Pastagens do Céu, de John Steinbeck
Por Pedro Belo Clara
Apesar de se
inserir no grupo das primeiras obras do escritor norte-americano, em Pastagens
do Céu (1932) já é possível identificar alguns dos traços e temas que, um pouco
mais tarde, consolidariam os contornos da identidade literária do autor.
Afinal, o seu primeiro sucesso, O Milagre de São Francisco, estaria apenas a
três anos de distância e a sua magnum opus, As Vinhas da Ira, não tardaria mais
de sete a ser publicada.
O presente trabalho
convida-nos a visitar um fértil vale, o Corral de Tierra, em Monterrey,
Califórnia, o estado natal de Steinbeck e o principal motivo das suas inspirações,
especialmente durante a primavera da sua carreira. A obra aglutina doze curtas
narrativas, onde se relata, de forma genuína e globalmente poética, a vida de diversas
famílias que aí habitam.
É certo que
falar de Steinbeck é lembrar alguém fortemente ligado à terra e ao homem de
condição mais simples, é evocar as fortes preocupações sociais que se espelham
nos diversos retratos que elaborou do quotidiano de então, pelo que tal
princípio não constitui uma incontestável novidade. Aliás, é até por essa
óptica que se compreende a forma como o autor não se coíbe de expor a
humanidade do seu íntimo. Será, por isso, válido supor que a escrita, à luz do
seu entendimento, não era tida como um mero exercício artístico ou um desejo
implorante de desabafo, antes uma necessidade de denúncia social. Basta, para
que o comprovemos, recordar algumas das suas palavras aquando do discurso de
aceitação do Prémio Nobel:
"Um escritor
é responsável pela afirmação e celebração da comprovada capacidade humana para
a grandeza de coração e de espírito – pela elegância na derrota, pela coragem,
compaixão e amor. Na infinda guerra contra a debilidade e o desespero, estas
são as luminosas bandeiras erguidas pela esperança e pela emulação."
Com o passar
dos anos, desde a edição deste livro, tal ideia somente alisou a corrente geral
da temática de Steinbeck, até se tornar no seu aspecto mais central.
A obra vem,
portanto, revelar o início do novelo que então seria desenrolado, apesar de
várias vezes passar despercebida pela generalidade do leitores mais acostumados
ao trabalho de Steinbeck. Mas é em Pastagens do Céu, como já frisámos, que
esses aspectos mais marcantes começam a emergir de forma coerente e sólida,
revelando-se na fundação sob a qual se ergue o entrelaçado de histórias que a
compõem, lançando nela uma ideia de estrutura que seria em parte resgatada num livro
de 1945, Cannery Row (por algumas editoras portuguesas traduzido em Bairro da
Lata).
Todo o
leitor iniciar-se-á numa caminhada, página a página, que exporá os medos, as inseguranças,
as certezas, as quimeras e os modos de agir e de pensar da comunidade que
habita o dito vale, havendo ainda espaço para investigar o peso que a glória
dos antepassados exerce naqueles que receberam o seu legado de bravura. Em
suma, o que mais sombreia as gentes daquele local, as suas tristezas e as suas alegrias,
ainda que se retire um denominador comum a todas elas: a família Munroe,
fatalmente ligada a cada viragem ou tragédia que assolará as demais.
Uma das
ideias mais curiosas que deste trabalho se retira é a inevitável desgraça que
irrompe do auxílio externo. Por diversas vezes se retrata a congeminação de
planos, bafejados pelas melhores intenções, por parte de indivíduos que teimam
na prestação de auxílio ao seu semelhante, mesmo que este não tenha sido
requerido. A intenção é de base inocente, como referimos, mas as consequências
são sempre desastrosas, capazes de amarrar ainda mais o ente alvo de ajuda nas
tramas dos seus problemas do que libertá-lo das mesmas.
Há um traço
leve de ironia e até de humor nestes retratos, onde sobretudo se censura a
arrogância humana presente no néscio saber da melhor opção a tomar na vida de
outrem. Resumindo: uma obstinação incontrolável em fincar a enxada no jardim
alheio, só que ao invés de efectivamente se auxiliar na plantação, apenas se
destrói tudo o que se havia conseguido até então. Ganha, por isso, renovada
força a imagem final com que o livro nos brinda: um autocarro de turistas,
parado na berma da estrada sobranceira ao vale, onde o guia a todos dá a indicação
do lugar e um louvor às suas belezas naturais – sem fazer uma pequena ideia dos
dramas que por lá se tecem.
De uma forma
tão natural e simples, um fiel retrato da humanidade e suas dinâmicas de
relacionamento é esboçado e perfumado, em dados momentos, com um tom cómico de
que apenas se lamenta a sua raridade, não só neste trabalho como na restante
obra do autor, pois convictamente cremos que outras dimensões se conquistariam
se tal característica fosse continuada, de tão feliz que é a sua utilização.
Além disso,
mesmo que de uma forma algo embrionária, Steinbeck convida já o leitor à
reflexão sobre os valores humanos, as ideias pré-estipuladas no seio das
comunidades, os comportamentos que se condicionam, a eterna dicotomia “certo e errado”.
E deixa antever, como quem soergue levemente a ponta de um véu, como tudo
poderia ser se imperasse alguma liberdade de acção e de conceitos, se a
individualidade fosse abertamente assumida e elevada ao glorioso sol da sua afirmação.
É através do
retratar da comunidade do vale, por dentro e por fora, que os principais
aspectos que caracterizam hoje Steinbeck emergiram, moldando a sua realista e
humana visão da existência como então se apresentava. De certa forma, o autor
parece deter o condão de provocar a comiseração pelo próximo em quem o lê, uma
vez que a humanidade que se manifesta tende a unir aqueles que a tal fenómeno
assistem. Uma união, salvaguarde-se, não apenas entre leitor e autor, mas com os
restantes membros de uma imensa família universal, quando o olhar se extrapola
das páginas do livro para a vida que em torno de todos nós se desenrola.
Apesar da
imensa crítica que Steinbeck recebeu em vida pelo seu "talento limitado", só
ombreando com o imenso carinho que o público lhe reservava, parece-nos, ainda
assim, que apenas um grande escritor poderá despertar tal sensação nos corações
de quem o lê, marcando-os indelevelmente.
* Este texto aparece pela primeira vez no extinto site Amanhã ou depois e foi revisado pelo autor para reapresentação aqui.
Comentários
Beijos.