Por que somos obrigados a ler um pesado romance como Moby Dick?
Por Kiko Amat
Moby Dick é “um dos livros fundamentais
da história da literatura universal”, segundo o Wikipedia e muitas pessoas, em
sua maioria professores universitários. Foi publicado em 1851, e apesar de
representar um grande fracasso comercial para Herman Melville, também o consagrou
(com os anos) como um dos pais do romance moderno (em sua modalidade acadêmico-impenetrável).
Melville foi pioneiro de várias coisas, como inventar o penteado Hipster ou encher seus escritos com
alusões literárias até o ponto de se reduzi-los à lama. Melville, na época,
naufragou do mesmo modo que este romance, assim talvez não seja necessário colocar-lhe o pé no pescoço. O pobre homem terminou seus dias esquecido, obsoleto, gritando
com os que lhe serviam, protestando em conferências, brigado com Hawthorne e,
pior de tudo, escrevendo poesia. Seu legado não passaria disso até que seu corpo
começasse a se converter em fertilizante para uma extensa legião de discípulos post mortem, ainda mais pomposos que ele
mas igualmente incontinentes, resgatar a sua obra do esquecimento.
Mas ninguém
deixará de admitir que Moby Dick é um
grande romance, do mesmo modo que o Titanic era um grande barco. É certamente
esmagador, como uma montanha tibetana que não estamos seguros de poder conquistar
sem que pareçam sepultados a metade dos sherpas.
Moby Dick é o castelo escocês, envolto em ameias redundantes e repleto
de correntes de ar, cujo volume é possível admirar por um segundo entre a neblina
mas que jamais mudaria você. Tudo nele é desmesurado, indisposto e incômodo.
Possui a gravidade irrespirável de um planeta hostil. Moby Dick não é um livro sonífero, isto é verdade, apenas porque é
demasiado irritante. Lê-lo é como escutar um discurso de Fidel Castro, se o
líder cubano tivesse sido maldito com um estridente apito: um tom que você
detesta, com gritos entredentes e que durante oito horas impede que você possa
sequer ter um breve pequeno sono.
O romance começa
com mais de oitenta referências, o que já nos alerta da incapacidade patológica
de Melville para a concisão. Deixando de lado minha teoria sobre as más citações,
o pior do romance (as citações buscam compensar a ruindade do que vem pela
frente) está em, antes de tudo, tratar o leitor como um ruim da memória e sem
antes de nos ser apresentados. Melville confia tão pouco em nosso coeficiente
intelectual que logo na primeira referência nos coloca diante de uma descrição
oferecida pelo dicionário sobre a palavra baleia. Sua ação se assemelha à de um comediante
que nos descreve com grande detalhe a composição química do metano antes de contar
uma piada sobre peidos. Destrói o propósito inicial e nos arranca o gosto de
ler, antes inclusive de terminar a primeira página.
Moby Dick é extenso. Muito extenso. Criminalmente
extenso. Já terão comprovado isso pela lista de machucados que tomam uma
livrada com ele. Coloque-o de perfil e observe sem medo o monstro: as edições comumente
têm mais de seis centenas de páginas, sem incluir o traiçoeiro epílogo de uma
página que ainda é preciso atravessar depois de tudo (Melville considerou
que ainda ficava algo por dizer; estou convencido que escreveu o epílogo no
vagão de um bonde à caminho da gráfica). Mas a quantidade de resmas de papel
utilizadas não é um obstáculo para finalizar um romance. Li calhamaços que
passaram num suspiro. O Papillon, de
Henri Charrière tem mais que a quantidade de páginas do livro de Melville,
quase duas centenas a mais, mas ninguém se dá conta e consegue chegar ao fim. Moby Dick não. Em Moby Dick cada página dói, como o movimento de um pêndulo que nos
persegue, tique-taque, tique-taque no nosso encalço.
Uma das
razões dessa leitura cansativa é, sem dúvida, a digressão. Alguns mal-intencionados
críticos ingleses chamam Jonathan Coe o “rei da digressão”, mas eu garanto que,
ao lado Melville, Coe não é o rei, nem sequer o príncipe; é um mero zelador de
banheiro. Ninguém sabe o que emaranhar-se pelas malditas ramificações até ler Moby Dick. Melville se encafua em
reminiscências quilométricas sem o mínimo interesse de voltar, um pouco com o
vovô Simpson. O autor, ao que parece, padecia dessa rara disfunção do lóbulo
frontal pela qual tudo lembra alguma coisa; cada objeto é um símbolo de outra coisa.
Um símbolo, por sua vez, que resulta assaz obscuro para o leitor moderno. “Essa
lâmpada o fez pensar no anzol do vovô. Foi moldado como uma funda do tipo que
utilizavam no império Trebisonda” (invento essa frase para ilustrar a
situação). Deus do céu! Moderniza-te, Melville! O teu arcaico murmurar
resultará intraduzível para a gente do futuro.
Para maior
perversidade, o autor coloca suas fugas e rememorações senis nos momentos mais
inoportunos. Um exemplo entre muitos: depois do capítulo XLI, “Moby Dick”, um
dos mais memoráveis e apaixonados, vem o XLII, “A brancura da baleia”. Nele, e
ao longo de dez páginas, Melville começa a meditar extensamente sobre a brancura
como um conceito, aventura hipóteses cansativas sobre “o senhorio ideal” do homem
branco sobre “todas as tribos negras” e lista, durante quatro páginas cheias de
palavras de ponta a ponta, todas as coisas brancas que lhe vem na imaginação,
tanto as de índole positiva (corcéis brancos, albatroz, mármores e pérola) como as repulsivas ou perigosas (homens albinos, tubarões brancos etc.). É como estar
preso num elevador com Rain Man.
Exasperante,
embora a intenção fosse boa. Para começar, ao contrário de muitos escritores
atuais que vêm da linhagem universidade-jornalismo-literatura-morte, Melville
havia vivido muito e tinha mais batalhas consigo que um velho lobo do mar. Era
um velho lobo do mar, de fato. O típico velho tatuado de camiseta imperial que
toca acordeão numa tasca portuária, tem habitantes na barba e entretém os
bêbados com enroladas conversas sobre krakens, sereias ou atuns falantes.
Sua condição
de enrolador, inseparável da condição de baleeiro aposentado, vinha marcado por
essa paixão didática tão típica do século XIX. Sim: Melville queria a escolarização
universal. Desejava ensinar-nos mesmo que fôssemos hostis, como um mestre antiquado
numa escola de povoado. À metade de uma trepidante cena de caça que é só
arpões, sangue e blasfêmias navais, Melville se vê impulsionado a puxar um
ponto e na parte mais inconveniente da história continuar com reflexões: “Uma
palavra ou duas sobre este assunto da pele ou gordura da baleia. Já foi dito
que se arranca grandes partes...” O leitor impaciente já terá percebido que, no
caso de Melville, essas palavras são como o grito que avisa a chegada dos
vikings: um sinal para que abandonemos toda esperança de continuar com a
aventura e nos prepararmos para quatro páginas de antropologia, deontologia,
etnografia e história da pesca desde que o primeiro homem de Neandertal
atravessou por acaso uma truta num lago.
“A alusão
aos mercados e clubes de pesca no último capítulo”, avisa, deixando de lado o acordeão
e olhando para o infinito enquanto alisa a barba, e pouco mais adiante, “obriga
alguma explicação sobre as leis e regras da pescaria de baleias”. Quase é
possível ouvir o suspiro de frustração dos alunos, que vêm algo como a hora do
recreio substituída por uma prova final de matemática. Melville, salta aos
olhos, não cessará até que saibamos de memória a legislação da Comissão Baleeira
Internacional. Um capítulo inteiro, o intitulado “Cetologia” – nem sequer trata
de dissimular sua condição de tratado com um par de diálogos ou a aparição de
algum grumete com mutilação pitoresca. Não: é só ensaio. Com muitas cifras. Moby Dick é o coitus interruptus mais prolongado da literatura.
E não só isso,
é o desperdício criminoso de uma das melhores personagens de ficção de
todos os tempos. Falo do capitão Ahab. Aqueles que não leram Moby Dick talvez assumam, pelo peso que
o nome Ahab carrega na cultura universal, por sua qualidade de arquétipo e ícone,
e por sua aparição num inesquecível capítulo do Futurama, que o capitão louco passeia por mais páginas que o resto das
personagens. Por puro senso comum. Se eu fosse o escritor de Moby Dick me asseguraria de que esse
fulano que, com olhos de oráculo, esculpe coisas como “Desviar-me? Não podes
desviar-me, a menos que te desvie. Tens diante de ti um homem. [...] Desviar-me? O caminho do meu único propósito está assentado em trilhos de ferro, sob os quais minha alma está presa. Sobre os desfiladeiros sem fundo, através do coração perfurado das montanhas, sob o manto dos temporais, avanço sem desvios! Nada é obstáculo, nada é cotovelo para a estrada de ferro!” Assegurar-me-ia,
como dizia, de que alguém com essa boquinha aparecesse todo tempo.
Melville, ao
contrário, se ocupa de impedir que Ahab apareça mais, como um diretor da velha
Hollywood, sabotando um ator comunista da lista negra. Imaginem que Jesus no
Novo Testamento só realizasse uma pequena participação até o final do texto, como
vendedor de burros ou como transportador de bacias? Essa é política de Melville no
tocante a Ahab. Esse que, quando aparece, solta as melhores frases. Mas
Melville deve ter por ele ojeriza, porque quase não pode esperar cortar seus formidáveis
solilóquios dementes para permitir a entrada de alguma personagem secundária:
Stubb. Flask. Starbuck. Pip. Ismael. Tashtego. Quiqueg. Inclusive o “terceiro
marinheiro de Nabtucket”, quem – como podem observar – é tão menor que Melville
nem sequer se preocupa em mencionar o nome. Todos falam, bebem ou expulsam ventosidades no
preciso momento em que seu patrão abre a boca. Todos interrompem o capitão com
plúmbeas observações náuticas ou pequenas lembranças domésticas. Pelo amor de
Deus, há momentos em que inclusive Moby Dick, que por sua condição de baleia só
emite bufadas indecifráveis, parece ter mais linhas de diálogos que Ahab.
E já que falamos
em cachalotes... Em honra ou em justiça, talvez o romance deveria se chamar 100 000 cachalotes anônimas (e um pouco de
Moby Dick). Pois o livro está repleto de cetáceos sem caráter nem características
diferenciais, que aparecem às centenas para serem acertados por arpões enquanto
Moby Dick, o mesmíssimo Leviatã, é mais difícil de ver que J. D. Salinger depois
de sua mudança para Cornish. Alguém pode chegar a entender que, como em Alien: o oitavo passageiro, se mantenha
o monstro na semipenumbra para potencializar a intriga, mas Melville leva o
sistema a um extremo demente. É difícil imaginar uma versão de Caninos brancos povoada quase exclusivamente por cães pequenezes e chihuahuas,
e no lugar do majestoso semilobo que dá título ao romance só aparecesse o focinho nas
últimas páginas, e só por aparecer. Moby
Dick é como um Das Boot com os
submarinos em dique seco até os últimos dez minutos ou um Harry Potter que decidiu
ficar em casa de seus familiares muggles
e não se matricular em Hogwarts até o oito livro.
Você se
perguntará, depois de tudo o que foi exposto, por que alguém quereria ler Moby Dick do início ao fim, detendo-se
em todas as partes exasperantes, notas de rodapé e mortíferas digressões. Moby Dick não aturde, nocauteia. Induz ao
coma. Até à página duzentas o leitor já tem notado um tumor à sua frente do tamanho
de um melão. Essa mistura de coisas em forma de romance é impossível de cruzar,
sem perder a saúde e a razão, talvez mesmo as duas córneas.
Talvez seja chegada
a hora de admitirmos que alguns romances estão ultrapassados até a quase completa
ilegibilidade. Depois de tudo, não tentamos voar no torneio aéreo que Leonardo
da Vinci projetou em 1488. Algo assim seria um disparate. Limitamo-nos a esfregar o queixo enquanto admiramos, meio céticos, os planos originais. A mesma perspectiva
pode se aplicar ao romance de Melville: tão admirável e avançado em seu tempo como
superado e hermético nos dias de hoje.
* Este texto é uma tradução de “Por qué estamos obligados a leer un
tostón como ‘Moby Dick’?” publicado no El País.
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