Trama fantasma, de Paul Thomas Anderson


Por Pedro Fernandes



O primeiro impulso do espectador ante esta narrativa é o de classificá-la como uma história de amor – e ao estilo romântico. Mas, se à primeira vista essa visão pode se estabelecer e mesmo se confirmar, é porque descuidou-se de reparar na estrutura profunda do narrado. O princípio romântico ronda o encontro de Reynolds Woodcock, um conceituado estilista da alta costura inglesa, com a jovem Alma, uma simples atendente de lanchonete – mas só ronda. Que o desenvolvimento dessa relação não confirma em nada a ilusão barata das histórias de amor entre príncipes e plebeias e o que Paul Thomas Anderson propõe é uma inteira desconstrução desse enredo cor-de-rosa e enfrenta de maneira enérgica um potentado que foi colocado em xeque desde o desvanecimento das cores mais vivas do epílogo do foram-felizes-para-sempre. A realidade só está para conto de fadas quando não se é personagem de conto de fadas; nele, algumas verdades, sempre cruéis, porque cruel é a realidade e o funcionamento das coisas é bastante diferente.

A condição do engano, entretanto, é proposital e cumpre com a alternativa encontrada pelo cineasta de nos envolver com o mesmo sentimento que a princípio comove Alma: o deslumbramento pela vida perfeita demais, em muito, distante do universo em desencanto dela, certamente, começa a ser testado quando a aparente admiração de Woodcock passa a ser vista como uma obsessão de posse e aos olhos de Alma começa a fazer sentido que o estilista lhe têm apenas com produto a partir do qual é possível manter o establishment de seu projeto criativo.

A mudança de percepção é fundamental para a leitura aqui proposta. O que ingenuamente alguns irão considerar como um comportamento adquirido de Woodcock capaz de fomentar uma transformação da relação meramente de criação em fruto amoroso não se confirma. Ele é um obcecado pelo trabalho e Alma passa a ser uma obcecada por este homem. Mas, o que passamos a acompanhar é uma contínua disputa de poderes e o desmantelamento silencioso de uma ordem cujo imperativo foi sempre o do macho dominante. É importante compreender a relação de subserviência dedicada pela extensa quantidade de funcionárias do ateliê de Woodcock, demonstrada logo à entrada da narrativa, e mesmo por sua irmã, primeiramente reduzida a um vago epíteto que substitui o nome próprio e quem sacrificou toda a vida em prol do talento e da obsessão dele ao ponto de, e esta sim é diretamente influenciada por Reynolds, se tornar numa mentora de pose senhorial.

Se Alma significará uma continuidade do império Woodcock, não se sabe. Não cabe conjeturas sobre o que narrativa não nos oferece. Ela significa, ao que parece, uma guinada criativa para o estilista. É para ele espécie de musa; reúne todas as características naturais a partir da qual é possível sobressair apenas a criação. Sobre isso, duas cenas são simbólicas em Trama fantasma: a em que o criador apaga-lhe as cores do batom e o encerramento da tomada de medidas da modelo através da sentença de Cyril, de que Alma reúne todas as medidas perfeitas aos propósitos de Woodcock. Da mesma ocasião, vale citar o imperativo rude do modista ao sublinhar que Alma não tem seios e é papel dele, se for do seu interesse, dá-los. Quer dizer, a todo tempo se impõe uma ordem de dominação do homem sobre a mulher e é contra esse império que lutará Alma, tornada como o próprio nome sugere, o sopro vital dos negócios da grife.

Nesse ínterim, a narrativa organizada por Paul Thomas Anderson recorre a alguns clichês igualmente produtos de uma consciência falocêntrica, segundo a qual, ante a interdição, restam à mulher os imperativos de uma condição pactuada com o maligno e a manipulação em favor dos seus interesses mais íntimos. Tanto que a sutilidade com que desconstrói o idealismo da história de amor, nessa ocasião, perde o tom e o espectador é livremente arrastado pela ideia de uma desalmada, que o esforço de Alma é pela derrota do império Woodcock por certa inveja mortal e pela total ignorância individualista e arrogante do estilista plenamente justificada em nome da força do gênio. Embora esse cabedal de imagens não se confirme plenamente, é impossível sair do filme sem essa impressão – ela é mais viva até que a fajuta história de amor.

Por outro lado, o traço da ardilosa favorece ao desenvolvimento, digamos assim, da tese proposta pela narrativa de Trama fantasma: a de que, não reside no homem dois dos princípios mais caros de toda sua história – possa ele modelar à sua maneira, não detém em simultâneo o poder sobre a vida e a morte. E tudo que existe está dominado por esses dois poderes; não há nada fora desse intervalo. A alternativa de Alma é a de levar Woodcock a reconhecer essa limitação que o faz, entre todas as criaturas, figura igualmente perecível e cujo poder, do qual tanto se orgulha e zela a duras penas, foi herdado da mulher, que ele sempre reconhece na admiração profunda guardada pela mãe, mas exercita tal reconhecimento de maneira impraticável nas ações cotidianas.

É neste ponto que o filme de Anderson se utiliza de uma verve meio realista e aponta para a afetação hipócrita que sustém o estreito universo Woodcock. Há, por toda parte, pura encenação; entre os ricos, e é o olhar de uma plebeia que oferece essa leitura, portanto mais autêntica não há, o que reina absoluto debaixo do poder, da casca de belo do glamour que se nota pela beleza da vestimenta ou a exposição midiática dessa beleza, é apenas pura hipocrisia. Não é que esta seja uma característica da posição social. O hipócrita está em toda parte, mas é naquele universo onde as relações se estabelecem mais pela aparência que pela essência que ele melhor se revela. Quer dizer, nem tudo que reluz é ouro. Alma descobrirá isso na relação de insignificância que uma cliente deita para com o trabalho de Woodcock: quando este devia servir de deleite aos olhos alheios é apenas uma maneira de comodamente agradar os vícios individuais de cliente à proporção do que o dinheiro é capaz de pagar. E depois, quando escuta em bom som o desabafo do marido de que ela representa, em definitivo, a ruína da marca Woodcock.

Trama fantasma não é uma história de amor, porque não há, em parte alguma, amor. Há um puro jogo de administração gratuita de dois ódios e Reynolds descobre bem isso ao saber da estratégia forjada por Alma para submetê-lo apenas ao domínio dela e silenciosamente aceita-a. É um pacto de silenciosa morte, afinal a continuidade da execução do plano de Alma favorece a longo prazo a destruição dele; ela sabe que sua vítima não se reduzirá a ela (o orgulho é força maior). O fantasma que assombra aos dois é o mesmo que nos assombra, a dominação. Cada um encontra a possibilidade de fazê-la funcionar para agrado de quem pensa dominar e de quem pensa manter o controle sobre quem o domina.

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