Cinema de autor e despertar da consciência


Por Rafael Kafka

Nostalgia, de Andrei Tarkovsky, 1983.


Andrey Tarkovsky escreveu um livro no qual fala que a matéria-prima do cinema é o tempo. Um dos maiores diretores de todos os tempos foge ao senso comum e não afirma serem as imagens o que essencializa o cinema, mas sim o modo como o tempo é esculpido pelos diretores em cada produto cinematográfico. Por mais absurda que soe essa afirmação que subjaz à escrita de todo  o excelente Esculpindo o tempo ela faz mais sentido do que imaginamos, afinal de contas o ser é tempo. Há algum tempo, essa noção da temporalidade como elemento primordial dentro da obra narrativa em si já me chama a atenção, em especial nas obras que justamente buscam romper com a narrativa mais linear da literatura tida como clássica.

A visão de Tarkovsky é ampliada pela noção de ser o diretor a figura central do processo de produção que é o cinema. Tal arte deve ser sempre lembrada como produto das eras mais tardias do capitalismo e por isso possui em si os reflexos mais diretos e concretos da dinâmica do modo de produção capitalista. Enquanto a literatura sofre as ações do mercado mais no tocante à circulação de obras, o cinema desde sua origem se liga a um novo de perceber a realidade marcado pelo imagetismo típico de cidades como a Paris do século XIX, que tão encantou ao simbolista Charles Baudelaire. O cinema é uma arte nascida por conta do modo de produzir e perceber capitalista. Além disso, a quantidade de pessoas que trabalham na produção de uma simples cena, em processos como iluminação, produção, edição, fotografia, montagem, etc. é por si só um indicativo claro do modo de produção em cadeia típico do nosso sistema de produção.

Diante de tudo isso, o diretor é a consciência a gerir e a gerar os trabalhos de diversas pessoas no rumo da concretude do resultado fílmico. No final das contas, é ele quem receberá aplausos ou vaias se o filme for bom ou ruim. Antigamente, achava isso algo bastante injusto, pois geralmente o que mais me atraía no cinema era o roteiro e as atuações. Mas quando passei a ler mais sobre essa arte e a entender melhor como é complexo juntar tantas peças na produção de um produto fílmico, comecei a dar razão a quem coloca o diretor em posição tão central.

Tarkovsky em sua autobiografia faz uma clara apologia ao cinema de autor, um cinema que revela a existência de uma consciência que permeia todo o processo de construção fílmica, como que reduzindo dentro de uma arte industrial ao desaparecimento na multidão, maldição dos tempos modernos. O cinema de autor, para o diretor de filmes como Solaris e O espelho, é caracterizado como o gênero de cinema na qual o diretor deixa bem claro que o modo de ele esculpir o filme é o mais importante. Em filmes de autor é importante que essa consciência produtora se afirme para que novas formas de percepção sejam engendradas e provoquem no espectador um desejo de dialogar com a obra, de ir além das convenções mais básicas do cinema comercial.

Este último lembra a literatura de folhetim feita sob medida para uma leitura mais suave e sem grandes incômodos dentro de um universo repleto de informações a serem consumida ao mesmo tempo. O cinema comercial usa clichês narrativos para prender mais facilmente a atenção dos espectadores em planos bem elementares de percepção. Nesse sentido, o uso de temas banais ou de soluções simplistas em assuntos mais polêmicos são uma forma de garantir a assistência, a qual por sua vez inconscientemente vai adquirindo a noção de ser o cinema uma mera ferramenta de entretenimento.

Entreter surge como atitude desvinculada do pensamento crítico. Em nossos dias, é cada vez mais comum ouvirmos alguém dizer que lê para fugir da realidade, para desanuviar o stress de um dia cheio, por exemplo. A leitura de temas mais complexos é evitada, pois gera dor e sofrimento e a vida já está cheia de dor e sofrimento. Destarte, percebemos o estranho paradoxo típico de nossos dias de ser a leitura um ato completamente afastado de uma crítica da realidade mais contundente. Ler é apenas diversão e distração.

O cinema de autor, portanto, é uma crítica ao modo de ler por puro prazer, um modo preguiçoso de perceber a realidade como algo cruel e que deve ser esquecido. O cinema de autor a cada momento mostra sua resistência com elementos que servem de assinatura a mostrar uma individualidade que se faz estilo, provocando no espectador novas formas de ler a realidade, ao contrário do cinema comercial, que quase sempre exige formas de leitura bem determinadas e deterministas, sempre girando em torno de temas como comédias românticas e filmes de ação, mais fáceis de gerar esse êxtase monótono do ponto de vista cognitivo.

Por ser uma arte ainda jovem, o cinema possui bons escritos de diretores com interessante verve filosófica e política. Tais escritos em algum momento ainda possuem aquele ar romântico dos autores mais clássicos do cânone literário, os quais buscavam mesmo dentro dos seus escritos literários uma noção mais “pura” de literatura. Porém há algo no cinema que faz os escritos teóricos de alguém como Tarkovsky soarem mais realistas: o fato de o cinema lidar com imagens que imitam a sucessão do tempo. Esse simples elemento definido muito bem pelo cineasta russo me faz pensar na dimensão técnica do cinema e em como a técnica, em geral, leva à igualdade de ser e sentir em nossa realidade. 

Dentro do cinema, portanto, um autor que quer provocar mudanças de ser e sentir deve se fazer presente em um estilo próprio e em um discurso próprio que se mostra a todo tempo, de forma insistente. O cineasta nessa situação parece aquele tradutor provocador que não se aceita invisível na tradução e a todo tempo faz questão de mostrar na sutileza do texto traduzido na forma de atos linguísticos que visam a causar uma necessária confusão na mente do leitor. Assim, o cinema de autor é um discurso estético que anda de mãos dadas com a metalinguagem, pois a todo instante reflexão e argumento se fundem provocando no espectador uma dupla percepção do enredo narrado e da forma de percepção exposta.

Nesse sentido, o cinema em sua juventude parece ter entendido na figura de certos diretores que suas possibilidades de percepção vão muito além dos clichês do cinema comercial. Falar sobre o cinema de autor me soa mais realista do que de uma literatura pura, pois o primeiro não preza por um suposto purismo. A base ontológica do cinema de autor é a diversidade de percepções da realidade e de escultura do tempo no sentido de criar histórias e discursos sobre o real. O cinema mercadológico causa o torpor perceptivo ao utilizar clichês discursivos e narrativos que geram no espectador outra forma de purismo, de homogeneidade.

Falar em cinema de autor é convidar que diretores falem sobre o que quiserem falar deixando-se aparecer em seus filmes, causando no leitor o desejo do diálogo, a confusão para além do óbvio percebido. Um cinema mais autoral é o despertar de uma outra consciência dentro do ato solitário da leitura, fazendo com que o espectador saia da ilusão de que a arte é para nos fazer esquecer do mundo lá fora. De dentro da película é como se o diretor puxasse nosso rosto e nos impusesse a sua presença fazendo-nos perceber como nossa tentativa de solipsismo em tempos tão mercadológicos é uma tolice das mais infantis.

***

Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos  (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.

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