Pretérito imperfeito, de Bernardo Kucinski
Por Pedro Fernandes
Dos modos
verbais, o pretérito imperfeito é um passado que não se realizou totalmente; é,
dessa maneira, um passado que – como raízes que se deslocam e invadem outros
territórios – se prolonga sobre outros tempos: o passado que poderia ter acontecido
e o presente. E essa compreensão é oferecida ao leitor neste romance de
Bernardo Kucinski do ponto de vista temático e formal. As ações de Pretérito
imperfeito embora estejam situadas num passado qualquer do narrador se
apresentam como uma sombra sobre o presente da rememoração e em estágio de se concluir,
porque afinal, a atitude central desse narrador – a de renegar o filho adotivo
– só se concretiza à distância e através da escrita. E não adianta o leitor procurar
por trás ou no texto o acontecido.
Este romance
se filia a uma linha que em 2018, na literatura brasileira, ganhou outras duas
representações de grande fôlego: em A
noite da espera, o primeiro título da trilogia “O lugar mais sombrio”, de
Milton Hatoum, o leitor encontra a conturbada relação entre pai e filho,
embalada aqui num cenário de conflito possessivo e autoritário; e em Pai, pai, de João Silvério Trevisan, uma espécie de acerto de contas de um filho para com o pai, advindo este,
novamente, de uma relação tumultuosa entre os dois. A diferença do romance de
Kucinscki são os elementos motivadores do conflito, porque a componente que
dialoga com a ideia de representação sobre um tempo e uma geração também é aqui
prefigurado.
Cineasta de
renome, o narrador de Pretérito
imperfeito, recebe à distância a notícia sobre a adoção de uma criança.
Entre o processo de se adaptar à ideia de um filho e os cuidados intensivos
exigidos para garantir a sobrevivência do menino, desenvolve-se um afeto de
posse comum a muitos pais, através do qual se vislumbra todo um universo outro
de possibilidades para quem, sem a chance da adoção, jamais teria como
realizá-las. Não é preciso dizer que todo horizonte de expectativas forjado pelos pais não se concretiza para encontrar um dos motivadores que gestam o conflito
entre pai e filho. Conflito que, é preciso sublinhar, nunca é desabrochado de
um todo, como nos romances de Milton Hatoum e João Silvério Trevisan, mas
sempre em vias de desde quando este pai decide escrever ao filho sobre a
ruptura da relação entre os dois. A bolha se forma por um longo período de
perniciosa conivência com os estados perturbados do filho, sempre justificados
pelas teorias da psicologia e da psicanálise.
Pretérito imperfeito é, aliás, um romance
que ensaia explicações para essa atitude dos pais de, sem-querer, compactuar com
as atitudes dos gestos dos filhos que estão fora dos limites sociais estabelecidos.
É nesse sentido que se demonstra uma denúncia – ou talvez não isso, mas uma
tentativa de compreensão – acerca dessa geração advinda de um modelo social marcado
pela repressão, pelo proibido e pelas limitações que se permite tentar não
oferecer aos filhos as mesmas condições porque passou. Isto é, novamente
estamos diante de mais uma sequela deixada pelas raízes venenosas da ditadura
militar que se infiltram silenciosamente mesmo nas vidas individuais de uma sociedade
atravessada por esse trauma e que não percebem ao certo como produtos desse passado. Nesse sentido o pretérito imperfeito parece se assumir como o tempo ideal da história, já que tudo o que é anterior ao nosso tempo é produto das reverberações de tempo anterior.
Durante toda a narrativa o leitor estará em contato com um pai que se debate, logo é um impotente,
porque não sabe como administrar a educação do filho; ainda neste tom de resposta
ao modelo social que aí está, há outro – e este é, sim, o de denúncia: o do fracasso dos modelos de educar que de uma para outra substituíram o lugar
inexistente da criança pelo da figura igualmente capaz de decidir alguns gestos
de sua vida. Notemos: um grupo de pais saído de um extenso período de repressão
para um contexto de extenso liberalismo (mesmo ainda com todas as limitações)
que tenta conciliar o limite com a liberdade sem que nenhum dos dois polos
interfiram gravemente na vida dos filhos. Há saídas harmoniosas para tanto? Não há. E neste romance, a saída se
oferece por uma terceira prisão: a nova sociedade terá encontrado nos seus
paraísos artificiais uma maneira de afrontar os modelos preestabelecidos.
É
fundamental sublinhar a cegueira dos pais, estes que, no atual contexto existem em só
sublinhar os talentos de suas crias, mesmo que estes sequer existam, e a ignorância
total sobre seus limites e defeitos, além da criação de um espírito vazio de competição que realinham vidas entre melhores e piores: “Os outros falam de seus filhos – e nos calamos.
Como são inteligentes – e nos calamos. Como são estudiosos – e nos calamos. Como
são talentosos – e nos calamos. E nos calamos, nos calamos, nos calamos. Por um
longo tempo, nos calamos. Para que estigmatizá-lo? Ninguém precisa saber. Isso vai
passar”.
Por que são
modelos preestabelecidos? Referimos a ditadura militar porque é o modelo de
repressão que antecede o contexto de Pretérito
imperfeito, mas os ventos do poder cerceador são constantes desde quando o
homem se compreendeu capaz de regular o outro; e, contemporaneamente, as regulações
são dadas também por outros valores, os de consumo, por exemplo, impostos por esse mesmo modelo social de competição; também este classifica
uns contra os outros por aquilo que têm. Nesse sentido, as explicações oferecidas
pelo narrador que irrompem vez ou outra na narrativa em tom de ensaísta ou de quem
reflete sobre suas atitudes para com o filho sempre apontam para dizer que tudo
o que hoje denuncia-se como produto do nosso tempo são repetições melhoradas ou
pioradas do que já aconteceu. Repetições capitalizadas, pode-se dizer. O caso
das drogas, por exemplo, ou da rebeldia adolescente sempre existiu; assim como
sempre existiu nossa incapacidade de administrar o que foge do padrão
idealizado. Mas hoje é possível acessar pela compra essa administração. Os cursos,
o relógio, o computador, a moto, as viagens – eis alguns dos exemplos de compra
do narrador para suplantar a condição do filho.
Mas, tudo
não se encerra aqui. Há outras questões que se apresentam neste romance; citemos
duas outras principais: os impasses da adoção (aqui ficará para o leitor a
sensação de que este pai nunca conseguiu construir efetivamente os laços familiares com este
filho por uma série diversa de fatores, quais sejam o de não reconhecer nas feições
dele as feições idealizadas pelo casal, ou mesmo certo preconceito em praticamente
dar a vida a um ser que estava para todo o sempre condenado a perecer); e o racismo
(este menino é desde criança tratado por olhares atravessados como “bandido”,
“mulato sem-vergonha”, ladrão, “negro retinto com olhos sanguinolentos de
bêbado”).
Combinando o
coletivo ao individual, essas questões são oferecidas ao leitor através da
tentativa do narrador em compreender seu gesto de deserção – se o é – e também
as transformações de um sujeito como se buscasse uma fotografia capaz de
responder às perguntas quem era aquela frágil criança que passou ao seu
convívio e no que ela se transformou depois de adulta. Essa outra linha de
leitura possibilitada pelo texto encontra traços não apenas na profissão desse
narrador – quem, aliás, imprime uma objetividade imagética ao discurso narrativo – e no
próprio gesto repetitivo de contemplação e leitura das fotografias que encontra
sobre o filho.
Não apenas a
voz e o olhar incógnito do narrador são a dominante de Pretérito imperfeito. Vez ou outra, ao texto são enxertadas falas
da mãe que oferecem uma contraposição às primeiras inquietudes do pai e sobre a
atitude dele de tardia recusa do filho. Para
alguns poderá parecer muito seca a maneira como esse narrador observa a crise
de sua relação, entretanto, é a maneira mais sutil encontrada por um escritor
interessado em abrir um debate muito caro para a geração que aí está: fazemos o
que fazemos realmente pensando na formação de nossos filhos para o mundo ou
apenas maquilamos a realidade para eles porque imprimimos repetidamente a
imagem da frágil criança capaz de não sobreviver a essa realidade e a potenciamos
ao melindre e à impossibilidade de agir por si sem desconsiderar o lugar do outro,
incluindo o nosso próprio lugar de pais num futuro?
Comentários