A descoberta da escrita, de Karl Ove Knausgård
Por Pedro Fernandes
Desde A morte do pai, o primeiro volume de Minha luta, um extenso romance no qual
Karl Ove Knausgård esboça passar a limpo sua vida, já era possível suspeitar a que se refere este simbólico título que encontra ecos em tradições
não tão celebrativas no universo dos livros – ao dizer isto, pensamos no mesmo
título escolhido por Adolf Hitler para sua imoral autobiografia. E contra o quê
luta o escritor norueguês? A resposta para a pergunta está pronta e a essa
altura, quando da leitura do quinto volume de um total de seis que formam sua
obra-prima, é possível apresentá-la sem receio do erro ou da contradição.
Em A descoberta da escrita, Karl Ove
Knausgård trata de explorar os lugares, as situações e a insistente tentativa
de escrever. Mais que isto: de construir o que poderíamos chamar de ethos do escritor. Por toda a parte está
em contato com figuras, grande parte delas são pessoas mais jovens que ele,
entregues ao ofício de manipulação da palavra, sérias e dedicadas à escrita ao
ponto de obterem os elogios esperados por todo aquele que cria e o lugar entre
os importantes círculos literários na Noruega, enquanto a si tudo são faltas.
Não guarda nenhuma credibilidade por seu interesse recorrente, vive metido numa
mortal insegurança que sempre o desenha um incapaz, uma farsa, um sujeito sem
jeito para o meio. E tudo parece avivar-se ainda mais porque é reforçado não
apenas pelas suas atitudes, mas por aqueles que metidos no exercício literário
também não lhe deitam grande credibilidade.
É depois de
retornar de um longo périplo por meia Europa, viagem que empreende primeiro na companhia
de um amigo, depois sozinho, quando os recursos rareiam, e antes de iniciar as
aulas num curso de escrita criativa em Bergen, que reencontramos o narrador. E
ao longo de A descoberta da escrita
atravessamos com ele, os momentos nas aulas com importantes figuras da
literatura contemporânea em seu país, a conturbada relação entre ele e o irmão,
entre ele e a errância pelos amores, entre ele e o pai, as desilusões amorosas, o primeiro casamento,
as passagens pelos cursos de Letras e Artes, as relações familiares e as perdas
dos entes queridos, incluindo o retorno ao episódio que impulsiona o Minha luta, isto é, a morte do pai, e as
várias tentativas, sobretudo, as frustrações em não conseguir construir sua
obra de estreia, enquanto se debate entre histórias fracassadas e a leitura
incansável de importantes obras e escritores da literatura mundial, de Jorge
Luis Borges a Julio Cortázar, dos clássicos da cena modernista aos seus contemporâneos, de Dostoiévski a James Joyce, de Marcel Proust aos franceses do nouveau roman.
O périplo
geográfico é substituído, sem que este deixe de existir, pelo universo feito de
imaginação, engenho e laboração da linguagem. E não restará no leitor, depois
de acompanhar esse narrador ora sério e debochado, ora interessado no mínimo
detalhe, ora visitando situações en
passant, nenhuma dúvida sobre a ilusão da inspiração como elemento do qual
uns são dotados e por isso se dedicam à criação literária. O gênio é apenas uma
inclinação e a inspiração, se é ainda para continuar a acreditar na sua existência,
é apenas o alvorecer da ideia; o que mais resta é um contínuo e angustioso
trabalho de perlaboração até torná-la, a ideia, em acontecimento literário. Embora pareça
existir no interior do criador uma obsessão que o impede de se reconhecer capaz
de realizar outra coisa que não a escrita, perdura, sem dúvidas, o contínuo
tatear e encontro com a inspiração é apenas o princípio e não a criação, esta que se
constitui integralmente de um reiterado esforço de manipulação e lapidação.
Depois desse
longo itinerário, em grande parte angustioso, não encontramos com um escritor,
mesmo depois de realização de seu feito, situação previsível porque o leitor
tem em mãos parte do fruto do que alcança Knausgård, seguro e agora satisfeito.
Parece reincidir, como a chama que se oculta num borralho, os mesmos dilemas, toda vez depois do suspeito descanso favorecido com o alcance do objeto
artístico. Não será vão recuperar a imagem da possessão como a ideal para
traduzir os lugares do processo criativo. Ou mesmo, a do desejo erótico – este
último repetido em várias ocasiões ao longo da narrativa de A descoberta da escrita. Uma vez encarnada
no indivíduo o prende numa montanha-russa de sensações que apenas alcança um estado de repouso quando a obra é concluída. Mas, logo tudo voltará a se manifestar com
as mesmas inquietações e forças de antes. O escritor é uma espécie de corpo suscetível
a esses súcubos que o perseguem em toda parte; embora não seja na figura do atormentado
que Knausgård se perceba, como é o caso do tio poeta, ela está presente nele próprio e em toda parte da
narrativa,
A descoberta da escrita acompanha uma
série de transformações: a da imagem superficial do ser escritor, como se percebe
e como percebe os colegas de curso na Skrivekunstakademiet, a escola de escrita
criativa, e mesmo no curso de Letras, a da imagem interior, esta que nunca será
a mesma depois de um longo processo de dedicação à escrita de uma obra. Isto é,
a transição entre o escrevente ao escritor. Nesse processo, Knausgård embora
não se convença de seu papel entre o homem que é antes do primeiro livro e o
que é a partir de então, consegue transmitir ao leitor – se propositalmente ou
não, não é mérito nosso investigar – a ideia de que nunca esteve meramente
interessado na descoberta de uma fórmula da escrita capaz de inseri-lo num
panteão dos milionários. Seu esforço ultrapassa o lugar não menos difícil
daqueles interessados apenas na criação de um molde através do qual possa
enformar toda a obra até seu desgaste e a criação de um novo molde feito de
pequenas variações do primeiro. Há um registro sincero na sua atitude para com
a literatura, compreendendo por isso a insatisfação para com os diversos
projetos de escrita aos quais se dedica e a perseguição da criação de uma obra capaz
de colocá-lo entre aqueles já sublinhados pela crítica e por ele próprio como
fundamentais ao universo da criação.
Ao idealismo
romântico da inspiração prevalece a constatação de que escrever é superar as contínuas
frustrações impostas ao escritor, principalmente aquelas que o assombram e não
aquelas favorecidas pela crítica ou pela leitura muitas vezes pejorativa de
seus pares. A presença na escola de escrita criativa, e mesmo entre alguns círculos
literários, favorece ao narrador a compreensão de nesse território há elevados
jogos de ego e muito de achismo. Contra isso, o único remédio que sobra ao
aspirante a escritor, é a perspicácia de participar paralelamente deste circuito
à distância e a desenvoltura para perseguir sua formação sozinho na leitura contínua
dos que estão na cota de sua admiração.
Em A descoberta da escrita não destaca apenas
estas saídas alcançadas pelo narrador. O leitor entra em contato com a gênese desse
estilo que ele próprio denomina como macromalismo. O que define, em parte, o
estilo de um artista, é a maneira como percebe o mundo, isto é, a maneira
individual como olha para as mesmas coisas que todos olham. Outra parte, é conseguir
realizar essa mirada através do instrumento de representação que tem em mãos;
no caso do escritor, a linguagem. E é quando Knausgård vai viver num estúdio na
zona histórica de Bergen, depois de sair da casa do irmão, que essa mirada se constrói:
trata-se de um olhar nascido da apavorante insegurança que o persegue desde a
infância quando era subjugado pelo pai; um olhar que parte de baixo para cima e
se irradia pela visão lateral. Este olhar é alcançado no estúdio onde mora em
Bergen, porque a propriedade localizada próxima ao rés-do-chão favorece que perceba
a realidade externa a partir de baixo.
E a maneira encontrada
pelo escritor em transformar isso em linguagem encontra-se na fluência com que
transita entre a variedade de lugares e situações observadas. Em algum momento,
a crítica o descreve como um retorno à matriz realista, o que não é verdade,
uma vez que sua tentativa é a de romper com a fronteira forjada entre o
interior e o exterior, algo que não se verifica na chamada obra realista. A
ruptura insinuada por Knausgård é perfeitamente visível desde o primeiro volume
de Minha luta: ali a morte do pai se constitui
em elemento de degeneração palpável das condições físicas aos sentimentos em
torno da perda. E esta imagem é importante não apenas para o desenvolvimento
desse grande romance mas da obra do escritor norueguês como um todo. No retorno
que faz a este episódio em A descoberta
da escrita, é assim que toca na questão, corroborando com a linha
interpretativa aqui apresentada: “Então eu devia escrever textos curtos? Na
falta de coisa melhor foi o que eu comecei a fazer. Escrevi um sobre o meu pai.
Aliás, quase tudo que eu escrevia de certa maneira estava relacionado a ele, eu
tinha um número incontável de variantes sobre dois irmãos, Klaus e Henrik, que
voltavam à cidade natal para enterrá-lo, e depois começavam a limpar a terrível
casa onde ele havia morrido. Mas não deu nada, eu não acreditava naquele texto”.
Se o sentimento
mal explicado da relação entre pai e filho é motriz para a construção acerca da
percepção de mundo engendrada pela literatura de Karl Ove Knausgård – percepção
esta que nasce desse olhar de baixo e enviesado –, pode-se dizer que este é também
sua luta. Neste rol acrescente-se ainda a própria escrita, que se torna igualmente
meio de embate no qual o escritor busca fazer-se e através do qual compreender
esse sentimento com que busca construir sua própria mirada sobre a realidade.
Não é apenas um itinerário para constatar a obviedade sobre a finitude e degeneração
de tudo, como já alguma vez a crítica acusou esse longo exercício do escritor;
trata-se da busca sobre uma constatação que diga de si e se mostre como é
possível a revelação do mundo através da palavra. E isso é grandioso.
Ligações a esta post:
Comentários