Nicanor Parra, o último antipoeta (e o primeiro)
Por Javier Rodríguez Marcos
Todos os
dias morre algum poeta. Os antipoetas, por sua vez, morrem uma vez a cada século.
Ou a cada era geológica. A razão é única: poetas sempre existiram e existirão;
antipoetas só houve um, Nicanor Parra. Assim, em contraste com o restante de
seus pares, o poeta chileno é apresentado pelo mais importante de seus
estudiosos: o professor Niall Binns. Depois de assistir há três anos seu
próprio centenário e há um ano o de sua irmã, a cantora Violeta, Nicanor Parra,
que nasceu em San Fabián de Alico em 1914 morreu em sua casa de La Reina, em
Santiago do Chile. Havia se mudado para esta residência pouco antes de seu
aniversário, em setembro, e depois de passar os últimos anos no povoado
litorâneo de Las Cruces.
Ali permaneceu
em abril de 2012 enquanto há 11 mil quilômetros de distância, em Alcalá de
Henares, um de seus netos, Cristóbal Ugarte, recolhia em seu nome o Prêmio
Cervantes. O avô, cuja idade não era mais indicada para uma viagem
transatlântica havia pedido uma exceção para apresentar um discurso “medianamente
plausível”. Aí, já estava com as mãos metidas na sua obra: sua mesa cheia de
livros sobre o autor do Dom Quixote com
as passagens importantes marcadas com envelopes de chá.
Naquela
antissolene manhã de abril no paraninfo da universidade de Alcalá, misturada
entre autoridades civis e militares, estava a cantora Patti Simith, que havia iniciado
a devoção por Nicanor Parra desde quando o conheceu por através de Roberto Bolaño,
já agora o escritor latino-americano mais importante das últimas décadas. “Escreve
como se no dia seguinte fosse ser eletrocutado”, disse o autor de Os detetives selvagens sobre o velho compatriota.
Mas, ser eletrocutado depois de eletrocutar o leitor: “Durante meio século / a
poesia foi / o paraíso do bobo solene. / Até que veio eu / e me instalei com
minha montanha russa. / Subam, se lhe apetece. / Claro que eu não digo nada se caem
/ esvaindo-se em sangue pela boca e nariz”, escreveu num poema de 1962,
incluído em Versos de salón.
Anos antes,
em 1954, havia publicado um livro em que misturou vários títulos – Material de lectura, Oxford 1950, Veinte años y un día – mas cuja denominação final marcaria o resto de sua obra: Poemas y antipoemas. Nele, como avisava o autor, não apareciam
palavras como arco-íris, dor ou Torquato. Cadeiras e mesas, sim. Também havia
prosa, humor, ironia, chistes, (bons e ruins), poesia que não queria ser
poesia.
Depois da
estreia em 1938 como poeta com Cancionero
sin nombre de ares a Federico García Lorca, o Parra antipoeta era uma pedra
seca de prosaísmo anglo-saxão em verboso firme afrancesado da poesia hispânica.
Não em vão, entre 1949 e 1951 havia estudado Cosmologia em Oxford depois de se
especializar em Mecânica Avançada na Universidade de Brown [Ver “As relações
de Parra com o mundo”]
Licenciado
em Física e Ciências Exatas, durante 30 anos foi professor de Física na escola
de engenheiros da Universidade do Chile e em 1973, ano do golpe de Pinochet,
entrou para o mítico Departamento de Estudos Humanidades da Faculdade de
Matemática. Ali encontrou-se com o também poeta Enrique Lihn, com quem duas décadas
antes, e com Alejandro Jodorowsky, havia fundado o periódico El quebrantahuesos. Este departamento
logo se converteu durante a ditadura num reduto de pensamento livre. Livros como
Sermones y prédicas del Cristo de Elqui
(1977) ou Chistes para desorientar la
policía / poesia (1983) foram a resposta a um tempo, o da dura ditadura, que
Parra ignorou confundido sua voz com a de um suposto louco: Domingo Zárate
Veja, chamado o Cristo de Elqui, um famoso pregador de rua dos anos trinta.
Cientista
disfarçado de poeta, poeta disfarçado de louco, Nicanor Parra foi também um escritor
disfarçado de artista plástico desde que em 1972 publicou Artefactos, uma inusitada coleção de poemas visuais que o levaram a
aproximá-lo de autores como o escocês Hamilton Finlay, o belga Marcel Mariën ou
o catalão Joan Brossa. Desde então, alternou a imagem e a escrita, que nos anos
seguintes deu como frutos títulos como Hojas
de Parra (1985) ou Discursos de
sobremesa (1997), sempre recorrendo a uma ortografia que, com o particular
uso de signos como &, x ou + (ao invés de e, por ou mais), anteviu as
mensagens de texto dos celulares. E isso desde uma irredutível ideia da poesia:
“Vida em palavras / Um enigma que se nega a ser decifrado x professores / Um
pouco de verdade e uma aspirina / Antipoesia és tu”.
Ligações a esta post:
* Este texto é uma tradução de "Nicanor Parra, el último antipoeta (y el primero)", editado no jornal El País.
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