A adolescência do romancista J. M. Coetzee em preto-e-branco
Por Jason Farago
Foto: J. M. Coetzee. Uma tiekiedraai ou festa dançante, na véspera do Ano Novo. Coetzee lembra: “Eu tinha um flash acoplado na Wega, mas nunca consegui sincronizar o flash com o obturador”. |
Em 2014, anos depois de se mudar
da África do Sul para a Austrália, o romancista J.M. Coetzee finalmente vendeu
seu apartamento na Cidade do Cabo. Pouco depois, um pesquisador bisbilhotou
dentro de uma caixa de papelão esquecida no apartamento vazio e, para sua
surpresa, encontrou um amontoado de material inédito excepcional do taciturno
ganhador do Prêmio Nobel. Mas não eram manuscritos. Eram fotografias: feixes de
gravuras amareladas que mostravam “cenas de uma vida provinciana”, como no
subtítulo dos três volumes de sua autobiografia, além de negativos não
revelados.
Aparentemente, antes de se dedicar
à literatura, Coetzee foi um comprometido fotógrafo adolescente. As impressões
em preto-e-branco de sua família, sua escola e vida cotidiana na fazenda de seu
tio vieram à tona pela primeira vez numa exposição no Museu Irma Stern na
Cidade do Cabo.
Coetzee não havia mostrado suas
fotos para ninguém; quando a exposição foi proposta, ele hesitou, sem saber se
as primeiras experiências de um escritor com a câmera poderiam ser de algum
interesse. Mas as imagens tiradas em 1955 e 1956, quando o autor tinha 15 e 16
anos, oferecem um panorama crucial sobre a formação de um autor tão contido em
suas revelações pessoais e em sua prosa. Além disso, dão à sua ficção uma nova
profundidade que deve tanto às artes da lente quanto às da caneta.
Foto: J. M. Coetzee. Uma partida de rugby na Universidade Marista São José na Cidade do Cabo. |
A exposição foi organizada pela
curadora Farzanah Badsha e Hermann Wittenberg, o acadêmico que encontrou as
imagens: “Wittenberg me forneceu as reproduções digitais das primeiras
fotografias de Coetzee, e eu tive que me contentar com elas, pois não podia
viajar para a Cidade do Cabo para a exposição (ou para ir à praia). Cerca de
vinte das fotografias expostas são gravuras antigas; outras 58 são fotografias
recém-impressas de negativos desgastados e manchados pelo tempo.”
Coetzee nasceu na Cidade do Cabo
em 1940. Não sendo de uma família rica, foi certamente uma grande despesa para
o jovem John adquirir sua Wega de 35 milímetros: uma imitação italiana mais
barata da leve Leica usada por Henri Cartier-Bresson e outros fotógrafos que
ele admirava da revista Life.
Foto: J. M. Coetzee. Vera Coetzee, a mãe do escritor, em frente da casa da família em Plumstead, no subúrbio da Cidade do Cabo. |
Ele logo montou uma câmara escura
na casa de sua família nos subúrbios da Cidade do Cabo. Sua mãe, Vera, era
professora; John a amava muito e a fotografou do lado de fora de sua casa
arrumada, dormindo no sofá ou lendo com seu irmão mais novo David.
John se sentia ainda mais distante
do pai, Zacharias (conhecido como Jack ou Zac), como o autor descreveu em Verão
(2009), o terceiro de seus livros autobiográficos e aquele em que há mais
ficção. Jack só aparece em uma fotografia em que seu filho capturou sua
aparência mais dócil. Os ombros de Jack estão para frente e seus braços estão
cruzados enquanto a tia materna de John, Annie, o repreende com um dedo
estendido.
Foto: J. M. Coetzee. O pai de Coetzee, Zacharias, e sua tia, Annie. A relação do autor com o pai é parte principal de Verão. |
Foto: J. M. Coetzee. Uma sala de aula na Universidade Marista São José comandada por um padre chamado irmão Alexis. |
Ao futuro escritor a Cidade do
Cabo era tediosa, mas ficava fascinado com o Karoo, a árida região sul-africana
onde ficava a fazenda de seu tio, chamada Voëlfontein (ou “fonte de pássaros”
em africâner). A paisagem crivada de balas do Karoo desempenhou um papel
central na percepção que o jovem escritor tinha da natureza, da família e da colonização.
Em Infância, Coetzee escreve: “Distingue-se melhor a Voëlfontein no
verão, quando jaz serena sob uma luz uniforme e ofuscante que cai do céu”. É
uma impressão que coincide com uma de suas fotografias, cuja parte superior é
ocupada por uma cúpula intacta de nuvens.
Foto: J. M. Coetzee. Voëlfontein, a fazenda do tio de Coetzee, na árida região central da África do Sul conhecida como Karoo. |
As fotografias realizadas por
Coetzee do Voëlfontein, mesmo em sua tenra idade, mostram a postura ambivalente
em relação ao campo sul-africano que inspirou sua ficção posterior: presa entre
o amor por sua amplitude e a vergonha por seu legado histórico. Essa paisagem é
onde ele ambientou seus dois primeiros romances: No coração do país
(1977), o retrato prismático de uma dona de casa homicida, e Vida e época de
Michael K (1983), sua fábula minimalista e kafkiana sobre o apartheid.
As imagens mais notáveis de seu
arquivo juvenil mostram dois trabalhadores da fazenda em Voëlfontein, chamados
Ros e Freek, a quem Coetzee descreve em Infância com uma admiração
extasiada. Os diaristas são “de cor” — termo aplicado durante a era do
apartheid a indivíduos de origem africana, europeia e asiática — e, quando
criança, entra em conflito com as regras escritas e tácitas que os mantêm
afastados.
Um dia, em 1955 ou 1956, a família
Coetzee viajou para a praia com Ros e Freek, que nunca tinham visto o mar.
Coetzee não menciona a viagem em Infância, mas suas inúmeras fotografias
dos ajudantes da fazenda, tiradas com um poderoso contraste suave que lembra o
teimoso e austero mundo novo que aparece em seu recente livro A infância de
Jesus (2013), refletem a transcendência daquele dia tanto para os homens
quanto para a criança.
Fotos: J. M. Coetzee. Dois registros de Ros e Freek, trabalhadores da fazenda que pertencia ao tio de Coetzee, visitam a praia em Strandfontein, um povoado a 320Km ao norte de Cidade do Cabo. |
Numa de suas raras entrevistas,
quando perguntado sobre as influências literárias em No coração do país,
Coetzee respondeu: “Há, acho, uma influência mais básica: o cinema e a
fotografia.” Além da influência subjacente da câmera, as fotografias fazem
parte de muitos de seus romances: desde seu obra-prima longa-metragem de
estreia Crepúsculo (1974), narrado em parte por um investigador do
governo estadunidense que carrega consigo fotografias das atrocidades da guerra
no Vietnã, até Desonra (1999), uma dissecação brutal da África do Sul
pós-apartheid em que o humilhado professor de literatura se vê confrontado com
um retrato depreciativo no jornal da escola. Mais tarde, em Homem lento
(2005), Coetzee quis que seu personagem principal fosse um fotógrafo: um que se
decepciona ao saber que as imagens digitais “podem ser sugadas por uma máquina
e emergir adulteradas e infiéis”.
Foto: J. M. Coetzee. Um carro da polícia para próximo a dois pedestres negros no subúrbio de Newlands. O governo sul-africano adotou oficialmente o sistema de apartheid em 1948, entre sete e oito antes de Coetzee realizar esta fotografia. |
Em Infância e suas
autobiografias subsequentes, Coetzee se refere a si mesmo usando apenas o
pronome “ele”. Até mesmo sua decisão de escrever sob o nome de J. M. Coetzee,
omitindo o nome “John” e usando a inicial do meio que o permitiu ser
incompreendida por décadas (M para Maxwell, não Michael), deixou cair um véu
sobre ele. Mas em seus autorretratos fotográficos, que já têm mais de 60 anos,
há uma distância autoral semelhante misturada com a franqueza, a sinceridade e
até o orgulho. Vemos o adolescente John vestindo um colete de lã e uma camisa
de colarinho aberto, suas bochechas coradas e seu olhar comovente e triste. Ela
se inclina para um lado e parece um pouco frágil, mas olha para a frente com
uma postura superior à sua idade.
Fotos: J. M. Coetzee. O adolescente Coetzee em dois autorretratos |
Noutra imagem tem uma pose de adolescente temperamental, tomado por uma melancolia que pode levá-lo à genialidade ou à desgraça. O quarto está às escuras e o jovem Coetzee ilumina seu rosto a partir de baixo. Ele olha em frente, meditativo. Logo baixará a câmera; passarão duas décadas antes de publicar um livro. Cada romance que escrever será um autorretrato.
* Este texto é a tradução livre de
“J. M. Coetzee’s Boyhood, in Black and White”, publicado aqui, em New York
Times.
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