Escritores russos condenados por pensar fora do imposto para pensar
Gulag Zombie. Igor Obrosov.
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Não devem
ser poucos os países do mundo em que os arquivos da polícia política sejam
relevantes para a história da literatura – afinal este mal que grassa a
liberdade de expressão foi e é recorrente em todas as partes do globo. Mas, um
deles talvez não deixe de estar entre os principais: o arquivo da União Soviética.
A combinação
do controle totalitário e o papel que o estado soviético determinava às artes
literárias para a vida moral da nação se traduziu no pleno exercício da vigilância
e muitos nomes importantes de uma das literaturas mais expressivas de sempre– a
bem verdade quase todos os nomes que conhecemos de depois da Revolução – tiveram duros e sucessivos embates com a polícia,
desde a Tcheka, primeira das organizações de polícia secreta da URSS criada por
um decreto emitido em dezembro de 1917 por Vladimir Lênin, à KGB. Os
resultados, não é preciso dizer, foram letais: para escritores e para a
literatura, esta que foi transformada em panfleto barato do sistema. Dos seiscentos
delegados que participaram no primeiro congresso da União de Escritores Soviéticos
mais de um terço pereceu sob a repressão e estima-se que ao todo mais de dois
mil foram executados ou pereceram nos campos de prisão.
Em 1988,
quando os impulsos de Mikhail Gorbatchov davam mostras que um novo clima de
liberdade se abriria no país, a Era Glasnost e Perestroika, Vitali Shentalinski
(Sibéria, 1939) criou uma comissão de escritores que exigia a abertura dos
arquivos da KGB para a recuperação do legado literário dos autores desaparecidos
na ditadura. Tratava-se de reunir suas terríveis experiências, completar suas
biografias e talvez encontrar textos literários perdidos. Dois anos depois,
quando a União Soviética havia desaparecido, Shentalinski pôde entrar no triste
célebre edifício da Lubianka, sede da KGB, e receber das mãos de um oficial o
dossiê de Isaac Bábel, o escritor simpatizante da revolução que havia recriado
o drama da guerra civil nos impressionantes relatos de O exército de cavalaria (1926).
Bábel foi
detido em maio de 1939, em pleno auge das perseguições e nunca mais se soube
dele até depois da morte de Stálin. Até a investigação de Shentalinski não se conhecia
uma data sequer da execução realizada em janeiro de 1940. O contato com as
histórias e as investigações sobre as prisões e as mortes integram o grande
projeto de escrita desse russo que não deixou perecer a memória e para as
gerações futuras de leitores construiu a possibilidade de descermos com ele aos
infernos através da compilação dos interrogatórios e das confissões que se viu
obrigado a ler e transcrever, documentos que se misturam à própria voz do escritor
com as falsidades que os interrogados eram obrigados a dizer pelo que inventavam
os interrogadores. Desde 1937 que a tortura era legal na URSS e o horror que
sofreu podemos deduzir da carta que enviou a Viatcheslav Mólotov, o diretor do
teatro Vsevolod Meyerhold, detido por essa mesma época e interrogado pelos
mesmos carrascos. Meyerhold foi fuzilado em 1940 e sua carta é um dos documentos
descobertos pelas investigações de Shentalinski.
Por que
Bábel foi executado e Boris Pasternak, por exemplo, nunca sequer foi preso? Dada
a arbitrariedade do sistema, que obrigava suas vítimas a confessar crimes
inexistentes, a resposta mais provável é a sorte: o dossiê de Pasternak mostra
que material para uma incriminação falsa não faltava. Segundo a confissão de
outra vítima, Mikhail Koltsov, quando em 1935 foi celebrado o congresso internacional
de escritores pela paz em Paris, André Gide, que então via com simpatia a
revolução russa, lamentou a baixa qualidade da delegação soviética e exigiu que
fossem incluídos Bábel e Pasternak. Mas tarde, quando Gide visitou o país, se
reuniu várias vezes com Pasternak, o que poderia ter sido letal para o russo,
dado o conteúdo crítico que Gide escreveu sobre sua viagem. Como foi fatal para
Bábel sua relação com outro escritor importante da literatura francesa, André
Malraux, cantor da épica comunista em seu romance sobre a guerra na Espanha, A esperança (1937). Segundo teria confessado
Bábel em seu interrogatório, “Malraux, quando falava de nossos interesses comuns,
da paz e da cultura, aludia a minha atividade de espião em favor da França...”.
Tudo se voltou contra o autor de O exército
de cavalaria. Sua amizade com os chefes da cavalaria vermelha se converteu
em suspeita quando foram condenados por trotskistas, mas talvez o mais grave tenha
sido haver tratado com o sinistro Nikolai Yezhov, que depois de haver passado
por perseguições de 1936 a 1938 caiu em desgraça, foi torturado, denunciou
Bábel, que havia sido amante de sua mulher, e foi executado em 1940. Pasternak,
ao contrário, sobreviveu a Stálin e pôde ver publicado no Ocidente seu grande
afresco da Revolução Russa, Doutor Jivago
(1957), graças aos esforços do editor Giangiacomo Feltrinelli.
Mikhail
Bulgálkov não viveu para ver o triunfo de sua obra-prima, O mestre e Margarida, que sequer se atreveu a tentar publicar e só
foi editado em 1967. No romance pôs a luta do espírito livre num mundo sem
liberdade e em definitivo o problema do mal. Seu dossiê na KGB revela que por
muitos anos a sua criatividade se viu várias vezes cooptada, com a frequente censura
de suas obras para o teatro. A grande descoberta de Shentalinski foram os
diários de Bulgákov durante os anos de 1921 a 1925, que seu autor queimou quando
foram devolvidos, mas preventivamente a polícia havia fotocopiado. Interrogado
depois de sua prisão em 1926, não ocultou que durante a guerra civil havia
simpatizado com os brancos e que viveu sua derrota “com horror e perplexidade”.
Naquele tempo, todavia, podia afirmar isso e sobreviver. Não foi condenado, mas
se converteu num autor maldito e em 1930 escreveu a Stálin sua famosa carta, cujo
a original foi encontrado por Shentalinski, em que pedia permissão para sair da
Rússia ou ao menos trabalhar. O grande ditador se mostrou magnânimo, telefonou
para o escritor e ele pode obter um emprego, mas não o permitiu emigrar.
Permaneceu outros dez anos na grande prisão do espírito que era a URSS.
Outros
protagonistas das investigações de Shentalinski são os poetas Ósip Mandelstam
(que pereceu às perseguições), Marina Tzevietáieva e Anna Akhmátova, que junto com
Pasternak constituem os pontos máximos da poesia russa do século passado, e os
romancistas Andrei Platónov e Maksim Górki. Este último não só não foi
perseguido como recebeu todas as honras por parte do regime que o considerava
grande escritor revolucionário, mas o vigiava muito de perto. Os documentos da
KGB inclusive tratam sobre sua discutida morte.
Ana
Akhmátova nunca foi presa, mas sua vida sob o regime soviético foi uma longa
agonia que se reflete em sua obra-prima, o poema “Réquiem” (1939). “Aconteceu quando
a sorrir / Eram só os mortos: contentes pela paz. / E, inútil sobra, pendia / Em
volta de suas celas, Leningrado. / E quando, loucas de dor, / Já marchavam as
legiões dos condenados, / E os silvos do trem cantavam / Um breve canto de
adeus. / As estrelas da morte sobrestavam / À Rússia inocente, se crespando / Sob
as botas de sangue / E a sola dos negros camburões”, lê-se na introdução do
texto. Seus únicos anos felizes, de vida social e êxito poético, são os do início
do século em companhia de seu primeiro companheiro, o também poeta Nikolái
Gumilióv, fuzilado em 1921.
A condenação
de Anna foi outra: o ostracismo por fazer uma poesia que confrontava o realismo
socialista. Depois da prisão do filho, Liev Gumilióv, ela queimou extensa parte
de seus manuscritos e preservou de memória alguns dos poemas que só muito
depois pôde voltar à forma escrita. O medo do horror levou a escrever para
Stálin em 21 de dezembro de 1949: “Que o mundo recorde este dia para sempre,
que esta hora seja legado para a eternidade. A lenda fala de um homem sábio que
salvou cada um de nós de uma morte fatal”. O mesmo impulso levou-a a escrever
para a revista Ogoniok; por todas as vias
queria conseguir intercessão do ditador por seu filho, e este chegou enviar carta
de súplica – Stálin nunca a respondeu. O filho de Ana sobreviveu ao horror e se
tornou um importante historiador.
Outra
quantidade diversa de escritores foi expulsa do país, forçada à emigração,
fosse pela oposição ao regime ou por não se posicionar a favor dele. Arrastou-se
um golpe atrás do outro para todas as formas de expressão intelectual até chegar
ao seu ponto alto, o ano de 1937, quando uma plêiade de escritores – Serguei
Efron, Leonid Kanneguiser, Serguei Iessenin, Mikhail Kuzmin – padeceu ou havia
perecido à voracidade stalinista. No lado oposto, neste ano o governo celebrou
o centenário de Púchkin com uma salva de tiros.
A obra de
Shentalinski espraia-se por três tomos: Escravos
da liberdade, Denúncia contra Sócrates
e Crime sem castigo (traduções livres);
dedicam-se a elucidar a repressão da ditadura comunista contra os mais
importantes nomes de seu país. Além de nomes citados aqui, aparecem nesse
itinerário figuras como Aleksandr Solzjenítsin, Boris Pilniak, Mikhail Koltsov
e outros menos conhecidos como Demídov, Klicíjev, Platónov, Punich, Pavel Florenski.
Documentos que atestam que nunca estamos a salvo.
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