Quando as manhãs eram flor, de Pedro Belo Clara

Por Pedro Fernandes

Pedro Belo Clara  

 
De tanta morte
gerámos flores,

de tanta vida
bebemos sol.

Pedro Belo Clara é um dos raros jovens de uma geração – e tom desta consideração pode não encontrar eco no contexto português porque é tomada a partir de uma visão brasileira embora pareça que as transformações se deem já de mesma forma em toda parte – é um dos raros jovens de uma geração, dizíamos, em que a escolha da vivência com a palavra constitui uma espécie de obsessão manifestada na contínua demonstração pública de que esta, a palavra, lhe é o domínio da existência.

A geração dos anos 1980 foi concebida no interior de um domínio que se tem revelado cada vez mais cruel e desfavorável ao desenvolvimento dessa vivência, o domínio capital que em tudo que toca torna coisa. Embora, é claro atravessemos uma era da escrita, pressupõe-se que a palavra seja para o que dela se alimenta mais que uso; para este sujeito manipulador da linguagem é necessário a naturalização dos usos estéticos. Isto é, no coração da era técnica, quando a escrita se configura à vista de uns enquanto trabalho técnico, restam poucos os que nela creem enquanto elã constitutivo da vida. De uma maneira tal que a escolha deste poeta português precisa ser celebrada como ponto de inflexão; desde sua gênese é um gesto que anseia por significar além da simples materialização da escrita em livro.

Leitor atento de alguns dos, certamente seus, mestres, como Eugénio de Andrade, Manuel António Pina, José Tolentino de Mendonça, António Osório, entre outros, Pedro Belo Clara pratica uma poesia de reconciliação do homem com sua forma primitiva, denegando a crise da totalidade. Sua percepção, entretanto, não é a de retorno a um ponto de origem, mas de permanência neste ponto como se tivesse ciência de que a fonte inesgotável da poesia, justamente por sua infinitude, não se alterou; os poetas, sim, foram os que tentaram modificar seu curso oferecendo outras possibilidades de saciar a sede indelével pela poesia. E o que toca o leitor nessa persistente atitude do poeta é negação da técnica e da falsificação do espírito poético, o sempre apresentado como morada feita de palavras.

Os nomes citados anteriormente constituem, na literatura de língua portuguesa, uma vertente segundo a qual nela se recupera a força natural do lírico, sem artificialismos retóricos propiciados pela técnica. Por isso, a notória lista de nomes da poesia portuguesa contemporânea é o solo do qual brota a criação poética de Pedro Belo Clara, sobretudo a revelada neste Quando as manhãs eram flor, título que carrega certo eco, por mera justaposição de sons, de Marcel Proust (À sombra das raparigas em flor). Este livro, que é um dos seus melhores trabalhos dos já publicados – além destes, escreveu A jornada da loucura (2010), Nova era (2011), Palavras de luz (2012), O velho sábio das montanhas (2013) e Cristal (2015) – provam essa predileção filial. A natureza e a diversidade de seus elementos participam no enforme de tudo o que toca a saliva da boca poética e não são como elementos decorativos ou ainda como senhas de acesso para os reais dizeres de sua voz; são símbolos manifestados no interior da algaravia cotidiana. Daí que seu universo poético se mantém enquanto oásis entre o deserto do real.

O livro de 2016 de Pedro Belo Clara deixa de fora qualquer traço sentimental que tolda a atmosfera do seu livro anterior. Em Cristal estão as saídas que o poeta sabe aproveitar na construção de seu projeto seguinte, embora o fulgor da natureza e o brio de suas formas seja matéria cujas raízes parecem se espraiar desde o nascimento da poesia deste poeta; em O velho sábio das montanhas, por exemplo, se constrói um longo poema que quer se situar no tempo suspenso através de uma voz que semeia uma interpretação do homem e suas condições. Este é um poema majestoso que se reveste de certo ars nobili; a voz do sábio sentencia, filosofa, demonstra imperativo com quem fala. O poema, que por vezes aparece escrito com tintas da parábola, é uma simulação da tradição do aconselhamento que nas sociedades primitivas estavam atribuídas aos velhos de longa experiência de vida. Se assim, eis então a resposta para o salto experimentado pelo poeta em Quando as manhãs eram flor.

Há agora a poesia em sua forma naturalmente lapidada, esta que o bom poeta, um captor de reverberações diversas das usuais, apenas lustra a bem torná-la material luzente à vista dos por ela passam e uma vez que se encontrem diante dela sintam-se tocados à espreita. E tanto é verdade que encontra o lugar-zênite que muitos nos acusam havermos perdido – o que não é de um todo uma mentira –, que o traço poético não é apenas uma pura manifestação do verso; a inclinação para a prosa, notada em O velho sábio das montanhas, abre e fecha esse itinerário no qual a voz poética ecoa. Mas, esse lugar original descoberto pelo poeta não deve ser confundido com um langor romântico, uma luminosidade rugosa de anjo, capaz de seduzir o leitor com um falso brilho do mundo e entediá-lo com a mesmidade repetitiva de um paraíso bucólico.  

A poesia em Quando as manhãs eram flor é luminescente. A variabilidade de elementos captados pela retina do poeta confunde-se com as cores que determinam os ares diversos que colorem a atmosfera poética. E tudo aquilo que poderia fazer da poesia um objeto anacrônico é escamoteado pelo domínio dos artefatos, por assim dizer, modernos: a máscara, o não-subjetivismo, o não-filosofismo, e consequentemente a concisão do pensamento apresentada na preferência pela objetividade, o perfeito trânsito entre o visível e o invisível, a sofisticada elaboração de metáforas que são símbolos, e, deste, os gestos que ativam outras zonas de sentido da palavra, o que mantém e ao mesmo tempo move suas forças, e o processo de sedimentação das imagens.

O que vê o olho do poeta é a manifestação de uma memória vertida em sensibilidades que encontram no exterior uma imagem capaz de dizer o interior; tal trânsito, revelado na e pela palavra, é o que constitui uma inteireza do homem e do mundo. Nisso, não se trata apenas de calar sobre nossa condição destituída, mas reparar que esta foi forjada no interior de algumas transformações que foram propositalmente passadas do artificial ao natural no sedento intuito de imposição de determinados modelos de dominação em vigência. O poeta se soma à tribo dos restauradores, sem que, para isso, se deixe conduzir por certo espírito saudoso que por vezes mais dissocia que se mostra interessado numa sorte de revalidação da unidade. Isso se dá porque estamos diante de uma poesia que guarda a consciência de sua permanência para além dos limites da palavra. Ou melhor que não tem a palavra como seu limite e sim instrumento de revelação.

Isso não é um vislumbre de leitor seduzido pelo canto das sereias. É algo que se assume, se o leitor reparar, desde o título da obra: nos dizeres Quando as manhãs eram flor, os termos logo nos colocam num tempo outro que não é o tempo comum, mas flor não se constitui meramente num substantivo tornado adjetivo que sirva de qualificativo sobre como eram essas manhãs. Não é uma metáfora o que aqui se mostra; é uma sobreposição de imagens (manhãs-flor) que torna a flor as próprias manhãs. O termo não apenas modifica o substantivo, o faz outro que se derrama numa imagem-símbolo: manhãs em flor. Esta sobreposição exemplifica claramente o poeta em comunhão com o tempo da unidade restaurada, sem que, para isso, revele os limites da sua técnica. Isso só é possível através de uma sensibilidade e maturidade criativa. É claro que sem técnica não há poema, mas a pura técnica não é poema.

A poesia de Quando as manhãs eram flor é poesia de sorver vagarosamente como quem contempla na boca o sabor que trazido pela memória logo se torna em intumescência dos sentidos e fibrilações pelo corpo. Se não for isso, não é poesia. Então, a boa poesia é capaz de tornar as coisas mais simples, sem retirá-las de seu estado de simplicidade nas mais complexas, sem torná-las em incompreensibilidade. É a capaz de tornar significados em significantes porque contínua movência. É sempre algo que principia outros dizeres. Pedro Belo clara está na via de acesso correta; que continue assim: é o que se espera de um poeta.


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