Anotações sobre O velho e o mar, de Ernest Hemingway
Por Albert Lladó
“O velho
pensava sempre no mar como sendo la mar,
que é como lhe chamam em espanhol quando verdadeiramente o querem bem ... o velho
pescador pensava sempre no mar no feminino e como se fosse uma coisa que concedesse
ou negasse grandes favores; mas se o mar praticasse selvagerias ou crueldades
era só porque não podia evitá-lo”.
Quem fala é o narrador de O velho e o mar, a fábula de Ernest
Hemingway em que os conceitos como sucesso e fracasso terão que se refazer ante
a luta e a dignidade de seu protagonista, o pescador Santiago. Aparecido na
revista Life, em 1953, este conto foi
a última grande obra de ficção do escritor de Illions que nesse mesmo ano recebeu
o Prêmio Pulitzer e um ano depois, o Prêmio Nobel de Literatura.
A vida de
Hemingway foi uma aventura constante e não é estranho que isso se reflita em sua
obra. Com apenas dezenove anos participou, como membro da Cruz Vermelha, da
Primeira Guerra Mundial. Mais tarde, como correspondente, foi testemunha direta
de outros conflitos bélicos, entre eles a Guerra Civil na Espanha – a partir da
qual saíram obras como Por quem os sinos
dobram – e a Segunda Guerra Mundial. Suas viagens à África e sua relação
intensa com Cuba também ficaram registradas em sua prosa. Cada anedota,
por mais sensível que pareça no princípio, se converte numa ação que pode ser
interpretada como símbolo e arquétipo.
Será em Paris,
nos anos vinte, onde conhece, de imediato, os ambientas da vanguarda e se relaciona
com escritores como Gertrude Stein, Ezra Pound ou F. S. Scott Fitzgerald,
autores da chamada Geração Perdida – termo cunhado pela autora de A biografia de Alice B. Toklas. Também é
dessa época seu contato direto com o boxe já que, para ganhar a vida, precisou
fazer-se de sparring em diversas ocasiões.
Mas, sua relação com o esporte e a pesca, chaves para sua obra, veio desde a
infância em Oak Park.
Hemingway recusa,
desde cedo, uma linguagem muito intelectualizada. E, neste sentido, O velho e o mar é um exemplo de como, através
da ação de sua personagem principal, se pode alcançar diversos sentidos. Segundo
a própria teoria do iceberg desenvolvida pelo escritor estadunidense, um conto
só mostra uma mínima parte de sua história. O resto, permanece oculto. Essa obra,
especificamente, constrói uma épica que rompe com os artifícios e os barroquismos.
O símbolo, a parábola, não necessita de referentes que o leitor médio não
entenda. Por isso, com este conto, Hemingway conseguiu seu propósito. Quando apareceu
em forma de livro, meses depois da publicação na revista, esteve vinte e seis
semanas na lista de obras mais vendidas. Trata-se de um duplo código, atraindo
um leitor que fica à superfície e outro que busca algo a mais em seu sentido escondido.
Mas, qual pode ser essa mensagem que não encontramos à primeira vista?
Situada nas
baías de Cuba que o escritor tão bem conhecia, a obra relata as peripécias de
Santiago, um velho pescador que depois de oitenta e quatro dias sem pescar
nada, decide adentrar ao mar para tentar a sorte. Antes desta decisão, todos os
dias era acompanhado por Manolin, um rapazito que seus pais o proíbem de partir
com o velho. Apesar disso, a relação de cumplicidade irá se reforçando ao longo
da narrativa, e, no fim, este o espera para lhe prometer que continuará com a
ideia de pescar apesar da decisão do pai.
Santiago luta
contra o destino. Sozinho e com recursos meramente artesanais, se dirige a um
lugar remoto que nunca havia ido. Pesca um grande peixe, seguramente o maior, que
nunca viu. Mas este não deixará se pegar tão facilmente. Começa uma longa
luta em que o pescador passará por extensos momentos de sofrimento, esperança,
desespero e de contato direto com a força da natureza. Trata
de pelejar até à morte. A dignidade não está na vitória, mas na resistência, em
dar tudo, em explorar todos os limites humanos. Quando vence e se dirige com o
peixe até à beira-mar, os tubarões seguem o rastro de sangue deixado pelas
feridas do animal e, pouco a pouco, a caça servirá de alimento aos bichos. Ao chegar
no destino, apesar de todos os esforços para defender sua presa, vê que
traz consigo apenas a carcaça do animal.
O diálogo é
a forma de marcar o ritmo da narrativa. Primeiro, entre Santiago e Manolin.
Mais tarde, o pescador fala consigo. Fala às suas mãos, aos seus pés e com o
peixe, que lhe respeita pela força como resiste ao seu destino. É seu “irmão”.
Hemingway
utiliza o itálico para sublinhar as palavras do idioma cubano, como galano, bodega, a expressão que vá,
salao ou dentuso, entre outras. Uma linguagem simples, mas especializada,
que recorda em algumas ocasiões a crônica esportiva. Arpões, cordas, anzóis e
algum machado são os únicos instrumentos, quase arcaicos, que Santiago tem para
enfrentar a aventura. Uma aventura frenética, às vezes vibrante, que pode
lembrar ao leitor uma narrativa de aventuras.
É certo que podemos
compreender o tema como uma simples história de um pescador que luta contra a
força da natureza. Mas também estamos ante a história de amor entre o mestre ancião
e seu pupilo, que o respeita mesmo que às vezes invente algumas coisas. Não são
poucos os leitores que buscaram ver nesta obra uma leitura religiosa, espiritual
e que se utilizem de referentes hagiográficos para reforçar suas teses. Também não
são poucos os que leem como uma alusão à fé, ao pecado e à esperança. Por outro
lado, a relação constante com o beisebol não pode ser mera casualidade (“Tenha confiança
nos Yankees, meu filho. Pense no grande DiMaggio”). E a relação com a natureza,
que às vezes é cruel mas sempre é bela e todas as referências ao sacrifício, à
solidão, à luta, à dignidade, à resistência...
Mas, e estas leituras
excluem outras, são complementares, podem cair na malha da super-interpretação? A frase que
resume melhor o livro e que se tornou também a mais famosa é aquela que o pescador
diz a si mesmo “o homem não foi feito para a derrota... Um homem pode ser destruído,
mas não derrotado”. Hemingway
nos fala entre linhas que o evidente é pobre e não pode projetar multiplicidade
de significados. O alegórico, por sua vez, nunca será explicado pelo autor e
sempre recusará uma única interpretação.
Alguns acreditam
que poderíamos estar ante uma contraversão de Moby Dick, de Herman Melville. Esta mais metafísica e filosófica. O
texto de Hemingway é muito mais direto e próximo do leitor. Mas não podemos recusar
o elemento espiritual que encontramos em O
velho e o mar. Santiago, ao matar o peixe, entra em constantes contradições: “Mas então
tudo é pecado. Não pense no pecado, meu velho. É demasiado tarde para isso e há
pessoas cujo ofício é esse. Deixe que sejam eles a pensar em pecados. Você nasceu
para ser um pescador, tal como o peixe para se peixe. S. Pedro era pescador,
assim como o era o pai do grande DiMaggio.”
Sua adoração
pela natureza é tal que uma mesma afirmativa não se mantém clara a todo tempo. Ao
referir-se a outras criaturas marinhas as tem como “boa gente”, “nossos irmãos”:
“ouvia os peixes-voadores que saltavam da água e o zumbido que as suas asas
duras faziam, batendo repetidamente na escuridão. Gostava muito dos peixes-voadores,
pois eram os seus melhores amigos no oceano”; “Durante a noite dois porcos-marinhos
aproximaram-se do barco e o velho ouviu-os a rolar na água e a soprar com força.
Notou a diferença entre o soprar do macho e o da fêmea. – São bons – murmurou o
velho. – Brincam, implicam um com o outro e amam-se. São nossos irmãos, tal como
os peixes voadores.”
Não estamos
ante certo respeito pelos animais, embora o pescador possa ter por eles uma simpatia. É um sentimento muito mais profundo. Como o apreço que nutre pela valentia
e a coragem do peixe. Ele próprio se vê entre essas características que colocam
parte da natureza. Seu amor pelo mar ganha maior sentido quando lembrarmos
do porquê se dirige a ele no feminino. É que, de alguma maneira, este se converte
em sua amada. Está só com ela esperando matar o peixe e depois defender-se dos
tubarões.
Mas, se há
um tema central na obra, este é da solidão ante a luta. Não estamos sós ante a
morte? Não há que superar as barreiras do medo sem que ninguém possa se colocar
em nossa pele? Não somos nós, e ninguém mais, que precisamos tomar as rédeas de
nosso próprio destino? Santiago diz
a si mesmo que “ninguém deveria estar só na velhice... mas é inevitável”. É inevitável
estar só e por isso fala consigo para, desta forma artificial, fazer-se companhia.
Por este
motivo, sentirá a ausência de Manolin durante todo seu trajeto. Às vezes, pensando
que o ajudasse com a difícil tarefa de matar o peixe: “Se o garoto estivesse
aqui, podia friccionar-me a mão e aliviar-me o antebraço”; “Se o garoto
estivesse aqui, podia molhar os rolos de linha”. Noutras, para ter alguém com quem
compartilhar seu desespero: “Gostaria tanto que o garoto estivesse aqui e também
de ter um pouco de sal...” E outras vezes para constatar sua conquista: “– Gostaria
de ter o garoto aqui comigo ... Estou sendo rebocado por um peixe e sou eu o
poste ao qual está preso o reboque”; “– Gostaria tanto de ter aqui o garoto!
Para me ajudar e para ver isto.”
Mas o garoto
não está. E sua decisão é firme: lutar até à morte. Neste sentido, as constantes
analogias ao beisebol, e ao jogador DiMaggio, lhe servem de meta, um modelo a
seguir: “Será que o grande DiMaggio poderia aguentar um peixe durante tanto
tempo quanto o que eu vou levar para aguentar este? Tenho certeza de que poderia,
e até talvez melhor, pois é jovem e vigoroso. E também porque o pai dele era um
pescador.”
É que a
dignidade da luta não está na vitória, mas na esperança de mudar o destino, a
má sorte, através da perseverança. Ganhar é a ação própria que o levou ao alto mar,
a buscar soluções à sua condição ante o desafio e a não se deixar vencer por um
peixe que, de alguma maneira, é seu próprio reflexo.
Essa é sua
religião. Promete “ir em peregrinação à Virgem de Cobre” e rezar dez Pai-nosso.
Mas a verdadeira espiritualidade está na capacidade de sacrifício. E é ele
próprio que lhe oferece ânimo para não perecer: “como o atum agora para dar
mais força às mãos”; “– E agora, mão,
está melhor? Ou ainda é muito cedo para isso?”; “Tenha paciência, mão”.
Não há
derrota se há esperança. Há esperança se há força. Há força se houver
determinação de resistir até o fim. Parece, ao invés da pesca, estamos ante o compromisso
político que Hemingway demonstrou durante toda sua vida e que materializou tanto no
soldado – que foi ferido gravemente como Santiago – como no de jornalista.
O autor poderia
ter concluído o conto com um final maniqueísta, onde a épica fosse clássica e a
moral exemplar. Mas não é assim. Há uma imensa dignidade do que lutou até o fim,
até às últimas consequências. A moral extraímos nós. Por isso não quer dizer
que o resultado seja perfeito. Não poderá vender seu pescado porque não fica
praticamente nada dele. Não há troféu, embora exista vitória. Parece profetizar
o fim do próprio Hemingway, que poucos anos mais tarde, em 1961, findaria sua
vida com um tiro, acabando com o que ninguém se não ele próprio pode derrotar.
Ligações a esta post:
* Este texto é uma tradução de "El viejo y el mar", publicado na Revista de Letras.
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