Nicanor Parra: Preparado para viver e versejar
Por Matías Serra Bradford
Pareceu que
o papa máximo da poesia hispano-americana esperou para morrer depois que partiu
do Chile o sumo pontífice da Igreja Católica. Em um de seus textos de ataque,
“O sorriso do Papa nos preocupa”, havia escrito: “ninguém tem o direito de
sorrir / num mundo podre como este / salvo se tiver pacto com o Diabo”.
Nicanor
Parra não tinha papas na língua e esse paladar forjou um estilo inconfundível
(seus imitadores só parecem repetir piadas alheias). Este deslinguado em série podia rir dos cardeais, ministros ou poetas. E
disparar contra seu próprio fim: “A morte não respeita nem os humoristas de boa
fama / para ela todos os chistes são ruins / apesar de ser ela em pessoa / quem
nos ensina a arte de rir”. A personagem favorita de Parra era Chaplin, mas como
advertiu o crítico Alone em 1954, “não o chamemos humorista: sugere a ideia de
um profissional encarregado de fazer rir”.
Se foi o rei
Lear – que traduziu – das letras espanholas, o que ao menos se vestia à
inglesa, apaixonado pelo chá e pela cortesia anglo-saxã. Nenhum desses atributos
conseguiu aplacá-lo no papel (ou fora dele) este leitor de Martín Fierro e do Fausto
de Estanislao del Campo: “que ninguém é capaz / de arrancar dele uma folha da
bíblia / já que o papel higiênico acabou”. Enquanto Parra pedia zombaria mas não
tão zombeteiramente “não me julgue pelo que digo / mas pelo que deixo de dizer”.
Jogar com o leitor era um de seus passatempos mais frequentes.
Falava-se
tanto sobre a idade centenária de Parra – ou de sua noção de antipoesia, ou de
seus artefatos visuais – que não se falou muito sobre seus versos, que são como
disse, o que deixa: desde Poemas y
antipoemas, a suas versões de Shakespeare e suas obras recuperadas pela
editora da Universidade Diego Portales já neste século.
Para ele a
sesta era sagrada. Agora estará agradecido por ninguém mais importuná-lo. A
viagem foi longa; também sua sombra favorável. Os discursos escolares de seu
pai, professor do primário, deram pé para seus primeiros experimentos de
poesia. Admitiu que “por orgulho” decidiu estudar aquilo que pareceu mais difícil:
matemática e física e, logo, durante décadas, deu aulas de física na
universidade. Numa oportunidade lhe perguntaram onde se cruzam poesia e
matemática. Sua resposta foi rápida: “no infinito”. Seu número favorito era o
40 (talvez porque o levava de volta a quando jogava brisca, um jogo de cartas
em que a combinação do cavalo e do rei dá essa quantidade de pontos). O poeta
Jorge Teillier o relembrava de um modo bonito: “Parra ama os restaurantes parecidos
com hotéis do interior onde nossos pais nos levavam para jantar ou almoçar
enquanto chegava a hora do desembarque nas longas viagens pelo sul”.
Os reconhecimentos
chegam invariavelmente tarde, isto é, nunca: o beneficiário já não os necessita
ou não está em condições de usufruí-los. Visto pela fechadura do tempo, um
Prêmio como o Cervantes aos 97 anos é mais uma burla que uma distinção. Nessas circunstâncias,
o reconhecimento se mostrou, para dizer com as próprias palavras de Parra, como
um “gato deficiente”. Perdeu-se a condecoração com a longevidade; o que não lhe
reconhece uma migalha do ímpeto heroico do homem de um século que dedicou seus
dias a datilografar versos. Mas um prêmio é um narcisismo, a alucinação maior.
Algum jurado do Prêmio Nobel – galardão para o qual se aventou várias vezes que
Parra ganharia – terá se cruzado com este verso: “E todavia há gente que acredita
em prêmios!”? Ou com este outro: “Os prêmios são / Como as Dulcineas del Toboso
/ Quanto + pensamos nelas / + distantes / + surdas / + enigmáticas”.
Nicanor
Parra teve tudo: um nome e rosto apropriados, um mito para acompanhá-los. Mas
também – nem sempre é o caso – a obra de um iconoclasta que teve fobia à mera
fabricação poética, a obra de um joalheiro do ordinário: “Eu levanto meu copo /
Por esse dia que não chega / Mas que é o único / que realmente dispomos”. Mas
ninguém nasce chamando-se Nicanor Parra (se pode dar outros exemplos); precisou
escrever, para acreditar num menino que “tem coração de pau”. Ele mesmo que
aprendeu a ver a hora no relógio da catedral da praça de Ancud, fazendo números
para endossar sua promessa de longevidade.
Alguma vez,
o autor de Poemas para combatir la calvicie
disse: “Renunciei praticamente o diálogo com adultos, mas com crianças
não... Falam por necessidade, tanto que nunca pude alcançar o grau de necessidade
que tem uma criança. É que alguém, até hoje, continua falando por vaidade”.
Estas declarações pouco desnecessárias o aproximam ao taoísmo que tanto cativou
e que vê na criança o praticante ideal. Muito do seu verso foi resultado, como
se diz do tao, “pesado como uma pedra, leve como uma pluma”.
Para Parra o
poema convém o maior alento, à recordação e à memória e, no mesmo
limite, a rir e vilipendiar. Lê-se assim os esplêndidos versos de “Clara
Sandoval” e “Imagen de mi padre”. E o melhor do poeta aparece – “Defensa de
Violeta Parra”, “Los profesores" – quando sua poesia se aproxima, sem
peso, da poesia. Mas não cabe ser ingrato e menos ingênuos com este autodeclarado
discípulo de Macedonio Fernández: o mal em Parra tem gosto de broma taoísta (os
mestres orientais gostam das charadas). Não esqueçamos o que sugeria Enrique
Lihn: “Há poemas de Parra que parecem a sátira de seu próprio projeto”. (Não
pode ter sido mal professor quem deu pé a discípulos que o superaram).
Para Parra seus
últimos poemas foram inferiores aos primeiros, como se tivesse deixado
progressivamente de lado a substância poética num estado puro e tivesse se inclinado
pelo estilo de alguém que se envergonha, por devoção, dessa matéria ígnea. Daí
talvez o riso nervoso, de falso tímido, de não poucas de suas diatribes ou sua
tentação por gracejos de uma infantilidade surpreendente: “Tomei um pedaço de
pedra que encontrei num rio / E comecei a trabalhar nela / Comecei a poli-la /
Dela fiz uma parte de minha própria vida”. Já havia passado o espanador de aço
em vários dos salões mais bolorentos do museu da poesia e despojado a mais de
uma besta presunçosa.
Como os bons
poetas, Parra deixa o leitor livre para suas próprias palavras, seu próprio
atordoamento. E é por poetas como Parra que há palavras que ao menos um leitor
pode pronunciar sem um mal dissimulado esforço por conter a emoção; esforço que,
como o mais secreto idioma, está muito além de suas possibilidades. Nicanor Parra
sabia (continuará sabendo), como os taoístas, que ser perfeito é um convite
perfeito para a deterioração e que o galho cai primeiro sobre as árvores mais
altas.
Ligações a esta post:
* Este texto é uma tradução de "Preparrado para vivir y versear", texto editado no jornal Clarín.
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