Literatura e nação
Por Manuel Vilas
Foi no século
XIX quando a literatura descobriu seu poder para a representação social do
presente e o fez através do romance. Essas sociedades das quais se falava nos
romances tinham nome: França, Rússia, Inglaterra, Espanha. O século XIX foi o
século do nacionalismo e foi também o das ficções de largo alento, que se converteram
em espelho das identidades coletivas. Já não fazia falta a força bruta de um
exército, ou a solenidade do Estado, ou a efígie de um rei para contemplar uma nação:
o romance era um reflexo mais moderno, mais sofisticado, mais universal. O romance
compunha nações: a Inglaterra de Charles Dickens, a França de Honoré de Balzac,
a Rússia de Liev Tolstói ou a Espanha de Galdós.
Os romancistas
triunfaram, mas também carregaram nos ombros com os recém estreados fantasmas
das nações. A modernidade aceitava o pacto entre romance e nação e em troca que
o reflexo das sociedades fosse crítico. Mas a relação entre escritor e país já
estava formada. Essa relação, no século XX, acabou tendo toda sorte de desencontros.
Thomas Bernhard morreu odiando um país inteiro: Áustria. Vladimir Nabokov
abandonou a língua russa e a partir de 1938 passou a escrever apenas em inglês.
Depois da Segunda
Guerra Mundial, os escritores fugiram do nacionalismo como da peste, mas eram conscientes
de que iam ser caracterizados em função de sua origem nacional. Ninguém escapava
de seu país, de modo que o Prêmio Nobel de Literatura Albert Camus foi o Prêmio
Nobel de Literatura a um escritor francês; o Prêmio Nobel de Literatura a Juan
Ramón Jiménez, a um poeta no exílio, foi um Prêmio Nobel de Literatura a um escritor
espanhol. A nacionalidade adjetiva sempre a literatura.
Talvez o
primeiro apátrida da modernidade tenha sido Lord Byron, o primeiro que experimentou
a desavença com sua identidade nacional como uma conquista ética e estética. Byron
insultou a Inglaterra, mas a Inglaterra não se sentiu insultada por ele. Pelo contrário,
acabou integrando o insulto byroniano como uma nova forma de ser inglês. Byron foi
o apátrida errante.
A vida
errante se instituía nas letras ocidentais como uma bela forma de desafeto patriótico
e perfilava o mito do que logo se chamou cosmopolitismo, que foi outra grande
invenção, esta pela qual se podia dissimular origens nacionais exóticas. Do cosmopolitismo,
que foi uma utopia parisiense, se passou à “minha pátria é minha língua”, uma
solução que evite o escritor de precisar sofrer com a intoxicação dos Estados e
lançar-se no obscuro assunto da pátria. Ainda houve um remédio quase enternecedor
naqueles escritores que usavam e usam o “minha pátria é minha infância”, que
foi uma descoberta de Rainer Maria Rilke.
Por muito
que Oscar Wilde tenha maldito a Inglaterra, seu destino é estar no quadro de honra
da literatura de língua inglesa. Até a poesia irredutível de Rimbaud sabia que
seu destino era a França. Estados Unidos continua sendo o feudo de Walt
Whitman. E Espanha pertence a Antonio Machado. A identidade nacional necessita
de escritores para existir. Mas os leitores também conseguem articular sua
identidade pessoal quando veem seu país representado literariamente, inclusive
quando sua cidade é satirizada, como a Dublin em Ulysses, de James Joyce.
A representação
negativa de um país, se tem força artística, é válida. Da representação
realista das sociedades desenvolvidas sob o nacionalismo do século XIX, a literatura,
já no século seguinte, sondou zonas simbólicas e movediças, como ocorre em Pedro Páramo, de Juan Rulfo, romance que
representa um retrato distorcido de um ente fantasmático chamado México. Luzes de Bohemia, de Valle-Inclán, contribuiu
para a construção do mito literário da Espanha, que passou da literatura à
política, e que, como vemos hoje, ainda perdura. Insistindo nessa ideia, e já
quase a titulo de perversa ironia, se Espanha perdesse sua identidade histórica,
obras muito críticas com essa identidade, como a de Luis Cernuda ou Juan
Goytisolo, logo se tornariam incompreensíveis. Estou pensando que um livro como
Coto vedado será incompreensível para
um futuro leitor tanto quanto continue existindo a Espanha.
É muito difícil
que um escritor não leve a sociedade e o país que tocou nas páginas de seus
livros. Cem anos de solidão consagrava
uma épica fantasiosa de um país que parecia de mentira, mas que acabou sendo a Colômbia.
Muito sabedor disso foi o próprio García Márquez quando elegeu como vestimenta
de gala na recepção do Prêmio Nobel de Literatura em 1982 o liquelique que
agora se exibe no Museu Nacional da Colômbia.
Hoje em dia
o incômodo persiste e nenhum escritor civilizado quer ver seu nome ao lado de
nenhum tipo de nacionalismo identitário. O apátrida mais fascinante continua
sendo Franz Kafka. A nacionalidade de Kafka é um vazio. Ninguém poderia dizer
que ele fosse alemão, tcheco ou judeu.
Quando
Roberto Bolaño escreveu Os detetives
selvagens formulou uma ideia do poeta latino-americano como apátrida e
pobre. O vagabundeio byroniano se encarnava, em versão low cost, nas personagens do romance de Bolaño, quem em sua própria
vida também alcançou um alto grau de escritor sem pátria, ou escritor de três
pátrias: Chile, México e Espanha. Os poetas mendigos de Bolaño são uma boa metáfora
do desafeto da literatura pela pátria.
* Este texto é uma tradução de "Literatura y nación" publicado no jornal El País.
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