Reflexões políticas sobre a estética do romance
Por Rafael Kafka
Milan Kundera
escreveu dois livros nos quais se dedica a falar com ardor e argúcia sobre a
arte do romance. Penso que muitas de suas observações podem e devem ser lidas
como observações válidas na realidade para a arte literária em si. Hoje em dia,
percebo que a principal diferença entre um texto literário e um texto não
literário é algo que aprendi com as leituras de Paul Ricoeur. Nelas fui
apresentado ao conceito de referencialidade metafórica.
Até então, eu
acreditava que literatura era ficção, basicamente. Tudo aquilo que era criado
pela imaginação criadora do poeta era digno de ser considerado literário. Havia
em mim já uma clara noção de escritores os quais se utilizam de suas
experiências pessoais para produzir suas obras, mas não com maturidade suficiente
para lidar com textos como os Carlos Heitor Cony e Marcel Proust, os quais me
levaram a cogitar se memórias em si, sem os subterfúgios da “ficcionalização”
seriam literatura.
O conceito
aprendido com Ricouer de referencialidade metafórica me fez entender que o que
caracteriza literatura é justamente o uso da metáfora como principal ferramenta
de comunicação. O texto literário fala da realidade usando palavras cujo
sentido é multiplicado e que acaba expandindo nossa percepção por meio dessa
polissemia palavresca. O literário nos ensina por meio da experiência sensitiva
da realidade, por mais que em textos narrativos, em especial nos romances,
deparemo-nos demais com momentos especulativos.
Por meio do texto
literário, somos levados a outras realidades e como creio já ter dito em outros
textos temos diante de nós uma descompressão de ser. Por mais que haja seres
leitores capazes de terem as ideias mais fascistas, provavelmente motivadas por
pontos de vistas classistas e elitistas, é no terreno da falta do letramento
literário que tais ideias se sedimentam com mais força e levam os indivíduos a
reproduzirem com mais afinco ideias reificadas.
Se pensarmos no
grau de pobreza e de analfabetismo presentes na sociedade humana ao longo de
sua história, veremos como o texto, em especial o literário com suas nuances,
sempre foi um privilégio de classes mais abastadas. Por esse motivo, a
literatura ainda nos tempos atuais é um objeto de status econômico e social
para muitos indivíduos, que como a família da protagonista do romance Noite e dia, de Virginia Woolf, parecem
discutir literatura de forma tão vazia apenas para terem certa distinção –
inclusive colocando autores como Shakespeare e Shaw em diferentes patamares de
qualidade de leitura e de leitores.
Assim, a
literatura é uma ferramenta importante de combate político por garantir essa
descompressão de ser, essa outricidade, esse sair de si mesmo rumo ao outro e a
outros contextos e situações. Por isso as observações de Kundera sobre o
romance são pertinentes e, diria mais, aplicáveis a todos os gêneros
literários, mesmo aqueles tidos por alguns como não sendo literatura em si –
como a poesia, a qual para Sartre estava mais vinculada à pintura.
Há inclusive uma
passagem em Testamentos traídos na
qual Kundera afirma não ser nem comunista, nem capitalista: mas um romancista.
Com isso, o autor de A insustentável leveza do ser sintetiza todo um pensamento que coloca uma profunda fé no
romance como gênero textual capaz de refletir todas as profundas camadas de ser
da condição humana. O romance, com seu poder de absorver características de
outros gêneros, possui a densidade dos mais variados contextos sociais humanos
– sempre lembrando da premissa de Bakhtin de que os gêneros são influenciados
por questões sociais, sempre. Assim, as mudanças de tom trazidas pelo romance,
o seu caráter estético e ao mesmo tempo especulativo garantem ao escritor a
possibilidade de abordar diversos temas por diferentes linhas de tratamento,
garantindo uma visão ampla do ser humano ali tecido e desenvolvido.
Como a leitura é
um processo que representa precisamente a dimensão diaspórica do ser humano,
quando o texto sai da pena do autor ele deixa, de certa forma, de ser dele e aí
temos o poder de criação de sentido do sujeito leitor. Desta maneira, a
intenção original do escritor, em especial se ele estiver morto, passa a dar
espaço a visão do leitor, que com sua intencionalidade entende o texto a sua
maneira. Dentro de uma comunidade, esses olhares podem ser debatidos,
compartilhados, refutados, todos com base dentro do texto, gerando debate
saudáveis e produtivos.
Tal experiência
de debates de pontos de vista passou a se mostrar em minha vida quando lia
determinados livros aos meus 16 anos e emprestava os mesmos – muitas vezes de
forma anti ética, pois os livros nem eram meus - para meu amigo Tiago
Rodrigues. Era extremamente divertido e instigante discutir com alguém as
mesmas cenas lidas por mim dias antes, bem como o debate sobre as escolhas das
personagens e alguma mensagem que víamos dentro do texto lido.
Anos depois,
conheci a experiência dos cineclubes, quando queria ter mais do cinema em minha
vida, mas não tinha paciência para os filmes dos canais abertos. Aos poucos,
decidi-me a ficar nos debates pós filmes e muitas vezes os mesmos me ajudavam a
entender melhor não apenas os longas vistos, mas a própria formação de ideias
provocada pelas temáticas assistidas ali. Assim, com meu amigo e com os
cineclubes passei a entender que a arte narrativa em geral – mesmo os contos e
as crônicas – têm esse poder de nos ensinar sem nos ensinar, nos mostrando
outras vivências, fazendo-nos encarar a existência mesmo que nós e muitas vezes
o escritor não queira isso.
Pois para muitos,
Luciano Rubempré pode ser um garoto empreendedor e com coragem invejável, mas
para outros pode ser um tacanho exemplo do que é o capitalismo emulado pelos
mais pobres. O interessante é os dois pontos de vista saírem do ponto de juízo
de valor e passarem a analisar de forma crítica a realidade ali abordada e o
modo como esta se conecta à realidade aqui vivida.
Nesse sentido, o
romance talvez receba maior carinho e Kundera pela em geral considerável
extensão, que o leva a permanecer dias, semanas e até mesmo meses com um
leitor. Diante de nós, não temos o ímpeto do conto ou o êxtase do cinema, mas
um processo de gênese de seres o qual nos persegue por um período considerável
de nossas vidas – podemos dizer que esse processo de convivência é hoje, de
certa forma, emulado pelos seriados de TV.
Contudo, esse
poder provocador do romance corre riscos em tempos de surtos totalitários, como
os nossos. A arte em si é provocação e essa provocação fere o senso comum das
pessoas, mesmo que autores célebres em si fossem conservadores como Nelson
Rodrigues. A arte tem um poder de mostrar a realidade de modo tão amplo que nem
mesmo os autores conseguem fechar suas obras em uma “mensagem” precisa. Porém,
os conservadores de ambos os lados do espectro político parecem estar cada vez
mais incomodados com o incômodo difuso da arte e do romance em especial, talvez
por estarem cada vez mais perdidos em um mundo por si só difuso.
Dia desses, em
meio à polêmica de uma música que retratava uma cena de estupro, deparei-me com
uma moça feminista dizendo que certas canções de Chico Buarque e outros autores
deveriam ser banidas da face da Terra por fazerem clara apologia à cultura do
estupro. Não falarei dos outros citados por ela, mas as músicas de Chico
citadas são claramente obras literárias nas quais um eu lírico problemático
fala de suas relações problemáticas com mulheres em situação de opressão. Mas
provavelmente na mente dessa moça “Com açúcar, com afeto” é uma apologia de
Chico a que mulheres que sofrem nas mãos de maridos violentos e viciados
tolerem tudo na esperança de um futuro melhor.
Que diferença há
entre essa moça e alguém que tenha visto a performance do MAM com a criança
tocando o joelho do homem nu, sem erotismo algum, como uma apologia à
pedofilia? Ao meu ver, nenhuma. No campo progressista (ou dito progressista) e
no campo conservador, cada vez mais o hábito de leitura é negado e as pessoas
partem para o linchamento intelectual sem receio algum. As análises sistêmicas
são removidas de campo e cada vez mais situações particulares são vistas por si
só, sem o entendimento do aparato discursivo, moral e social que as engendram.
E sinceramente,
conversando com muitas pessoas as quais pensam como eu, percebo cada vez mais
não haver leitura, não haver aquele espaço para se ler algumas páginas de um
livro ao longo do dia com o intuito de sistematizar ideias e sensações no rumo
do entendimento de si, do outro e do mundo ao redor. O medo gera a raiva e o
pensamento totalitário toma conta de todos nós e cada vez mais o diálogo se
torna algo raro em nossos dias.
Por isso é
importante se manter a leitura de romances e outros gêneros narrativos e
expandir o hábito de debate sobre tais gêneros. Somente assim teremos a
descompressão de ser que leva de um livro a outro, de uma situação a outra e a
possibilidade de um debate de ideias que nos deixe congelar em nossa visão
fechada da realidade, quando nos tornamos tão desesperados diante da barbárie
que só nos importamos me matar – literalmente – o outro.
***
Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
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