Sor Juana Inés de la Cruz por Octavio Paz
Sor Juana
Inés de la Cruz significa várias para a cultura em língua espanhola. Em 1982, Octavio
Paz deu à estampa uma biografia capaz de esclarecer algumas dessas faces. A
obra então publicada pela editora espanhola Seix Barral foi apresentada na
Universidade Autônoma de Madri com uma conferência sobre esta mulher que “precisou se tornar monja para poder pensar”. Um dia depois, o próprio autor comandou um
recital com poemas de Sor Juana na Universidade de Barcelona. É esta obra que agora, a tradução de Waldir Dupont, ganha reedição no Brasil pela editora Ubu.
A biografia
escrita por Octavio Paz é fruto de oito anos de trabalho e nasceu “da sedução
que exerce esta mulher em particular, que é uma intelectual orgânica no sentido estritamente gramsciano,
que, como tal, termina enfrentando-se à ortodoxia e ao poder em cujo seio
estava integrada e que sofre em si mesma a colaboração da própria ideologia com
seus acusadores até chegar a autoacusação”. Octavio Paz se sentiu seduzido pela
“perfeição da obra e o caráter enigmático da vida” desta curiosa monja,
absolutamente consciente de ser mulher e completamente absorvida por uma paixão
inédita, a do conhecimento, que, precisamente por isso, “tem que neutralizar
seu sexo para poder aceder à ânsia de conhecer”.
É um livro
denso e volumoso. Octavio Paz cuida em seu relato de manter certo suspense,
porque diz, “é como um romance a vida desta mulher”. O livro tem, “de alguma
maneira, três partes e três grandes temas. Primeiro, o estudo da sociedade mexicana
de finais do século XVII, que coincide com a máxima decadência espanhola (é o
reinado de Carlos II) e, ao mesmo tempo, com o nascimento de uma nova sociedade
no México. Então é o espelho da Espanha e, ao mesmo tempo, algo muito
diferente, uma sociedade mais jovem, que então poderia abrir-se à modernidade
mas não se abriu”.
Depois se
passa à “sua biografia enigmática. Embora Sor Juana fosse monja, não foi especialmente
religiosa. É uma intelectual mais que qualquer coisa. Pedro Salinas dizia que, mais
que poeta, é uma scholar. Eu não acredito
nisso, mas sim que é uma poeta intelectual, uma figura que se dá muito pouco na
literatura espanhola. É, por outro lado, uma mulher bonita que vive na corte e,
por isso, decide aceitar o sentimento
religioso. E aí há um mistério. Há quem diga que houve uma decepção
amorosa; é possível. Eu acredito que se tornou monja porque não havia outra
saída”.
Octavio Paz
descobre e interpreta que “Sor Juana era filha legítima, o que não se sabia até
vinte anos; não era uma mulher rica e além disso não tinha vocação para o casamento.
Sua vida religiosa é absolutamente mundana: sua cela (na verdade, dois pisos com
uma impressionante biblioteca e música e tertúlias) é o centro de encontros
onde ela escreve poemas eróticos e comédias. Logo publica uma carta em que critica
o sermão de um jesuíta português à qual responde ao bispo de Puebla com
pseudônimo feminino assinado Sor Filotea de la Cruz, lamentando, em resumo, que
se dedique a temas terrenos abondando a espiritualidade e tocando em questões como o papel da
mulher, segundo diz, não deve ser o de submissa.
Três meses
depois noutra carta Sor Juana defende o direito ao saber por parte das
mulheres. Dois anos depois, atendendo a um chamado de Deus, vende todos os seus
livros, doa o dinheiro para os pobres e assina com sangue a renuncia às letras.
Morre um ano e meio mais tarde numa epidemia de tifo”.
Este final
diferente é sempre lido como uma conversão em nome da maioria; para alguns, uma
atitude mística; para outros, neurótica. Octavio Paz acredita “que é a solução
final de um conflito ideológico e político: o caso do intelectual livre numa sociedade
fechada e ortodoxa, por um lado, e a gravidade do tema quando se trata, além de
tudo, da condição da mulher”. “Sor Juana termina sendo, sem se dar conta, uma
feminista que pede a existência de mulheres que possam ensinar às outras as ciências
terrestres como condição para possam aceder aos céus”.
A partir disso,
Octavio Paz introduz a preocupação central de sua pesquisa, sempre, e além de
tudo, com esse miolo da consciência – às vezes má consciência – de intelectual
ocidental a partir da modernidade. “Sor Juana é uma intelectual orgânica no
sentido de Gramsci e há um momento em que, como é uma verdadeira intelectual,
se enfrenta sem querer (sem poder evitar) o poder. E isso acontece seja na sociedade
pseudo-socialista do século XX ou na imperial espanhola do século XVII”.
“No caso
de Sor Juana”, acrescenta Paz, “é preciso acrescentar que se trata de uma sociedade
de valores culturais masculinos, o que lhe obriga a neutralizar seu sexo para
poder ter acesso a esse privilégio que é masculino, o conhecimento”. Ao mesmo
tempo, diz: “as autoridades são mais rigorosas com esta mulher, que se fez
monja para poder pensar junto com seus varões contemporâneos: Góngora, Lope,
por exemplo, são maus sacerdotes, desorganizados e luxuriosos – e são perdoados.
Sor Juana não é uma monja desorganizada: é uma monja indisciplinada e com ela
são implicáveis”.
Por fim, a
terceira parte do livro se ocupa da originalidade da obra de Sor Juana. “É a
última poeta barroca. Com ela se encerra a grande poesia do barroco espanhol e
ao mesmo tempo que avança profetiza a poesia moderna. A sua, sobretudo, trata
um tema novo: a poesia do conhecimento”; não é, diz Paz, o que chama antisanta
Teresa, “nem mística, nem contemplativa: os escritores místicos têm como tema a
união com Deus. Em Sor Juana não há mística nem união com Deus, e, se há
contemplação, não é de Deus, mas do Universo. O que há, sobretudo, é conhecimento”.
Em suma,
“trata-se de uma escritora profana, verdadeira, próxima aos seus modelos, os
poetas do século XVII e, concretamente, Góngora e Calderón. Como eles, escreve comédias
e autos sacramentais que serão importantes em toda poesia moderna, é sua maior
originalidade”.
Ligações a esta post:
* Este texto recupera informações sobre a apresentação do livro de Octavio Paz a partir das declarações oferecidas pelo escritor ao jornal El País.
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