Ursula K. Le Guin: vale a pena tentar
Por María Jesus Espinosa
Ursula K. Le
Guin (Berkeley, 1929 – Portland, 2018) demonstrou com sua frutífera trajetória
literária que o universo da ficção científica não estava obrigatoriamente
destinado a escritores homens. A autora estadunidense foi a primeira mulher a
ser galardoada com o título de “Grande Mestre” pela Associação de Escritores de
Ficção Científica e Fantasia dos Estados Unidos (SFWA). Foi em 2003. Mais de
sete décadas foram necessárias para que seu extraordinário trabalho como inventora
de mundos insólitos tivesse reconhecimento. Obras como A mão esquerda da escuridão (1969), Os despossuídos (1974) ou Floresta
é o nome do mundo (1972) a impulsionaram para uma fama que ela acolhia com
timidez e rubor.
Os temas que
Le Guin abordou em seus romances vão desde os conflitos planetários, dragões,
as lutas de espada, as naves espaciais ou os jogos de magia e feitiçaria. Em todos
eles, sub-repticiamente, há uma perspectiva de gênero que com o tempo se tornou
cada vez mais evidente. Em Os despossuídos,
por exemplo, destaca uma personagem excepcional, Shevek – um físico do planeta
anarquista Antares –, que advoga por derrubar aquelas barreiras que propiciam o
ódio, a desigualdade e a postergada posição da mulher na estrutura social.
As
personagens de Le Guin – sejam homens ou mulheres – tentam sempre evitar as atitudes
machistas da maioria dos heróis que pululam nos universos fantásticos da ficção
científica. Neste sentido, a escritora afirmava que enquanto tal devia ser consciente
de que ela era suas personagens: “Se no fundo confundo uma personagem ficcional
comigo mesma, meu juízo sobre a personagem se converte num juízo sobre mim”, escreve
a autora de Lavinia (2008) em Contar é escutar. Sobre a escrita, a
leitura, a imaginação, livro ainda não conhecido no Brasil e que se tornou
um importante legado literário porque uma longa conversa entre a autora e seus
leitores.
Assuntos como
a beleza, a velhice, o feminismo, a injustiça, a arte, a ecologia ou a política
estão presentes numa vasta produção que reúne vinte romances, doze livros de
poesia e uma centena de contos e novelas traduzidos para mais de quarenta
idiomas.
Junto com
Margaret Atwood é a grande dama da ficção científica. Dois nomes de mulher que competem
com outros ilustres como Arthur C. Clarke, Isaac Asimov, Ray Bradbury ou J. G.
Ballard. Uma das diferenças da obra de Le Guin com a de seus coetâneos é o componente
humorístico, que salva do fim e as construções mentais para dar voz aos perdedores
ou marginalizados de qualquer estrato social.
Ursula era
filha de dois antropólogos, Alfred L. Kroeber e Theodora Quinn Krober. Desde cedo
se sentiu atraída pela antropologia, um campo do saber que empregou tangencialmente
em suas obras de ficção. Esta dimensão antropológica, unida à ética, fez com
que suas narrativas fossem muito além das típicas histórias de aventuras espaciais.
Le Guin
também anteviu algumas questões, tal como acontece às melhores narrativas de ficção
científica. Em seu livro A mão esquerda
da escuridão, por exemplo, se percebe uma clara vontade por romper com as
barreiras de gênero: as personagens hermafroditas possuem potencialmente os
dois sexos e podem se relacionar indistintamente com homens e mulheres, conforme
sua atração e interesse. A identidade sexual, o papel de pais e mães ou a ideia
muito precisa do Queer se apresentam
em todos os seus relatos.
A escritora
estava convencida de que experimentar com a imaginação e modelá-la para alcançar
lugares inóspitos da alma humana se parecia muito com a própria existência. A ficção
científica, portanto, se constrói, para si, como uma grande metáfora da vida. Por
isso, seus textos alcançam tão bem públicos distintos, jovens e adultos. Esta dimensão
terá servido de influência para autores contemporâneos das sagas tão valorizadas
também por público diverso, como J. K. Rowling com Harry Potter. Ao mesmo tempo a literatura de Le Guin bebeu em
várias fontes como J. R. R. Tolkien e jamais ocultou que o ciclo Terramar (1968-2001) não havia existido
enquanto tal se não fosse O senhor dos
anéis.
Contar é escutar foi escrito já no fim da
vida e é um livro em que o leitor pode encontrar a visão e a forma de Le Guin
estar no mundo. Alguns dos textos que compõem a obra, por exemplo, analisam a
relação entre velhice e literatura. No capítulo “Corpo velho não escreve”, confessa:
“Escrever é uma tarefa árdua que não traz ao corpo algo que o satisfaça e seja,
portanto, uma forma de relaxamento, mas inquietude e tensão”. Na introdução à
obra, com sua comunal ironia proverbial, apontava que havia nascido antes de se
inventarem as mulheres. “Não estou certa de que já tenham inventado as mulheres
mais velhas, mas vale a pena tentar”.
* Este texto é uma tradução de "Úrsula K. Leguin: merece la pena intentarlo" publicado em Letras Libres
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