Magnólia
Por Rafael Kafka
Acordo pela manhã aliviado por
voltar ao trabalho. Três semanas em casa, preso pela chuva, pela folga e pelo
trânsito ruim me fizeram entender perfeitamente que por mais que ame o sossego
eu gosto mesmo de me sentir em movimento. Em certos momentos, penso que
gostaria de ter um dia dobrado em duração ou não ter de dormir tanto para me
sentir descansado na manhã seguinte.
Coloco os livros na mochila e
sigo para a escola em um dia ideal qualquer. Passo horas falando e discutindo
com alunos sobre diversos temas, usando a língua portuguesa e a interpretação
de texto como pretextos para convite ao pensamento crítico da realidade. Cada
fala deles me faz pensar em algum pensador ou escritor já lido por mim. Hoje
mesmo, um aluno falou em níveis de homofobia e me fez pensar no conceito de
violência simbólica, o qual me remete demais a Pierre Bourdieu. Outra aluna,
começa a falar das “mulheres de malandro” e de como as julgamos sem entender
que elas, quase sempre, não tem como sair da sua situação de violência, por
dependência afetiva e dependência econômica.
E isso porque começamos a
discutir sobre a gravidez na adolescência e eu vejo naqueles olhinhos uma
vontade incrível de se expressar.
Coloco meus fones de ouvido e
tomo dois copos de suco de acerola. Tenho tentado emagrecer, mas não sei se
isso vai adiantar muito com a mistura de açaí com mortadela que farei no almoço
em breve, na casa da mamãe, que pela noite me dando um mingau light me diz que
ando magrinho e tento convencê-la, ela também bem magrinha e andarilha, de que
estou me cuidando para não ficar obeso e com colesterol algo.
Enquanto tomo o suco, coloco os
fones de ouvido e enquanto ouço Doves, uma banda recém-descoberta por mim, leio
algumas páginas do muito bem escrito romance Os tambores de São Luís, de Montello. Ao meu redor, colegas de
trabalho devem estar falando ainda de eu ter ido a uma formação pedagógica de
uma emissora com ares tucanos, dizendo que assim traí meu comunismo, ou de
qualquer outro assunto que naquele momento não me interessava. Eu apenas
acompanhava Damião os riffs dos Doves, uma banda que não se preocupou em imitar
os Beatles.
Eu me sinto feliz de conseguir
me isolar com o fone e o livro e de me sentir livre de interações, eu que em
tantos momentos me boicoto para poder ter com quem conversar. Lembro que mexi
em meu Facebook para ter mais acesso às nofiticações de grupos nos quais estou
e começo a ler textos e manchetes ligadas à política quando canso de ler. Farei
isso com mais frequência à tarde, enquanto crio coragem de retomar uma outra
leitura – um livro de Bergman no qual ele fala de sua filmografia – e após
terminar de revisar uns textos para uma revista na qual colaboro.
Nesse meio tempo, redescobri
Graham Coxon, outro cantor esquecido por mim, e achei um álbum legal do Caetano
no Deezer e me peguei curtindo esse cantor que até então me parecia tão
pedante.
E me pego pensando em Jorge
Amado.
Eu tenho pensado demais em Jorge
Amado. Peguei Tieta na biblioteca da
secretaria de educação e espero começar a ler ainda hoje. Sim, eu tenho tentado
ler uns três livros e sou geralmente atrapalhado pelo meu vício em memes e
leitura de notícias e discussões políticas. Hoje decidi colocar meu celular com
o alarme tocado para trinta minutos e ao fim desses trinta minutos eu paro,
respondo as mensagens, geralmente as da Michele, porque a gente nunca consegue
se afastar, e vejo se algum meme legal aparece para eu compartilhar no status
do Whatsapp. Sim, eu gosto de ser notado.
Lendo o Bergman, eu vejo uma
imagem de A Hora do Lobo e mando-a
para Michele dizendo que aquela atriz me faz pensar demais nela. Não a Liv
Ullman, maravilhosa, mas outra com sorriso profundo e corpo belo que me remete
ao corpo de Michele, que ela pensa que erotizo demais, mas na verdade eu amo
demais, pois me faz pensar no cinema e em seu poder de ser arte arrebatadora,
arte que se não fosse a literatura seria a minha favorita. Mando também um
áudio de três minutos dizendo que por mais que eu tente não consigo dela me
desapegar e sei que nosso enredo pode desenrolar, se esse medo ansioso que nos
toma conta ser deixado de lado e eu entender que uma tarde na praça pode ser
tão romântica quanto tê-la em meus braços com a chuva caindo lá fora.
E ela diz que me ama e isso me
remete a mais cedo, quando eu estava na mamãe vendo Chaves com ela. Mamãe
estava rindo das piadas, ela que sempre reclama de Chaves ser altamente
repetido pelo SBT. Foi um momento singelo e tranquilo, mesmo com Preta, a
vira-latas salva por mamãe, mais uma entre tantas já salvas, querendo a todo
instante me dar uma bola laranja a qual depois ela vinha tenta tirar de minhas
mãos.
A vida me soa incerta enquanto
me deito para dormir já em minha casa. A qualquer momento, mamãe pode não estar
mais aqui. Então tenho feito todo o possível para ouvir sua voz. A voz de
Michele, menina de trinta anos de idade, também pode sair de minha vida um dia
e isso me assusta. Meus alunos passarão, mas enquanto não passam aproveito toda
a poesia deles e tento fazer algo nessa vida tão absurda que levamos.
E enquanto o ônibus segue lotado
para a escola, me pego sorrindo e disposto, pensando em correr e pela noite me
vejo correndo, parando e caminhando quando a distância, a qual não consigo
controlar tão bem, me cansa. Devo ter corrido/caminhando uns cinco/seis
quilômetros e me sinto mais leve do que me matando numa academia cheia de gente
desesperada para ficar gostosa. E no coletivo eu me pego sorrindo mesmo ele
estando lotado e mesmo o caminho até ele sendo repleto de lixo causado por
problemas econômicos e falta de emprego e penso na amplitude da existência que
parece existir nas flores do jardim ao lado da escola.
E que expande para os livros
lidos, para os memes e textos lidos e compartilhados e para os sorrisos de
mamãe, Michele, de algumas pessoas por aí e dos meus alunos. Momentos fugazes,
mas cuja beleza é tão grande que algo de eterno há neles, perdurando em minhas
memórias e me dando a impressão de que essa vida é maior do que o imaginamos
dela, muitas vezes afundando-nos em prazeres fugazes e em donjuanismo barato.
Em minha mente, o tempo se
esculpe de forma não-linear nesta noite, pois neste dia o prazer se mostrou
vivo e como algo presente aqui outras vezes ignorado por mim. Percebi-me ligado
à arte, à beleza da vida, na resistência de Damião, na ironia de Jorge e na
melancolia de Bergman, no corpo de Michele – signo de beleza inefável – e no
sorriso de minha mãe. Percebi em profusão existencial profunda e decidi-me a
escrever depois de muito tempo soltando minha mente, sem método, apenas criança
brincando com palavras em busca de concretude alguma.
Posso
dizer que hoje estou feliz, pois na imensidão de um simples dia se revelou – e
tem se revelado mesmo eu não querendo enxergar isso, por ser mais fazer drama e
ser cínico – todo um esplendor poético e salvador dessa bela vida que tenho
passando por mim.
***
Rafael Kafka é colunista no Letras in.verso e re.verso. Aqui, ele transita entre a crônica e a resenha crítica. Seu nome é na verdade o pseudônimo de Paulo Rafael Bezerra Cardoso, que escolheu um belo dia se dar um apelido que ganharia uma dimensão significativa em sua vida muito grande, devido à influência do mito literário dono de obras como A Metamorfose. Rafael é escritor desde os 17 anos (atualmente está na casa dos 24) e sempre escreveu poemas e contos, começando a explorar o universo das crônicas e resenhas em tom de crônicas desde 2011. O seu sonho é escrever um romance, porém ainda se sente cru demais para tanto. Trabalha em Belém, sua cidade natal, como professor de inglês e português, além de atuar como jornalista cultural e revisor de textos. É formado pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará em Letras com habilitação em Língua Portuguesa e começará em setembro a habilitação em Língua Inglesa pela Universidade Federal do Pará. Chama a si mesmo de um espírito vagabundo que ama trabalhar, paradoxo que se explica pela imensa paixão por aquilo que faz, mas também pelo grande amor pelas horas livres nas quais escreve, lê, joga, visita os amigos ou troca ideias sobre essa coisa chamada vida.
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