Os melhores de 2017: prosa
– Pretérito imperfeito, de Bernardo
Kucinski.
As ações neste
romance, embora estejam situadas num passado qualquer do narrador, se apresentam
como uma sombra sobre o presente da rememoração e em estágio de se concluir,
porque afinal, a atitude central desse narrador, a de renegar o filho adotivo, só se concretiza à distância e através da escrita. E não adianta o leitor
procurar por trás ou no texto o acontecido. Para alguns poderá parecer muito
seca a maneira como esse narrador observa a crise de sua relação com o filho,
entretanto, é a maneira mais sutil encontrada por um escritor interessado em
abrir um debate muito caro para a geração que aí está: fazemos o que fazemos
realmente pensando na formação de nossos filhos para o mundo ou apenas maquilamos
a realidade para eles porque imprimimos repetidamente a imagem da frágil
criança capaz de não sobreviver a essa realidade e a potenciamos ao melindre e
à impossibilidade de agir por si sem desconsiderar o lugar do outro, incluindo
o nosso próprio lugar de pais num futuro? Leia mais aqui.
– Arco de virar réu, de Antonio Cestaro.
“Você vive
dentro de sua cabeça. Você não vive no mundo”. A afirmativa do narrador deste
romance contradiz sua própria percepção de sujeito: antropólogo, uma de suas
preocupações reside na compreensão da estreita relação entre indivíduo e grupo.
É preciso pontuar esses dois extremos da narrativa no intuito de compreender o contraditório
enquanto elo enformante e estruturante da obra e esta perspectiva é igualmente
elementar na própria condição enquanto sujeito idiossincrático e parte de uma
organização comunitária. O entendimento acerca deste trânsito é fundamental
para afirmar esta obra de Antonio Cestaro entre os melhores da literatura
brasileira recente. Leia mais aqui.
– Noite dentro da noite, de Joca Reiners
Terron.
Este talvez
seja um dos livros mais ousados publicados neste ano no âmbito da literatura brasileira. Terron aventura-se, mas
constrói uma narrativa sinuosa que desestabiliza as zonas fronteiriças entre o
conteúdo ficcional e o biográfico sem cair no epíteto gratuito e recorrente contemporaneamente
da autobiografia, propondo um texto de força criativa que alia o fato
individual e o histórico coletivo como se elementos de um todo que respondem pela existência do próprio fazer romanesco.
– A noite da espera, de Milton Hatoum.
Esta obra chega num momento extremamente oportuno, porque vimos perigosamente nos tornando marcado pelo
embrutecimento dos espíritos, pela cegueira moral, pelo despautério para com o
ideal coletivo; um momento de, quem diria, ressurreição do fascismo e das
vozes que propõem a redução das liberdades individuais em favor de uma ordem
sectária. Sem querer datar, mas querendo sublinhar, é uma obra indispensável
aos brasileiros, que demonstra que entre o regozijo de poucos prevaleceu o
drama de muitos, e não foi questão de simplesmente desenvolver simpatia com os
modelos de dominação: a história está cheia de exemplos dos que se sentiam felizes
com os do poder e foram, de uma hora para outra, julgados com o mesmo peso da
ignorância com que estavam acostumados a bater. Não é que agora, o escritor
tenha assumido uma verve de pessimista, mas o destino que fomos obrigados a
seguir não nos pede nenhum otimismo. E a única saída possível está nessa
direção do desencanto. O positivismo não produz nada senão a plastificada
sensação de que a aridez é exuberante. Sabiamente, Milton Hatoum, nos propõe,
pela angústia da perda e do exílio, transformar o nó na garganta que se forma
desse drama em força para superar a resignação. Eis um romance de resistência. Leia mais aqui.
– Biografia voluntária dos amantes, de
João Tordo.
Este é
um romance sobre desencontros e solidões. Noutra margem, é ainda uma narrativa
sobre a compreensão de que enquanto impossibilidade o amor confunde-se com a
tarefa de ser força motriz da própria existência. Em sua pulsão, ele é a prova
de que ainda estamos vivos. Isso porque nenhuma existência se faz da pura
realidade, nem a pura realidade se sustenta sem a mentira. Apenas uns lidam
melhor com isso enquanto outros sucumbem. A vida ensina, mas uma amostra está
neste romance. Leia mais aqui.
– Laços, de Domenico Starnone.
É possível
que se cumpra um círculo e já agora estejamos a voltar ao ponto onde circulava
pelo Brasil uma quantidade diversa de obras da literatura italiana e é possível
que esse retorno se dê motivado por uma febre de proporções mundiais e que nos
acertou em cheio: Elena Ferrante. Mas, vivemos desde 2016 uma intensa visita de escritores
do país de Dante. Uma dessas boas descobertas foi Domenico Starnone. Não
há nada de novo aqui – como não há em Ferrante. Mas isso é somente uma
impressão. Aqui, por exemplo, o escritor investe numa leitura acerca dos vínculos
familiares e sobre o casamento, esta instituição que mesmo esfacelada ainda
respira sem ajuda de aparelhos. Entre o trauma da traição e os anseios pela
retomada do relacionamento, Starnone diz muito sobre nossas relações na atual
sociedade.
– Em teu ventre, de José Luís Peixoto.
A maneira
como este romance está estruturado é um efeito à parte. Seu valor criativo
reside no cruzamento entre linguagens, sempre um dialogismo entre a fala
simples, popular, rural, perdida num tempo não datado e a erudita, mas não
rebuscada, urbana e contemporânea do escritor. Esta tecelagem é o que melhor
enovela o leitor por esses acontecimentos vistos com os olhos distanciados, mas
não distantes, e marcado, no mesmo instante das infiltrações poéticas, por um
real maravilhoso. É essa tonalidade capaz de servir a
compreensão fabuladora da literatura e um bocado escassa nas criações
desse tempo. É essa interseção de tonalidades as que fazem de Em teu ventre servir às opiniões
diversas sobre os fenômenos de Fátima sem recorrer ao cansado debate entre fé e
ciência. Leia mais aqui.
– O espírito da ficção científica, de
Roberto Bolaño.
A própria
ficção científica sempre designada como um gênero menor ou o poeta como figura
marginal se oferecem aqui como exemplos de forças desestabilizadoras,
entretanto, fundamentais para os lugares de ressignificação da literatura.
Ignorá-los como uma horda é se valer do mesmo princípio grosseiro que o
consumismo faz da literatura como um todo. Isso parece sair da boca de um jovem
escritor, que mesmo invisível aos olhos dos já-consagrados sabia do seu projeto
literário e do compromisso de renovação estética que sempre se cobra do
escritor. É um Roberto Bolaño em formação, mas muito ciente de sua condição.
Por isso, dizer que nO espírito da ficção
científica estão as bases para a obra do escritor chileno. E isso não
faz desse romance nenhum pouco menor. Leia mais aqui.
– Assina na terra como embaixo da terra,
de Ana Paula Maia.
O projeto
literário da escritora se assume no âmbito das criações contemporâneas como um
dos mais inovadores e audaciosos; sua escrita escamoteia para fora de todas as
ordens forçadas pela crítica em definir um tipo de escritura dos sexos. Neste
romance, ela forja um cenário praticamente à parte do universo social comum
– uma colônia penal da qual é impossível a fuga dos seus detentos. De prisão o
lugar se torna em campo de tortura e extermínio. Associa-se aqui uma dimensão
passada, presente e distópica porque se cruzam a matança de escravos no período
escravocrata, a violência contemporânea e o futuro no qual se desenha ainda
mais o cerco contra aqueles que o sistema capitalista faz questão de varrer
para suas margens. Um livro que nos coloca com a crueldade, parte maior que nos define.
– O reflexo perdido e outros contos
insensatos, de E. T. A. Hoffmann.
O autor é um clássico da literatura universal. E nesta
antologia estão contos de três coletâneas distintas: este que nomeia parte do
título da obra, juntamente com “Jacques Callot”, “Cavaleiro Gluck. Uma
lembrança do ano de 1809”, “Kreisleriana” estão em Quadros fantásticos à maneira de Callot. Diário de um viajante
entusiasta. O livro, que ficou como o mais conhecido de Hoffmann no âmbito
do conto, se constrói num claro exercício de intertextualidade exoliterária, ao
envolver a criação verbal a partir do traço gráfico. Jacques Callot foi um
gravurista cuja obra se marcou pelo talento da criação imaginativa de imagens
marcadas pela força do estranhamento. Hoffmann destila sua simpatia e admiração
pelo trabalho do francês, cuja obra é denominada por ele como “fantástica” e
dotadas de figuras “criadas pelos elementos mais heterogêneos” e capazes de
ganharem vida “a princípio quase irreconhecíveis, depois se aproximam e saltam
brilhando nítidas e naturais para o primeiro plano”. Em parte, o autor assim
explica o que este texto disse no parágrafo anterior: as criações de Hoffmann,
sobretudo nos contos extraídos desse livro, têm esse mesmo semblante. De Contos noturnos, Maria Aparecida Barbosa
escolheu “O Homem-Areia”. E, de Os
irmãos Serapião os contos “O anacoreta Serapião”, “As minas da Falun”,
“O Conselheiro Krespel ou O violino de Cremona” e o famoso “O Quebra-Nozes e o
Rei dos Camundongos”, texto que inspirou o balé O Quebra-Nozes, de Tchaikovsky. Portanto, eis uma coleção de
histórias indispensáveis no repertório literário de qualquer leitor. Leia mais aqui.
– A descoberta da escrita, de Karl Ove Knausgård.
Desde quando
começou a ser publicado no Brasil, “Minha Luta” apresenta a cada ano um volume
indispensável de ser colocado nas listas de melhores leituras do ano. Neste
ano, parte da obra que coloca o leitor em contato a como o escritor norueguês
desenvolveu seu encontro com a palavra e com a possibilidade de fazer dela seu
exercício de labor; em A descoberta da escrita
as recordações recaem sobre os anos do curso de escrita e da faculdade de
Letras em Bergen, da incursão pelas vários gêneros de escrita (a poesia, a
prosa, a letra de música) – aí estão as frustrações com os descaminhos da escrita
e o contínuo traço de aprendizagem de Knausgård com a insistente insegurança e tentativa
de agradar com tudo e a todos. Das
partes desse extenso itinerário que se aproxima da possibilidade de oferecer um
retrato seu para o mundo, compreendendo o trânsito da vida enquanto contínua construção
individual assinalada pelas nossas ações, esta, sem dúvidas, é a melhor –
sobretudo por nos colocar ante uma consciência que desde cedo estimava a seriedade
e a competência com a criação literária. Leia mais aqui.
– O céu de Lima, de Juan Gómez Bárcena.
É a primeira
obra do escritor espanhol apresentada no Brasil. Gómez Bárcena engendra um
romance situado no limiar: está entre a comédia, com forte coloração e tons de
trágico e recobra um retrato vivaz da história, da sociedade, da cultura e do
fazer do literário de maneira despretensiosa e agradável. Firma-se numa linha
sobre a qual todos nós, estudiosos ou não da literatura, sempre gostamos de
tratar formal ou informalmente: a vida e as situações dos criadores, em parte
tomados como figuras de alta envergadura, semideuses, mas, na verdade, humanos
como qualquer um de nós e suscetíveis aos mesmos fados. Afinal, diferentemente
do amor, uma construção de tinta e papel, a curiosidade é imanência do homem
desde o mito da criação. Ou não foi ela a que simultaneamente nos colocou numa
saída simultaneamente salvadora e condenatória?
Leia mais aqui.
– O homem sem doença, de Arnon Grunberg.
Tudo neste
romance é arbitrário. Nada que faça ou diga é possível de oferecer alguma
garantia. Por mais que grite, que se explique, ninguém ouve a Sam. É o homem
sozinho, preso num pesadelo, e do qual, não é capaz de fugir e se fugir não há
saídas. Entretanto, nada nesta narrativa é gratuito. O impasse que lhe prende
justifica-se pelas suas ações e os indícios dos acusadores só ganham ampla proporção
quando lhe é dada a oportunidade de se explicar. Mas, como se defender do
invisível, da acusação sobre a qual não se tem acesso? Há toda uma sorte de
leis que apagam o diálogo e toldam a possibilidade de uma resposta honesta. No
absurdo e no arbitrário não há espaço para a contrariedade. Talvez resignar-se.
No entanto, a ambição, tornada obsessão, dessa personagem é tamanha que não lhe
sobram brechas pelas quais se possa aventar seu fracasso – ainda que o que
leitor encontre seja apenas o fracasso. É este um livro sem retoques, capaz de
despertar nos leitores os sentimentos mais contraditórios. Sim, o
contraditório, o arbitrário e o irracional não são casualidades; eles
participam ativamente das nossas vidas. Nós que não percebemos ou ousamos nos fiar
na certeza das coisas. Leia mais aqui.
– Jamais o fogo nunca, de Diamela Eltit.
Este é um
romance, que tal como o do Milton Hatoum, muito necessário nestes tempos sombrios de exaltação do monstro da
ditadura. Trata-se da primeira obra da escritora chilena; o título é retirado
de um poema de César Vallejo. Narrado em primeira pessoa por uma mulher que
sobreviveu à luta política do regime militar no seu país natal, o teor da narrativa é
de alta dor e indignação; a narradora perdeu um filho e carrega consigo os
traumas da prisão. O livro foi publicado no Brasil em 2017 com tradução e prefácio
do escritor brasileiro Julián Fuks e eleito pelo suplemento Babelia, do jornal
espanhol El País, um dos 25 melhores
romances em língua espanhola dos últimos 25 anos – não é gratuita sua inserção
nessa pequena lista de melhores do ano.
– História da menina perdida, de Elena Ferrante.
O livro é a quarta e última parte do romance napolitano, obra que favoreceu o reconhecimento mundial da escritora italiana. Aqui conflui um desfecho para a vida das duas personagens desse Bildunsgroman contemporâneo: Lena e Lila. A história dessas protagonistas reanima a compreensão de que, nossos esforços contribuem de alguma maneira para o passo por pequeno que seja para a humanidade, a menina que num pequeno descuido desapareceu sem deixar rastros mas é um espectro recorrente do qual não devemos nunca nos afastar. Para isso, não é desacreditando de todo pessimismo inerente à existência, porque afinal, bem sabemos que a nossa história é marcadamente determinada pela falha trágica, da qual se é possível escapar. Tanto é, que Lena, depois de muito acomodada a uma condição anos-luz melhor que a de seu passado e dos que ela deixou, precisará retornar às mesmas origens para garantir outra impulsão de existir. Se por um lado isso recobra a ideia da experiência fundamental ao narrador por outro reafirma a necessidade de não nos desvincar das condições que nos cobram intervir. Leia mais aqui.
– Manual da faxineira, de Lucia Berlin.
A escritora estadunidense que passou escandalosamente despercebida. Nem mesmo o comum estigma da fama pela beleza surtiu-lhe efeito. Precisou passar mais de década depois da sua morte para que acontecesse sua descoberta. Esta antologia de contos com introdução de Lydia Davis chegou às livrarias de seu país natal em 2015 e logo ganhou o mundo. De sua estreia aos 24 anos nas páginas da revista do escritor Saul Bellow, The Noble Savage, Berlin publicou 77 histórias que apareceram depois em outras revistas e foram reunidas em meia dezena de livros com baixas tiragens. Manual da faxineira é um da mais de quatro dezenas de contos aí reunidas. São textos que revelam a grandiosidade do banal cotidiano.
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Sandra