Guimarães Rosa, observador literário
Por Guilherme
Mazzafera
Em uma importante
carta para seu tio Vicente Guimarães, datada de 11 maio de 1947, Guimarães Rosa
traça um detalhado e combativo diagnóstico da literatura brasileira de então, identificando
uma série de problemas graves – sobretudo de ordem técnica – e esboçando
soluções possíveis que adquirem, no teor de sua escrita, a dimensão de um
posicionamento estético-político.
Em seu
contexto específico, a carta responde às críticas do tio à recém-publicada
“crônica-fantasia” de Rosa, “Histórias de fadas”, mas seu interesse se espraia
na formulação de uma tese, considerada vital, sobre a literatura e cultura
brasileiras. Elaborada por “dever de artista” e como resposta a um estado de
coisas determinado, a carta alterna proposições teóricas e comprovações
empíricas de sua eficácia a partir de uma seleção de excertos críticos sobre Sagarana.
De modo muito diverso de outras manifestações do escritor sobre o próprio
ofício, a linguagem da carta não assume tons opacos nem feições abstratizantes,
mas dá nome aos bois literários que se refestelam nos lugares-comuns (prontamente
elididos pelo tio ao ofertar a carta ao público) e delineia sem meias palavras
o estado da arte literária no país naquele momento:
A língua
portuguesa, aqui no Brasil, está uma vergonha e uma miséria. [...]
Empobrecimento de vocabulário, rigidez de fórmulas e formas, estratificação de
lugares-comuns, como caroços num angu ralo, vulgaridade, falta do sentido de
beleza, deficiência representativa. É preciso distendê-la, destorcê-la,
obrigá-la a fazer ginástica, desenvolver-lhe músculos. Dar-lhe precisão,
exatidão, agudeza, plasticidade, calado, motores. E é preciso refundi-la no
tacho, mexendo muitas horas. Derretê-la, e trabalhá-la, em estado líquido e
gasoso. (GUIMARÃES, 2006, p.138)
Diante de
uma situação desalentadora, que constitui um “Longo e infeliz período de
relaxamento, de avacalhação da língua, de desprestígio do estilo, de
primitivismo fácil e de mau gosto” (p.133-4), Rosa propõe um trabalho minucioso
e material de linguagem, consciente de que, a partir daquele momento, “Toda
arte [...] terá de ser, mais e mais, construção literária”. (p.133)
Em
contraposição aos problemas apontados, o escritor vislumbra a emergência de uma
“virada” pressentida tanto na literatura quanto na crítica. Esta, encampada
pelos melhores nomes de uma nova geração (Antonio Candido, Lauro Escorel,
Almeida Salles e o já então consagrado Álvaro Lins), tem apontado
progressivamente a “mudança de direção na literatura de melhor classe”,
culminando em palavras de ordem: “construção, aprofundamento, elaboração
cuidada e dolorosa da ‘matéria-prima’ que a inspiração fornece, artesanato!”
(p.134).
Atuando no
cerne de um programa estético sempre negado, está a noção, emprestada de
Aurélio Buarque de Holanda, de que o único programa digno de um escritor é o de
“elevar o gosto do povo” (p.135). Tal medida se contrapõe à atitude de
escritores despreparados e preguiçosos que têm medo de que seus leitores se
“tornem mais exigentes” e encontra anteparo, por exemplo, na crítica de Álvaro
Lins, que destaca que a busca de um escritor em comunicar-se com seu leitor não
deve nunca ceder à tentação de simplificar, abandonando técnica e estilo, mas,
pelo contrário, “Parece certo [...] que o meio mais honroso de fazer o povo
participar da arte – é o de levar o povo até onde se encontra a arte.” (LINS,
1946, p.118).
Responder a estas contingências por meio de
uma consciência técnica apurada torna-se uma necessidade premente do contexto,
assumindo tons bélicos de confronto com um presente específico e que se eleva
ao alcance de uma convocação geral que teria, em seu horizonte, o anseio de
reabilitar a arte: “Quem pode, deve preparar-se, armar-se, e lutar contra esse
estado de coisas. É uma revolução branca, uma série de golpes de estado” (GUIMARÃES,
p.138). Nesse sentido, Rosa deixa claro que a valorização da construção
literária não é um dado concebido aprioristicamente, mas uma exigência do
próprio tempo histórico:
Agora,
porém, a hora é de combate, de ofensiva. Tudo está mudando, seo Vicente. Não
retornaremos ao verbalismo inflacionado e oco de Coelho Neto, não repetiremos o
coelhonetismo [...] Não se trata de um movimento intencional, artificialmente
concebido. É, apenas, a voz dos tempos. Você acha que é por coincidência pura e
simples, ocasional, que estão surgindo por toda parte, autores novos, falando
em outro tom, e que os velhos, os melhores deles, começam a querer mudar de
trote e acertar passo? “Arte é artifício”, brada Graciliano Ramos. (GUIMARÃES,
2006: p.134)
Centro
aglutinador da carta, o excerto é iniciado pela marca do presente imediato
(“agora”) e indica a necessidade de confronto, animado por uma linguagem
beligerante que permeia toda a missiva, contra uma tradição já caduca,
decadente, mas que ainda influi. A reação a este estado de coisas, entretanto,
não se dá por manifestos programáticos, “artificialmente” concebidos, mas como
demanda presente do tempo histórico, alicerçada na lição exemplar do mestre da
geração anterior, cujos melhores representantes acertam o passo na direção dos
novos, irmanados pela compreensão essencial de que “Arte é artifício”.
A percepção
de uma crise na língua e literatura brasileiras e a necessidade de enfrentá-la
a partir do preparo técnico não são exclusividades de Rosa, mas permeiam vasta
gama de textos de grandes nomes da crítica e criação literária do período. Como
exemplo de um percurso possível, tomemos a “Decadência do romance brasileiro”
(Graciliano Ramos), em que se destaca a necessidade de conhecimento íntimo da
matéria romanesca por parte do escritor; passemos pela “Elegia de abril” (Mário
de Andrade) e sua defesa da “consciência técnica do artista”; e dediquemos
algum tempo à crítica de rodapé de Álvaro Lins, que vislumbra uma crise (ou
decadência) mais profunda, confrontada unicamente por casos de exceção e que
assume feições graves no caso do romance, forma que se mostrava incapaz de
escapar de um círculo vicioso de tendências já incorporadas à literatura nacional
por volta de 1940.
No entanto,
as ideias de Rosa parecem encontrar identidade mais profunda com o pensamento
de Sérgio Buarque de Holanda em sua atuação como crítico literário. Em ensaios
por volta de 1950, Sérgio delineia uma crise mais específica, caracterizada
pela diminuição da importância da prosa romanesca em contraposição à emergência
do poético e do interesse por seus procedimentos compositivos:
A dedicação
à poesia e aos problemas da poesia, entre as novas gerações de escritores
brasileiros, parece associar-se a um declínio de prestígio da prosa de ficção,
sobretudo do romance, que nos anos 30 tendia, quase sem contraste, a dominar o
panorama literário. As preocupações formais e técnicas, que repentinamente
empolgaram aquelas gerações; a nostalgia de antigas e perdidas disciplinas, que
o longo desuso pôde reabilitar; a vontade, finalmente, de construir um mundo
pessoal, que libertasse de realidades cada vez mais ásperas ou prosaicas,
explicariam em grande parte essa verdadeira inflação poética. (HOLANDA, 2010:
p.207)
Pensando
historicamente, o crítico constata que se o Primeiro Modernismo operou uma
verdadeira “revolução poética” que alterou “forma e fundo” e tornou tributários
até seus detratores, “nada realizou de comparável nos domínios da prosa de
ficção.” (p.208) Em âmbito mais específico, a partir da análise da prosa de
Oswald de Andrade e Clarice Lispector, Sérgio formula uma hipótese que,
partindo dos exemplos malogrados em estudo, poderia ser uma saída possível
diante do travamento da prosa brasileira: “uma consideração mais atenta
daqueles problemas que têm sido, até aqui, sobretudo o apanágio da poesia:
problemas de técnica” (p.208-9).
O interesse
pela técnica se opõe à primazia do tema na apreciação e composição da maior
parte da prosa do período, seja regionalista ou intimista, que valorizava o “material
da novela” ao invés da “capacidade de organizar este material numa unidade
artística independente e coerente” (p.210) por parte do escritor. Pensando
especificamente nos escritores regionalistas da geração de 30, Sérgio destaca
uma espécie de excesso de “romanesco” que, ao tornar o assunto demasiado
sugestivo, seria suficiente para suprir qualquer necessidade de “artifício” na
composição dos romances, o que, a seu ver, é um problema, pondo em dúvida a
capacidade desses escritores em se destacar caso trabalhassem com temas menos
estimulantes por si mesmos.
Em face
dessas circunstâncias, Sérgio advoga pela busca de uma forma que seja consubstancial
à matéria, seja – como em Joyce ou em Proust – pela deliberada superação das
técnicas tradicionais, seja, como entre os russos de ontem ou os
norte-americanos de hoje, graças a ausência de uma tradição estética absorvente
e imperiosa, que se tenha constituído em estorvo para a imaginação criadora
(p.210).
A obtenção
de tal técnica “verdadeiramente substancial à matéria” – formulação tirada de
Claude-Edmont Magny – converte-se, naquele contexto, em atitude essencial para
reparar o equívoco que enaltece o tema no lugar da “arte e engenho do novelista”
e, assim, abrir caminho para, em suas palavras, “uma verdadeira reabilitação,
entre nós, da arte do romance” (p.210-11).
Se tivermos
em mente a observação certeira de Davi Arrigucci Jr., em sua aproximação entre
Rosa e o mexicano Juan Rulfo, sobre a internalização do ponto de vista e sua
contiguidade expressiva com os conteúdos a serem articulados, penetração na
matéria “que implica algo maior: a experiência histórica incorporada como visão
de realidade” (ARRIGUCCI JR., 2010, p.173), fica claro que a busca de Rosa e a
de Sérgio muito se assemelham. Partindo da prática literária vigente na época,
Sérgio aponta seus descaminhos, enquanto Rosa dramatiza seus impasses,
sobretudo na exploração progressiva do ponto de vista em primeira pessoa em uma
narrativa essencial para o desenvolvimento de seu estilo e perspectiva, “Com o
vaqueiro Mariano” (1947-48), cujos desdobramentos se fazem sentir em “Meu tio o
Iauaretê” (composto inicialmente no final dos anos 1940 e publicado pela
primeira vez em 1961) e em seu único romance, Grande sertão: veredas (1956). Partilhando
o caráter urgente da formação de uma consciência técnica do artista enquanto
meio de atingir uma forma consubstancial à matéria que, por sua vez, responde a
uma demanda presente – a crise da prosa de ficção para Sérgio, e da língua e
cultura brasileiras, para Rosa –, tal aproximação suscita questões sobre em que
medida a obra de Rosa pode ter operado a reabilitação da arte do romance entre
nós e, se assim foi, cabe indagar as razões que levaram Sérgio, em mais de mil
páginas de crítica literária, a não tomar Rosa e sua obra como objeto de
análise, restringindo-se a um comentário por demais elogioso: “nenhum escritor,
me deu até hoje, entre brasileiros, a mesma ideia de tratar-se de criação
absolutamente genial” (Em memória de João Guimarães Rosa, 1968, p. 97).
Referências
ARRIGUCCI
JR., Davi. Fala sobre Rulfo. In: O guardador
de segredos: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Em memória
de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: José Olympio, 1968.
GUIMARÃES,
Vicente. Joãozito: a infância de Guimarães Rosa. São Paulo: Panda Books, 2006.
HOLANDA,
Sérgio Buarque de. O espírito e a letra: estudos de crítica literária II
(1948-1959). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
LINS,
Álvaro. Jornal de crítica. 4ª série. Rio de Janeiro: José Olympio, 1946.
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