Entre facas, algodão, de João Almino
Por Pedro Fernandes
O passado é
uma ilusão que não volta mais. Tivéssemos esta certeza e não persistiríamos em
remoê-lo com a melhor das intenções – a de encontrarmo-nos outra vez ante
alguma felicidade que no presente não possuímos e por isso a imaginação e a
memória, suspeitamente, fabulam o vivido com a mais envolvente das atmosferas. Tivesse
esta certeza e o narrador das histórias de Entre facas, algodão não empreenderia o projeto de sua obsessão: deixar Taguatinga, onde já criou raízes e voltar para a fazenda onde viveu sua infância.
Ainda assim
não podemos condená-lo por uma ideia gorada desde sua concepção. Não fosse a
atitude cética do narrador e uma certeza de que a decisão projetada realmente
possa significar outra possibilidade para sua vida este romance não existiria. A
dúvida e a ação são não apenas condutores dessa narrativa, são pedras de sua
fundação. E, claro, não podemos acusar este narrador de apenas se deixar conduzir
pelo falso sentimento que a dúvida sem a atitude da experimentação é capaz de tornar
o mais forte dos sujeitos em criatura qualquer, entregue à sorte da inquisição contra
sua própria condição de existir.
Impulsivo, o
narrador de Entre facas, algodão está
no auge da maturidade, o tempo que já o permite ousar sem o medo de que a
perda signifique obrigatoriamente entrar numa encruzilhada sem saídas para o
futuro. Magoado pelo excesso de ciúmes que sua mulher tem depois de descobrir o
contato entre ele e um amor de infância e ciente da grande oportunidade aberta
pelo fim do casamento, este senhor de setenta anos investe todas as energias em
busca do seu passado: compra as terras que pertenceu aos seus pais
no interior do Ceará e vai viver aí alimentado por dois motivos, o reencontro com
Clarice, o amor de criança, e com o assassino do pai a fim de vingar sua morte.
Suas sete décadas
serão retomadas entre o intervalo da noite de separação do casal e retorno do
narrador a Brasília. Pouco mais de um ano. Três sentimentos são cardeais na
organização dos seus interesses: a obsessão com a infância, a insatisfação com
o presente e o anseio de nova possibilidade de vida na terra onde se criou. E
os novos interesses se guiam por uma necessidade de esclarecimento acerca dos
dois episódios do passado acima apontados, reafirmando dois dos combustíveis
inerentes ao curso da vida: o amor e a morte.
Estes combustíveis,
aliás, aparecem, em parte, justificados na epígrafe de Marcel Proust: “Pois aos
distúrbios da memória estão ligadas as intermitências do coração”. É necessário
ampliar a passagem da qual João Almino recorta este texto. “É sem dúvida a
existência de nosso corpo, para nós semelhante a um vaso em que nossa
espiritualidade estaria encerrada, que nos induz a supor que todos nossos bens
interiores, nossas alegrias passadas, todas nossas dores estão perpetuamente em
nossa posse. Talvez também seja inexato acreditar que elas se evadem ou retornam.
De qualquer modo, se elas permanecem em nós, estão, na maioria do tempo, em um
domínio desconhecido onde não têm serventia alguma e onde mesmo as mais usuais
estão recalcadas por lembranças de ordem diferente e que excluem toda
simultaneidade com elas na consciência”, continua o escritor francês. O núcleo
existencial do narrador de Entre facas, algodão se constitui na recriação do pensamento de Em busca do tempo perdido; seu exercício, aliás, é uma busca do
tempo perdido.
Este romance
de João Almino, portanto, é uma história de amor; no melhor sentido do termo,
porque de um amor mal resolvido. É isto que afirma e impulsiona o narrador, uma
vez que, como Proust, é a intermitência do sentimento que lhe favorece o
reaparecimento de uma condição há muito desaparecida e que sempre lhe retorna como
se esta fosse muito próxima de si. É tão levado pela ilusão do passado, que
este se apresenta ora muito real, capaz de levá-lo a se confundir com sua
realidade imediata, como quando vê na passageira que o acompanha na viagem de
ida para Fortaleza, certa Luzia, por quem guarda um desejo também não resolvido
da juventude. Ou ainda consegue acreditar na possibilidade de encontrar em vida
o assassino do pai sem considerar uma incongruência temporal capaz de fazer
impossível tão encontro.
O narrador de
Entre facas, algodão vive como num
sonho; é um homem mal acordado que acredita perceber bem próximo de si as
situações que do sono lhe escapa. Esquece-se que a mesma maturidade capaz de
lhe permitir trilhar o caminho que quiser já não o permite passar a limpo o que
ficou por passar a limpo e se se consegue não tem mais nenhum significado capaz
de ressignificar sua existência. Do contrário, remexer no passado só poderá
fazer tornar à superfície outras interrogações para as quais não sobrará
tempo para respondê-las. Há impasses que somente ao tempo é dado a tarefa de superá-los.
O que as
memórias desse narrador revelam ainda, para além da dinâmica da sua vida são os
impasses de classe, de raça, econômicos, sociais e políticos de um país cujas
tectônicas que o formam são mais complexas do que supõe as análises mais ralas
expostas pelos operadores das verdades manipuladas na mídia, tradicional ou de
resistência, e nas redes sociais. Embora não queira assumir um discurso sobre
que país agora temos em relação a um passado ainda mais duro e cruel, é visível
que, a saída apresentada por este olhar cético de um narrador incapaz de se
espantar com o inexplicável e que se demonstra sempre aberto às variações dos
modos de ser e estar no mundo (um usuário de Facebook, WhatsApp, que não guarda
nenhuma reserva com as relações de um filho gay, o que parece muito anormal
numa figura setentenária), é de sua opinião que voltamos a um lugar inóspito da nossa
história, tal como ele próprio retorna ao breu de sua história particular.
Desacreditada sua compreensão para o mal coletivo sobra-lhe a observância sobre a impossibilidade
de qualquer alternativa ao Brasil enquanto não se passar este país a limpo e
for possível reaprender sua condição de nação. Por exemplo, ele observa que
Várzea Pacífica, a pequena cidade onde se localiza a fazenda Riacho Negro não padece mais do isolamento a que as cidades mais remotas do interior do Nordeste
brasileiro estavam no passado condenadas, entretanto, a consciência política de
seus cidadãos ainda funciona nas mesmas bases coronelistas de outros tempos: os
que sobem ao poder estão interessados no bem próprio e do partido e os que o
elevam nas suas necessidades mais imediatas. Isto é, perpetua-se o mesmo ciclo
vicioso da miséria embora os grupos sejam outros. Essa visão obriga-nos sair de uma zona de conforto para a
qual fomos carregados e da qual não encontramos a saída melhor para nós. E será
que disso o tempo se encarrega? Não há respostas.
O que
sobrará de um retorno assim sem alcançar as ambições sonhadas? O leitor deve se
perguntar ao fim do itinerário desse narrador. E a resposta é oferecida por ele
próprio. Não é apenas a aprendizagem de que há determinadas situações que
pertencem e só às dimensões do tempo; é a necessidade de reaprender a valorização daquilo
que o tempo se impôs na sua vida. Uns chamarão de resignação. Outros, e estes
parecem ter melhor razão, dirão que é um exercício natural inerente a qualquer
existência. Afinal, não há quem nos entregue todas as respostas às perguntas
que nos inquietam, somos nós quem as elaboramos. O que a vida quer de nós é
ação, só por ela podemos passar do contínuo estágio de semiacordados ao que
parece estamos condenados ao da experimentação real da existência em toda sua
pulsão. Frustremo-nos ou não.
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