O lobo do mar, ou como Jack London lê Nietzsche

Por Albert Lladó

cena da adaptação de Michael Curtiz para O lobo do mar


"Não sei bem por onde começar", nos diz o narrador de O lobo do mar, o romance que o estadunidense Jack London escreveu em 1904. Essa incerteza que nos ocupa ao começar a contar a história é especialmente significativa porque o protagonista, Humphrey van Weyden, é um intelectual com grandes dotes para a literatura. Algo se contradiz. Talvez a confiança na palavra não é tão forte como havia sido até então. Ou, agora, talvez conheça todos seus limites. E a necessidade de que a palavra e ação ajam de mãos dadas.

Humphrey não confessa que, quando tudo começa, se encontra na casa de um amigo, Charley Furuseth, onde passava os fins de semana. E aqui, no primeiro parágrafo do romance, como se fosse um acaso, cita algumas das leituras de seu colega. “Ele tinha uma casa de veraneio em Mill Valley, à sombra do monte Tamalpais, mas a ocupava somente no inverno, quando ia para lá descansar e aliviar a cabeça lendo Nietzsche e Schopenhauer”, diz. Não voltará a citar os filósofos alemães, mas de alguma maneira antecipa tudo o que verá, como um homem refinado e culto; uma vez que naufraga e se vê preso num mundo desconhecido se apegará à vontade de poder. Não se trata apenas de sobreviver, como veremos, mas de ir mais além e compreender a dupla natureza que nos define, como humanos, esse jogo constante entre o apolíneo e o dionisíaco, entre o racional e o espontâneo.

Humphrey van Weyden, aproveitando a visita à segunda residência de seu amigo, pretende cruzar a baía de San Francisco. Mas o ferry em que viaja se choca fatalmente contra outro barco e o crítico literário se vê arrastado pela correnteza. Será resgatado em mar aberto pela tripulação do Fantasma, uma escuna que se dirige para o estreito de Bering para caçar focas. Acredita que está salvo, mas não sabe ainda que o capitão, o temido Lobo Larsen, transformou sua embarcação numa espécie de cárcere.

Aqui começa a luta entre duas formas de entender a vida. Larsen é um autodidata inteligente e cruel, capaz de conversar sobre qualquer tema mas que, de repente, pode deixar-se levar por seus ataques de cólera. As dores de cabeça são seu ponto frágil, o único de uma força selvagem que, como é perigosa e imprevisível.

Apesar da brutalidade da prisão, e a dureza de viver em mar aberto, os diálogos entre van Weyden e Larsen nos descobrem as arestas mais recônditas da alma. O crítico literário diz ao marinheiro que lê a imortalidade em seus olhos. Este o contesta; que o que ele lê é "a consciência que a vida tem de que está viva. Mas nada além disso, não uma vida infinita".

"Como ele se expressava com clareza, e como expressava bem o que pensava!", se surpreende van Weyden. E se pergunta como explicar seu idealismo a esse lobo do mar. “Como podia verbalizar algo que eu sentia, algo que era como a melodia dos sonhos, algo que se fazia entender mas transcendia qualquer esforço de elocução?”, insiste.

O crítico pede a Larsen que lhe diga em que acredita realmente. "Acredito que a vida é uma confusão [...] É como um levedo, um fermento, uma coisa que se move e pode continuar se movendo por um minuto, uma hora, um ano ou cem anos, mas que no fim vai parar de se mover. Os grandes devoram os pequenos para que possam seguir se movendo, os fortes devoram os fracos para manter sua força. E quem tem sorte devora mais e se move por mais tempo", acrescenta, resignado e taxativo.

A vida é algo além de especialidade. Uma especialidade que às vezes utilizamos como desculpa e refúgio. Neste romance, Jack London parece nos dizer isso. O narrador, uma vez mais, se antecipa nas primeiras páginas ao que será sua transformação como protagonista. "Lembro de ter pensado como era conveniente essa divisão do trabalho que me poupava de estudar neblinas, ventos, marés e navegação para visitar meu amigo que morava do outro lado da baía. Era bom que os homens se especializassem, ponderei. O conhecimento específico do piloto e do capitão bastava para servir milhares de pessoas que sabiam tão pouco quanto eu a respeito do mar e da navegação. Por outro lado, em vez de dedicar minhas energias a aprender tudo que é tipo de coisa, eu podia concentrá-las no estudo de algumas coisas em particular, por exemplo o lugar de Poe na literatura americana".

Quando é pego por Larsen, que o faz trabalhar nos postos mais inclementes do Fantasma, sua concepção de mundo se transformará radicalmente. O livro se converte, assim, num canto à resistência, mas também numa afinada análise da conduta humana.

O lobo do mar é, também, um romance de aventuras. E, portanto, o amor funcionar como motor de bordo e reviravolta narrativa. Neste caso, é a chegada ao barco de Maud Brewster, uma reconhecida escritora que conta com a admiração de van Weyden, o que desencadeia a fuga dos dois. E a perseguição do capitão.

O romance foi levado ao cinema em 1941 por Michael Curtiz, com roteiro de Robert Rossen. O ator Edward G. Robinson interpreta Lobo Larsen. Alexander Knox dá voz e corpo a Humphrey van Weyden, enquanto Ida Lupino encarna Brewster.

Larsen, que na verdade foge de seu irmão,  encontrará os foragidos numa ilha deserta, mas as dores de cabeça que acompanhamos não são mais que os sintomas de uma grande enfermidade cerebral. Cego, ele acabará morrendo sob numa violenta tempestade.

Finalmente Brewseter e van Weyden serão resgatados. E apesar de tudo o havia sofrido, dão um enterro a Larsen; "[...] já não podem acorrentá-lo. Ele é espírito livre".

Se voltarmos à primeira página do romance, em que o protagonista cita Nietzsche, podemos comprovar como van Weyden quer intitular o ensaio no qual está trabalhando. Chama-se "A necessidade de liberdade: uma defesa do artista". Parece evidente que essa independência, agora, pouco tem a ver com a especialização do erudito. Jack London voltou a ouvir o chamado do selvagem.

* Este texto é uma tradução de "El lobo de mar, cómo Jack London lee a Nietzsche", publicado na Revista de Letras


  

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