Dadaísmo: da falta de lógica como crítica social à resistência a um mundo chocante
Por Maria Vaz
Candy Candy, Joana Vasconcelos. |
O dadaísmo, enquanto movimento artístico vanguardista, nasceu em
Zurique por altura da Primeira Guerra Mundial. A cidade servia de cenário à
vida quotidiana de inúmeros artistas que imigraram ou se refugiaram na Suíça,
sobretudo por motivos de discordância com os posicionamentos dos seus países no
que toca à guerra. Nesse sentido, com pontos de vista, educações e tradições diferentes,
apresentavam uma frustração comum: não entendiam o facto de o ser humano não
conseguir evitar a guerra, apesar de toda a evolução científica, filosófica e
artística. Foi a partir da ausência de sentido, do caos total, de vocação
universalista, que designaram a palavra ‘dada’ a mote revolucionário.
Segundo consta, ‘dada’ foi uma palavra encontrada aleatoriamente no
dicionário. Hugo Ball – no primeiro manifesto dada – afirma que a palavra é “bestialmente
simples”, uma palavra “internacional”. Naquele manifesto, Ball parecia
consciente de que isso lhe traria complicações, confusões. Todavia, às
contrariedades e indignações – na certeza de não conseguir mudar ninguém –, a
palavra assumia a expressão de “até à próxima”, ou de “tem toda a razão”. Este
movimento descredibiliza a razão e a própria linguagem edificante do romantismo
alemão de Goethe ou das palavras religiosas – seja qual for a religião –
desprovidas de prática: não evitam a guerra entre os homens nem entre os países.
O dadaísmo fez da falta de lógica um grito de liberdade ante o sufoco dos
falsos moralismos – como escreveu Ball, “quero a minha própria asneira, e as
vogais e consoantes que lhe correspondem”. Combatiam as estruturas, os
institucionalismos, as regras artísticas, ao mesmo tempo que valorizavam a
espontaneidade e sinceridade que pode haver na arte – esta pode nascer em
pequenas coisas do quotidiano.
Fonte, Duchamp |
Toda esta inovação foi dada à luz na maior cidade do país, onde a
diferença e a heterogeneidade das atrações a erigem a cidade democrática – para
todos os gostos. A reunião da diferença – pelo universalismo a que se
vocacionava o dada – deu-se em um local muito peculiar da cidade, que hoje
serve de mote para uma visita cultural, o famoso Cabaret Voltaire. Nasceu assim
na noite, no laser, da necessidade de fuga, do caos como crítica a uma ordem
hipócrita, do convívio com todas as diferenças, da eleição da liberdade, da
ausência de exclusão. Nessa linha, o dadaísmo rapidamente conquistou outras
formas de arte além da literatura, como a escultura, a pintura ou, ainda, a
fotografia. Se tudo nasceu com Ball (em 14 de julho de 1916 – data da
publicação do primeiro Manifesto Dada), não podemos dizer que o movimento morreu
rápido ou que teve curta existência. Pelo contrário. A vocação da filosofia
universalista do movimento levou-o à expansão em várias línguas e expressões,
chegando rapidamente a cidades como Nova Iorque, Paris, Colónia, Berlim e
Barcelona. Dos seus pioneiros e expoentes máximos constam nomes como Tzara,
Duchamp, Man Ray, Francis Picabia, Hugo Ball ou Emmy Hennings.
Com o passar do tempo deu-se um declínio das ideias dada, o Cabaret
Voltaire fechou e novas tendências de vanguarda emergiram pelo mundo. Não
obstante, na década de 80, uma banda britânica com o nome do célebre clube
noturno de Zurique propôs-se a levar as tendências do dadaísmo para a música.
No Brasil, podemos encontrar traços do dadaísmo na pintura de Flávio de
Carvalho, nos poemas-piada de Manuel Bandeira ou na poesia de Mário de Andrade
(maxime no seu poema ‘Ode ao Burguês’, de 1922).
Pela proximidade do movimento em análise com o modernismo, afirma-se
que, em Portugal, Almada Negreiros apresentou traços dadaístas. Atualmente, a
artista plástica portuguesa Joana Vasconcelos – segundo a crítica – apresenta
nuances dadaístas pelo facto de tornar arte pequenos objetos do quotidiano, de
uma forma espontânea. Todavia afasta-se do movimento na medida em que não
abraça a proposta do choque como forma de crítica social. A aproximação desta
artista ao dadaísmo, pela crítica, prende-se, ainda, pelo facto de uma obra sua
– Candy, Candy – apresentar uma semelhança com a obra, A fonte de Duchamp:
ambas se tratam de um urinol, sendo que o elaborado por Joana Vasconcelos
apresenta outras nuances estéticas, na medida em que se encontra adornado por
croché, trocando o choque dadaísta de Duchamp por uma elevada dose de barroco,
nesta hipermodernidade.
Destarte, não podemos dizer que o dada morreu – está mais vivo do que
aquilo que possamos pensar. Em 2002, a cidade de Zurique viu um edifício
abandonado, vazio e que passava ao lado das atenções ganhar nova vida: o Cabaret
Voltaire foi ocupado por um grupo de artistas neodadaístas com a intenção de
se fazerem ouvir. A comuna de Zurique arrendou o espaço e, ante administrações
conservadoras e totalmente desprovidas do espírito dada dos inícios do século
XX, criou-se um plebiscito, em 2008, em que 65% dos eleitores optaram pelo
apoio àquele espaço cultural. O diretor do espaço, Adrian Notz, afirma que o mais importante nos dias que
correm não é já o choque, mas a resistência ao que nos choca, “o mundo é já
muito chocante”. O Cabaret Voltaire continua a exalar vanguarda. Passado mais
de um século, o dada resiste.
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