A família Manzoni, de Natalia Ginzburg
Por Pedro Fernandes
A família Manzoni, de Natalia Ginzburg é
um romance desconcertante. A definição é dada unicamente pela compreensão de
que a escritora italiana amplia todas as fronteiras dessa forma narrativa. Só
para se ter uma ideia, este é e não é um romance histórico; é e não é um romance
biográfico; é e não é uma saga familiar; é e não é um romance de costumes; é e
não é um romance documental; é e não é um romance epistolar; é e não é um
ensaio. Não é que a romancista tenha preferido um não-lugar ou um entre-lugar
para o seu texto; sua tentativa é a de, ao se beneficiar das características
que respondem pelas maneiras usuais como o romance clássico se assume, inovar através
da indeterminação das fronteiras entre as diversas formas de narrar. O mesmo
também se percebe pela escolha do alisamento entre as fronteiras do texto ficcional
e as textualidades documentais, como o caso do ensaio, do documentário ou da
historiografia.
Se quanto à forma,
A família Manzoni é um romance
inovador, não é possível esquecer que a construção do ponto de vista do relato
e a estruturação da narrativa obedece igualmente às mesmas rédeas. Natalia
Ginzburg elege as personagens que estão localizadas no interior dos acontecimentos,
mas que em circunstâncias como estas – a de contar uma saga familiar ou mesmo
do lugar discursivo recorrente na história, sempre um sítio masculino e racional
–, foram sempre vistas como figuras marginais. É notório que sua atenção deixa
de se voltar às figuras masculinas do clã Manzoni, a começar pelo elemento principal
e impulsionador do relato, Alessandro Manzoni, para se centrar nas mulheres; há
apenas duas figuras masculinas que nomeiam dois dos oito capítulos do romance: nenhuma
delas é o autor de Os noivos e sequer
algum dos membros principais da sua família.
A escolha de
um ponto de vista fora do usual e a construção de um romance capaz de alargar
suas fronteiras não é gratuita. Natalia Ginzburg finda por repetir o mesmo
gesto de Alessandro Manzoni com a obra de sua vida; também ele foi autor de um
romance situado num não-lugar da literatura. Embora, o escritor não inove o
ponto de vista, Os noivos, sempre
apresentado como um romance histórico, é colocado por ele próprio numa direção contrária,
isto é, contra esse modelo de romance ao ponto de escrever, anos depois, um
folheto que responderia na prática pelo que ele compreenderia pela chamada ficção
histórica.
Na mesma
direção de A família Manzoni, Os noivos traz e não traz os traços do
biográfico, da saga familiar, do romance de costumes, da epistolografia, do documental,
do ensaio. Daí ser impossível negar que a figura do escritor seja mais que uma
motivadora da obra de Natalia Ginzburg; não apenas Manzoni – ele e sua obra.
Esta é um elemento irradiador como é toda literatura que forma parte numa
tradição literária a qual todo escritor se filia. A escritora, ao reconstruir a
história do clã Manzoni, busca mais que compreender o lugar principal de
Alessandro, busca responder como a obra dele se integra entre as criações
literárias tantos séculos depois, constituindo-se enquanto elemento vivo no
imaginário cultural do seu país.
A própria
romancista, depois de concluído o romance, admite haver mais de Alessandro
Manzoni do que o pensado, o que, de certa maneira justifica a escolha pelo
ponto de vista lateral. Conceber a história dessa família a partir do lugar
dominante seria cair na via comum do enaltecimento do monumento e, logo, contribuir
para o total apagamento da sua, por assim dizer, força motriz. Natalia Ginzburg
tem razão ao dizer que na história familiar não existem protagonistas.
Além disso, eleger
um ponto de vista diferente do que o oficial reconhece como principal, é uma
alternativa de compreender que nenhuma história é constituída de uma verdade
principal e absoluta; e, em nome do trabalho de um, há um esforço coletivo de
muitos, feito de dedicação e abnegação. É ainda uma estratégia de conseguir
alguma cor para uma existência pálida porque movida pelas mesmas preocupações –
Alessandro Manzoni figura já entre os narradores tomados pela crise da experiência
no sentido proposto por Walter Benjamin. Sua atividade intelectual é produto da
imaginação criativa, da observação descritiva e da aprendizagem pelos livros (Os noivos é um livro sobre livros com um
imbróglio amoroso pelo meio) e não de uma experiência construída pela viagem e
pelo lugar de porta-voz de uma comunidade.
De quase
dois séculos de história, Natalia Ginzburg prefere não um e sim vários pontos
de vista, o que novamente reforça a desconstrução da ideia de verdade enquanto
unilateralidade. Assim, na primeira parte, que agrupa os acontecimentos
referentes ao primeiro casamento de Alessandro Manzoni, destacam-se: Giulia Beccaria,
mãe do escritor e matrona da casa até a chegada da segunda nora; Enrichetta
Blondel; e a primeira filha do casal, batizada com o nome da avó paterna, Giulietta.
De depois da morte de Enrichetta e do novo casamento de Alessandro, o romance
privilegia os pontos de vista de: Teresa Borri, a segunda esposa, Vittoria e
Matilde, as duas últimas filhas do escritor. Constituem contrapontos ao ponto
de vista feminino o amigo da família, Fauriel e o enteado de Alessandro,
Stefano, apresentados respectivamente em cada uma das partes do romance.
A partir do
olhar das margens, a romancista procura descobrir o inusual ou os acontecimentos
que destoam de tudo já escanhoado pela história oficial – isso justifica em
parte porque este não é, portanto, um romance histórico, não no sentido
atribuído corriqueiramente, uma vez que o olhar buscado pela escritora é o oficioso,
o capaz de revelar o silenciado pelo oficial. E esta é uma justificativa apenas
em parte porque o material a partir do qual o conteúdo do romance se constitui
em nada difere do material do historiador; apenas a romancista busca catar o
refugado pela história oficial, esta que também é seletiva porque produto de um
ponto vista. A família Manzoni
questiona, assim, as determinações que separam a ficção da história e vice-versa.
O grande
trabalho de Natalia Ginzburg é de constituir um tecido com as vozes dessas mulheres;
urdidura que não é simples dada a extensa troca de cartas entre amigos – estes,
apesar de não muitos, estavam sempre distante do núcleo familiar dos Manzoni –,
entre as demais famílias quando os filhos se casam e passam a viver fora do
reduto paterno ou quando são mandados para estudar em internatos. Em linhas
gerais, as epístolas não revelam nenhum segredo capaz de se atribuir uma nova
imagem do clã, entretanto o coloca no mesmo universo dos dramas comuns a todos
e em qualquer parte naquele contexto: as viagens, o árduo trabalho do escritor,
o sucesso de Alessandro Manzoni, as ambições individuais, os sonhos, as decepções,
as dificuldades financeiras, os conchavos amorosos, a convivência e os achaque
das relações pessoais por motivos que vão das escolhas religiosas às divisões
de posses, as preocupações com a educação dos filhos etc.
O comezinho
feminino ainda revela – quando não denuncia – as condições das mulheres no curso
dos séculos XVI a XVIII. As cartas captam os discursos dessas mulheres, e
revelam-nas nas relações de amizade, nas intrigas domésticas, nos suplícios do corpo
e do espírito, as relações de submissão, de infelicidade com os homens e os
desmesurados zelos destas para com a educação dos filhos e a manutenção do
bem-estar dos lares; essas vozes compõem o retrato de dum tempo de total
obediência das mulheres aos maridos e entregues ao fator biológico da
maternidade.
É
indispensável citar, por exemplo, a troca de missivas entre Enrichetta e o cônego
Luigi Tosi, tão logo da conversão do casal Manzoni ao catolicismo. Ao comentar
a vida da mulher, o romance assim se pronuncia: “A existência de Enrichetta
transcorreu entre quatro pontos cardeais: casamento, maternidade, doença, fé.
Nunca teve grandes distrações ou amizades”. Resumo que corresponde, ao que parece,
à vida de todas as mulheres daquela classe social, porque é claramente produto
de um lugar então definido pela Igreja: “1. Deus será seu primeiro pensamento
ao acordar... 2. Tão logo estiver vestida, prostre-se aos pés de Jesus Cristo...
3. Após um minuto de silêncio, que será uma confissão de sua nulidade, um
lamento profundo sobre suas misérias, um abandono filial à divina misericórdia,
rezará as Orações matutinas... 4. À
reza deverá se seguir a leitura do Santo Evangelho... 5. Durante o dia, não
esquecerá de oferecer a Deus toda a sua ação individual, trabalho, alimento,
repouso... 6. A senhora se ocupará com seus afazeres domésticos. Esse também é
um dever que a Providência lhe impõe... 7. O trabalho deve ser considerado
parte da penitência geral que Deus impôs aos filhos de Adão. A essa consideração
acrescente os deveres de sua condição; a previdência que exige uma economia
sábia e regulada; os perigos que um único minuto de preguiça representa; a
obrigação de dar o bom exemplo de uma vida útil... Se, depois de cumpridas as
obrigações da casa, ainda lhe sobrar tempo, trabalhará para os pobres... 8. Mas
o trabalho que preferivelmente recomento em relação a eles é a instrução
religiosa, moral e cívica das crianças do campo. Bem conduzida, a educação delas
edificará a Igreja, regenerará o costume, formará boas famílias... 9. Durante o
trabalho, manual ou educativo, procure, elevando o coração a Deus, reanimar o
pensamento coma presença divina. Poderá se servir da ajuda de algumas leituras
piedosas... 10. Guardará um breve quarto de hora antes da refeição: para um
instante de recolhimento, para fazer um leve exame de consciência... para fazer
algumas leituras dos Salmos na
interpretação do sr. De Sacy ou de outros autores pios e consistentes... 11.
Depois da refeição não retome imediatamente o trabalho. Tire proveito da conversação
quando puder, porém de modo que esta lhe seja sempre de alguma utilidade... 12.
Ao entardecer descanse um pouco, para poder retomar com mais facilidade as ocupações
do serão. Por volta das dez, dedique um pouco de tempo ao recolhimento e à
leitura antes da refeição. No geral, procure santificar cada refeição com
algumas mortificações. As Orações da
noite e o exame de consciência por volta das onze. Escolha depois alguns
pensamentos devotos para preencher com eles o coração antes de dormir, e nos
intervalos da noite quando acordar. Seu repouso poderá durar desde essa hora
até as cinco ou seis da manhã... 13. No domingo e nos dias de festa, seguirá os
ofícios da Igreja. Faça todo mês um dia de retiro para examinar seu comportamento,
agradecer a Deus pelas boas ações que lhe terá permitido fazer, lastimar-se por
seus defeitos e buscar meios eficazes para corrigi-los... 14. Exorto-a a fazer
todo ano uma peregrinação a Port Royal e uma visita ao cemitério de
Saint-Lambert, para agradecer a Deus por todas as dádivas em que a senhora recebeu
as primícias do espírito Dele, e pedir-lhe a graça de perseverar no bem graças
à intercessão dos santos, que naquela solidão, com sua piedade, suas penitências
e obras, exalaram por toda a Igreja o bom olor de Jesus Cristo.” Isto é, uma
vida de contínua obstrução, opressão e subjugada aos mandos do homem. “Os
regulamentos não permitiam respirar”, como acorda o romance.
À tessitura
de diversas vozes reproduzidas a partir do cartapácio se assomam a descrição
dos perfis dessas personagens a partir do registro iconográfico cuidadosamente
selecionado por Natalia Ginzburg e da consulta à extensa fonte bibliográfica
sobre os Manzoni do casamento de Enrichetta à morte de Stefano, o enteado. A família Manzoni constitui-se assim por um conjunto de perfis; estes, por
sua vez, não se apresentam de maneira linear, mas, no seu caos, contribuem à
formação do imenso mosaico que é este romance. Dados biográficos e históricos,
personagens, situações, intrigas que, de tantos, cobram uma atenção mais que redobrada
do leitor, obrigando-o reiterada vezes ao confronto com os registros propiciados
pela obra – seja a iconografia, seja a cuidadosa árvore genealógica por ela construída–
o que compõe uma estreita relação entre o verbal e o visual, porque seu
interesse é o de oferecer um retrato em movimento dessa família.
A pluralidade
de vozes favorece inclusive à irregularidade, o elemento propiciador da movimentação
alcançada por este retrato. Em nada se parecem, por exemplo, a primeira e a
segunda mulher de Alessandro Manzoni: Enrichetta é gregária, silenciosa, devotada
à Igreja e ao lar, tem contínua atenção e zelo para com todos da enorme família,
atenta aos trâmites da casa mas em atitude coparticipativa porque mantém uma
relação filial com a sogra; Teresa é segregária, faladeira, parece ser devota
apenas de Alessandro Manzoni, pelo nome reconhecido do escritor a quem obriga
ao trabalho contínuo de revisão e reedição de Os noivos e a escrita de novas obras, permissiva e sem qualquer controle
sobre o único filho, ocupa o lugar de mandatária da casa o que amplia a
quantidade de desgosto de Giulia e não raras vezes é apresentada nas missivas
dos seus mais próximos como uma figura caricata, pelo menos é assim quando tem
o trabalho de parto – uma gravidez inconcebível àquela altura porque já tinha
45 anos – confundido com as dores de um tumor em erupção, ou quando o próprio
marido a descreve “atormentada por duas unhas encravadas que não querem sarar”.
Não fosse o registro epistolar, acusariam Natalia Ginzburg de privilegiar uma
em relação a outra.
Não há privilegiados
nesse caleidoscópio. Mesmo Alessandro Manzoni quem poderia se mostrar a figura
paterna sábia, capaz de educar toda a família na ordem comum, é descrito como
um aparvalhado, batido pelas dores repentinas de um tempo sombrio, seja pela
quantidade sem fim de doenças, seja pelas transformações políticas por que
passava a Itália de então. O escritor é testemunha de uma lenitiva transição
dos tempos e sobre esta não demonstra qualquer compreensão; é um alheado.
Quando os republicanos batem à sua porta por uma palavra que fosse pela reunificação
da Itália, por exemplo, sai à varanda de casa sem saber ao certo o que dizer, como
se portar; luta pelo silêncio, esconde-se por trás do discurso hipocondríaco de
Teresa para não ser percebido no olho do furacão. Se não fosse a escolha do
ponto de vista diverso para a composição do retrato do escritor – ele, como
todas as personagens desse enredo, aparece e é visto pelas demais, num eterno
jogo de espelhos –, a chamariam de interessada em deturpar a construída imagem
heroica de Alessandro Manzoni.
Por fim, a
escolha das figuras menos vistas pela história oficial, reafirma ainda que não
apenas a biografia do escritor é esvaziada de grandes feitos biográficos; dos
homens da casa, ao que parece, apenas Pietro, o filho mais velho de Manzoni, correspondeu
aos desejos da família, que eram, numa época quando a família é a principal das
instituições sociais, de ordem e perpetuação da ordem. Os outros, e só
existiram mais dois filhos homens, Enrico e Filippo, nenhum contribuiu para a
manutenção desse status quo.
Vagabundos, sonhadores, empreendedores falidos, desrumados, o que quer que
fossem, só serviram para a dilapidação do patrimônio e da história até então
sólida construída por Alessandro. Natalia Ginzburg expõem um pai entre a espada
e caldeirinha: ora incapaz de negar aos pedidos dos filhos para suprir o
extravio de dinheiro porque não gostaria que as coisas ganhassem o tom do
escândalo público ora incapaz de servir de refém à força repentina dos filhos
almeja esquecê-los, deserdá-los. Em algum momento notaremos praticar o esquecimento,
em parte porque o próprio Manzoni já estava coberto pela miséria, mas nunca encontraremos
o homem de pulso firme capaz de dobrar a fome dos filhos pela dilapidação do
patrimônio. Desse modo, é outra imagem, a do homem num cadafalso, a conseguida
por Natalia Ginzburg.
A família Manzoni situa-se, assim, numa
posição sempre respeitada pela literatura: a que reza não existir boa glória capaz
de durar ao tempo. Nesse caso, a culpa não é do tempo. A culpa é do homem que
não é nunca feito à imagem do criador. E as semelhanças entre um e outro em
nada garantem a perpetuação de uma ordem. A base da família de Alessandro é
prova disso. E o trágico fim também.
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