Corpo elétrico, de Marcelo Caetano
Por Pedro Fernandes
Uma
narrativa que a um só tempo trate do Brasil e seja universal. A lista de obras cinematográficas
que conseguem esta façanha é um bocado extensa, embora possamos perceber pelos
filmes capazes de chegar aos circuitos maiores que essa possibilidade se
apresente toldada por uma influência castradora e problemática para a criação
brasileira, a importação dos modelos vazios e bestiais do cinema folhetim
estadunidense.
Pelos
elementos recorrentes na cena, Corpo
elétrico assume ainda outra frente nas produções brasileiras, a dos filmes
que abordam o universo operário, vertente marcada por títulos como Os libertários, documentário de Lauro Escorel ou Chapeleiros, de Adrian Cooper. Esses
dois filmes, importantes para o contexto de sua produção e agora para a história
do cinema no país, adquirem dois papéis fundamentais na filmografia sobre o trabalhador
e o trabalho: aquele constrói um
retrato acerca dos movimentos de defesa dos direitos trabalhistas e este pela
observação sobre o ato de trabalhar.
Se as
relações de trabalho se tornaram mais flexíveis entre os primeiros títulos
dessa linha temática e o filme de Marcelo Caetano, Corpo elétrico vem reafirmar que no modus vivendi de agora pouco ou nada difere das vidas do
passado. As rotinas são ainda puxadas e repetitivas e servem a apenas um propósito:
o do lucro de uns pelo esforço pouco recompensado de outros. O filme une o exercício da observação
sobre o ato de trabalhar ao ato político de expor uma necessidade nas revisões
sobre as relações e os modos de produção na atual sociedade.
Para
sublinhar essas duas determinantes é significativo o disparate entre patrão e
empregado: enquanto um tem a chance de viajar para Londres para o ano novo, o
outro é obrigado a cumprir sua ausência na fábrica. No que se refere à
observação, o lento exercício do olhar da câmera sobre a adaptação de um novo
empregado ou ainda sobre as várias frentes de produção em série marcadas ao
longo do filme, com destaque, nesse ínterim, para os dramas das atividades
repetitivas e para as ofuscadas relações humanas no ambiente de trabalho. Isto
é, a lida do operário, a máquina enquanto extensão do corpo, os algozes, são
dimensões que dão forma à narrativa fílmica.
O ponto de
vista encontrado pelo cineasta é o da personagem Elias, gerente de frente numa
confecção. A tentativa do funcionário num negócio que é regido pelo olhar
atento capaz de obrigar os trabalhadores a saírem da fábrica tendo que apresentar
suas bolsas e mochilas à vigilância que investiga se não estão levando para casa
restos de tecido é de, pelos pequenos gestos, subverter a maneira com as
relações de trabalho se fabricam dentro e fora desse ambiente. No primeiro
diálogo mais significativo que desenvolve com o novo funcionário, Elias quer
saber como este tem se relacionado com as máquinas e diz preferir as relações
humanas.
Os ecos
dessa frase parecem se manifestar na atenção que dedica para com os colegas;
atitudes simples, como a de observar sobre a condição de mal-estar de uma
trabalhadora, a reivindicação de outra, parece ser o suficiente para despertar
o sinal de alarma entre os superiores ao ponto de ser chamado atenção com um
diálogo enviesado sobre relações de trabalho e ética – aquelas, claro está,
devem ser despidas do traço humano e esta é apenas um subterfúgio encontrado
pelo poder a fim de manter a mesma ordem de controle pautada na submissão dos
trabalhadores aos patrões.
Outro
elemento encontrado pelo cineasta na vivência livre e despojada de Elias com
seus amores diversos e depois com o encontro descompromissado dos trabalhadores
em ocasiões de fim de semana e de festividades é de modificar o interesse exacerbado
pelo trabalho, dominante na vida das pessoas pelo divertimento e o ócio. Outra
vez é preciso citar um diálogo entre a personagem principal de Corpo elétrico e o guineense, o novo funcionário
da fábrica, quando são confrontados com a rotina castradora deste: a vida não é
feita apenas de trabalho, é preciso se divertir um pouco.
A tensão
entre o trabalho, o divertimento e o ócio encontra no corpo sua condição-síntese.
Sua presença está em toda parte da narrativa, sempre assinalando ruptura com os
modelos comuns, e assumindo contínuo contraponto entre o ambiente da fábrica e
da vida fora dela. Nesse ínterim, Marcelo Caetano toca ainda noutro tema
fundamental numa ocasião quando os ânimos parecem aflorar pela condição da
repressão das liberdades individuais: a própria existência já não permite um
retorno quando a diversidade das relações se encontra, ainda que em grupos específicos,
determinadas. Novamente, parece vir das camadas mais populações a lição que
falta aos do poder: viver exime-se de quaisquer exercícios de castração das liberdades
humanas.
As imagens
que compõem a abertura e o fechamento da trama apontam para dois limites em
distanciamento no âmbito das relações repetitivas do trabalho e o necessário
direito ao ócio. Na cama por onde passam muitas das aventuras sexuais de Elias,
a personagem reconta o sonho que teve com o mar que logo o reconduz ao período
de sua vida quando tinha a liberdade de tê-lo com frequência ao seu alcance –
esta é a cena de abertura de Corpo
elétrico. No fim, Elias, depois de decidir faltar ao trabalho no dia
seguinte, aparece integralmente cercado pelas ondas do mar. Entre uma cena e
outra, assiste-se uma revisão de atitude da personagem e sua tentativa mais
radical de subverter a ordem-máquina da existência. Que afinal, esta parece ser
a mensagem principal de Corpo elétrico:
é preciso deixar de se guiar pelo status
do consumo desenfreado e da produção desnecessária para uma possível
desautomatização dos gestos e dos corpos e um favorecimento ao humano que ainda
nos resta e que este modelo vigente insiste em nos castrar.
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