Aqui de dentro, de Sam Shepard
Por Pedro Fernandes
Um catálogo de elucubrações. Assim poderíamos compreender o único romance de Sam Shepard e seu último livro. Não há na afirmativa qualquer noção de rebaixamento da obra, como poderá parecer aos olhos mais incautos. Do contrário, é este um título que se filia à longa tradição daqueles que nutrem outra percepção acerca do mundo, isto é, apreendem-no por sua dimensão descontínua, caótica e fragmentária. Essa percepção da realidade enquanto complexo em formação é assinalada desde quando a descoberta de que seus limites não são determinados e sim constituídos pela atuação eu-mundo. Veja que se desfaz o distanciamento há muito forjado de uma relação entre o eu e o mundo. É tarefa contínua, esgotável apenas depois da morte, a de criação de nosso universo. O real é modelável tal como o ator modela a personagem ou o escritor a cosmovisão do mundo figurado no romance e nesse processo o que antes conjugava duas extensões – eu e o mundo – são recriados mutuamente.
Tais apontamentos esclarecem o noveIo linguístico fabulado por Sam Shepard, texto que a todo tempo poderá suscitar no leitor as mesmas complexidades que experimenta em obras como Água viva, de Clarice Lispector, Tarântula, de Bob Dylan, ou os romances mais recentes de António Lobo Antunes, para citar ao menos outros livros que lidam com a continuidade de uma ruptura radical de certa ordenação do mundo, de cariz antirrealista, inaugurada por romancistas como William Faulkner. No romance do escritor estadunidense se confirma ainda a desnecessidade de uma justificativa capaz de ajuizar o discurso do narrador. Ou seja, não é preciso que o escritor recorra à ideia da consciência atormentada, do louco, do homem no leito de morte ou tomado pelas cicatrizes do tempo manifestas na senilidade. Aparentemente, este narrador, é como alguns narradores do escritor português acima citado, mero fabulador, interessado em aferir por meio do olhar multiperspectívico as situações requeridas pela memória.
Isolado do corriqueiro, a voz de Aqui de dentro recorre um trânsito por entre as principais inquietações trazidas pelas lembranças do seu passado, com um interesse, somente, o de destituir os liames igualmente falsos que insistem separar presente, passado e futuro. Vale recorrer a pelo menos duas passagens, uma delas dos diálogos imaginários que trava com uma certa Garota Chantagem, para justificar essa preocupação do que se mostra no protótipo de narrativa. Uma delas, a constatação de não existe presente, este é passado e futuro. Enquanto exercemos qualquer ação esta já não é, mas foi, dimensão, portanto que torna inviável o que se convencionou como presente. A outra passagem é a constatação da voz narrativa de que “o desconhecido às vezes é melhor”. “Às vezes muito melhor”, reforça.
A primeira, ao que parece, reforça o próprio projeto estrutural do romance, uma vez que as situações evocadas, por mais discrepantes ou distanciadas que pareçam, são produtos de uma consciência que as relacionam e as colocam sob as mesmas linhas de determinação que as de possibilitar a realização de uma narrativa. Enquanto elementos de memória não se apresentam fixados a um passado mas enformam uma condição do futuro ou, se preferirmos, do nosso presente.
O interesse pelo desconhecido, portanto, faz dessa consciência afeita a não se intimidar ante as situações imprevisíveis forjadas pelo fluxo diverso da memória que eventualmente poderá encontrar com situações difíceis e dolorosas de enfrentar, seja a morte repentina do pai, seja a da jovem Felicity, que coloca essas duas personagens em maus lençóis. E a subversão temporal reinaugura a preocupação comum de todo relato, o de não cair nas sendas do esquecimento, mas sempre se apresentar enquanto cena em realização. E essa condição evidentemente só se constitui possibilidade porque o universo que se descortina pela retina do leitor é o interior, onde a ordem não responde pela tentativa segmentária do universo empírico. Isso, aliás, está estruturalmente proposto desde o título do romance: o que brota no papel é o de dentro.
É claro que, educado como fomos para desprezar uma compreensão paradigmática da realidade, nossa tentativa ante a descontinuidade é a de forjar uma linha que seja capaz de nos possibilitar algum amparo. Assim, é que procuramos, do princípio ao fim do texto, esclarecer a quem afinal pertence a voz que retalha situações, e em Aqui de dentro, qual sua relação com o pai, o porquê dessa obsessão por ele, pela amante dele, Felicity, qual tipo de traço une o narrador à Garota Chantagem, em que lugar se situam esses elementos indicativos de uma narração. Estas e outras indagações construídas pelo leitor se por uma parte o mantém preso ao nó textual por outra pode servir de uma percepção deficitária do texto. Resta-nos obedecer ao fluxo da consciência que aí se derrama como obedecemos ao nosso fluxo interior quando paramos para observar seus movimentos.
Aqui de dentro é uma história in progress. Isso quer dizer que não é uma história. Como não é uma narrativa. Não no sentido tradicional que sempre utilizamos para tratar sobre a história e a narrativa. Enquanto continuum tudo dependerá do itinerário escolhido pelo leitor para cumprir sua travessia e é possível que este curso mude ao longo da leitura como é possível que noutra ocasião se revista de nuances totalmente inéditas que não ficaram visíveis numa primeira leitura. Por exemplo, se o leitor adotar a ideia de que esta voz, pela diversidade de referências aplicadas ao cinema, é a de um ator, logo esse conjunto de elucubrações pode significar sua tentativa de composição de uma personagem para um filme qualquer; se adotar a ideia de que é um diretor poderá percebê-lo interessado na composição de um roteiro. Numa e noutra – e possivelmente nas interpretações que recorrer – o que este leitor encontrará é uma pré-história, isto é, sua gênese, seu nascimento, não a história.
Por isso, se permite encontrar situações de toda uma vida num texto cuja extensão pode ser vencida num dia de leitura: o narrador perturbado com a morte do pai; as recordações dele sobre suas histórias, como o envolvimento com a guerra, a relação com Felicity, uma garota muito jovem; a fuga repentina do pai e o refúgio num trabalho qualquer numa fazenda de criação de gado; a complexidade da relação com a mãe; do seu pai com sua mãe; do narrador com o extenso catálogo de mulheres que transitam por sua memória, a própria Felicity, a Garota Chantagem, que o leitor logo não tardará descobrir de que se trata de um alterego da própria voz narrativa, uma voz que discute de si para si os impasses da composição do livro e sobre sua publicação ou não; a aproximação do narrador com as narrativas fílmicas e outras leituras; a reflexão sobre sua própria condição de sozinho no mundo, depois de atravessá-lo numa onda rarefeita das mais diversas experiências; a contínua tentativa de formular uma consciência em que se fundem sua história vivida, a imaginada e as compreensões que alinhavam uma e outra. Tudo isso e mais é o que contém Aqui de dentro. Mas, claro, tudo pode ainda não ser verdade e apenas um conjunto diverso de cenas de um script. Caçoar da percepção enquanto certeza é o grande trunfo de obras como esta de Sam Shepard. Uma espécie de provocação interpelativa da qual somos obrigados a sempre lembrar: a realidade é mesmo isso sobre a qual temos as mais correta das certezas?
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