dizeres, nas condutas, de
nós com os outros, sobretudo quando estes são os que estiveram subjugados por uma cultura que em
algum momento sempre visou tão somente a segregação, o apagamento e o silenciamento
porque, numa visão deturpada, o outro não se enquadra em seus padrões justificados das
maneiras mais vis e estapafúrdias. E porque tais modelos ainda têm suas raízes
muito bem alimentadas no nosso mundo contemporâneo Corra! é um filme negligenciado. Mas a garantia de obras assim
é que logo se tornam objeto simbólico fundamental para a revisão de nossos modos
de ver e estar no mundo – o valor maior de toda alegoria.
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