Roda gigante, de Woody Allen
Por Pedro Fernandes
“Ouça-me
bem, amor / Preste atenção, o mundo é um moinho / Vai triturar teus sonhos, tão
mesquinhos / Vai reduzir as ilusões a pó”. Os versos de “O mundo é um moinho”,
de Cartola bem poderiam ser um resumo sobre Roda
gigante, de Woody Allen. O compositor brasileiro bebe na filosofia popular
segundo a qual a vida segue o curso dos astros para um eu-lírico que amargurado
pela perda de um amor sentencia o que o destino não deixará de revelar: tudo
depende das escolhas que fazemos na vida. Curiosamente a sentença também acompanha
o pensamento de Ginny, uma atriz frustrada que ganha a vida como garçonete num
restaurante em Coney Island, praia no Brooklyn, em Nova York.
A roda gigante
/ moinho é o elemento central da trama; envolve como elemento cênico – é a
atração principal do parque de diversões onde trabalha o segundo marido de
Ginny e estrutura dominante na paisagem de onde vivem o casal com o filho Richie
– e como metáfora para a vida. As personagens dramáticas da narrativa fílmica,
entre elas Ginny e a enteada Carolina, o pivô das reviravoltas na trama,
tiveram um passado aparentemente melhor e grandioso do qual não conseguem se
desvencilhar. Sobretudo a atriz-garçonete.
A filosofia popular,
entretanto, está longe de ser um mero amontoado de suposições gratuitas; seus
resquícios aparecem justificados na aprendizagem do mundo e esta, por sua vez,
foi, desde sempre, a matéria sobre a qual as criações artísticas melhor têm encontrado
o substrato para suas revelações e realizações. Isso responde, dentre outras coisas,
porque na literatura clássica facilmente encontramos, por exemplo, este lugar
da vida enquanto circularidade. Centrada no epicentro de uma crise cujas bases
se dão entre o esvanecimento do mito e a aparição da razão, em parte da
tragédia grega, aqueles que se opõem ao destino perfilado pelos deuses estão
suscetíveis à derrota do que projetaram para si, isto é, serem donos de suas
próprias decisões. Daí não entenderem porque, mesmo sabedores que o caminho
poderia ser outro, porque o da queda já lhe é uma velha conhecida, não conseguem
se desvencilhar do itinerário predisposto.
É este
semblante do trágico, o da queda irrevogável do herói e o da errância, o
explorado por Woody Allen em Roda gigante.
O fio principal da trama é conduzido por Mickey, um salva-vidas que é um escritor
de teatro frustrado, mas que, à maneira de Ginny e de Carolina, sonha em
realizar seu grande feito: encontrar uma história ideal, capaz de alçá-lo ao
panteão dos criadores. É somente este interesse o que move a existência do
narrador e por isso o imediato envolvimento com Ginny e Carolina; à primeira
vista o drama delas é matéria mais que suficiente para a história de Mickey –
elas têm algo caro à criação artística, a experiência, só obtida por ele
através do que os outros contam e das leituras que acumula.
As duas
mulheres carregam ainda com seus dramas um potencial que o jovem escritor considera
trágico: uma parecia ter como certa a estabilidade e põe tudo a perder quando,
alimentada pelo sonho de ser atriz, se envolve com alguém ligado ao universo do
teatro; a outra, da mesma maneira, tendo vivido tudo em menos de duas décadas
de vida, como se admira Mickey, põe tudo a perder porque em algum momento se
manteve interessada em revelar todo o passado negro da máfia a qual pertence
seu marido.
Exceto
Humpty que lida com um dos brinquedos do parque – ironicamente ou
propositalmente um carrossel – o restante das personagens principais de Roda gigante desempenha um papel inautêntico
delas; isto é, estão e não estão onde estão, são e não são como se apresentam.
E, por reconhecimento no interior de todos esses dramas, a única personagem que
encarna seu limite-real de tragicidade, mas o que alcança é apenas uma condição
caricata, ou seja, cômica por ser apenas uma possibilidade, está o menino Richie.
Filho de Ginny com o primeiro marido, ele é um Nero em miniatura ao querer pôr
fogo em tudo. As demais representam. Ginny, triplamente, ela própria, a que foi
no passado, porque encontrará em Mickey uma nova rota de fuga para seu sonho, e
uma gleba de interferências na sua personagem pelos papéis que já desempenhou como
atriz.
Não é apenas
o papel que desempenham, marcado que é pelo tom e pelas interpretações. O
próprio cenário onde transcorre a narrativa é teatral, seja pela construção a
um tempo figurativa e mínima dos ambientes, seja pela mobilidade com que as
personagens transitam entre os vários lugares onde decorrem as cenas, seja
ainda pela variação de luz que por vezes chega a ser artificial; nesse sentido,
Woody Allen parece promover um retorno à raiz da forma cinema – a arte da
representação. Se a conformação de tudo funciona como simulação proposital para
esse fim, a suspeita ganha melhores contornos quando encontramos com a
variedade de referências sobre o gênero, do espírito trágico dos gregos que
tudo ilumina a mestres como Shakespeare, Tennessee Williams, Eugene O’Neill ou
Arthur Miller, citados de maneira direta no filme
E, como na
tragédia, em que os impasses se resolvem pela morte ou pela loucura, Roda gigante, privilegia essa dupla força para a solução dos conflitos
que planta; mesmo os amores que poderiam propiciar um típico esperado final
feliz, só aparentam existir porque reduzidos a uma mera jogatina de interesses,
ainda que da parte Mickey nos deixemos seduzir pelo que a própria personagem se
engana, o de apaixonado por Carolina. Assim, todos os sonhos mesquinhos serão,
um a um, triturados; Allen se concentra na volta mais cruel da vida e não é à
toa, portanto, que escolhe o trágico, porque neste se encontra simbolizado a
própria existência. Para quê e para onde corremos se não para o fim? Eis,
então, a base forte do pensamento do cineasta, de que, nesta roda da vida
apenas o sexo e a morte são situações críveis e, portanto, inadiáveis.
Comentários