Ao Nobel da música
Por Diego A. Manrique
Do que tem
sido falado sobre Kazuo Ishiguro, sua relação com a música é apresentada apenas
como uma primeira vocação: o rapazinho de Nagasaki exerceu o papel de compositor.
Mas, o fato é que essa face não foi superada. Ainda compõe letras para canções
que são gravadas e vendem.
É possível
entender esse silêncio: em certos ambientes é visto como extravagante que um alguém
da literatura gaste sua energia em assuntos que consideram banais. Nas biografias
de José Manuel Caballero Bonald, prêmio Cervantes de 2012, só se explora o dado
nada comum de que foi discográfico. Isto é, empregado de um estúdio de discos
durante vários anos, responsável pela produção e-ou lançamento de discos, inclusive
diretor de um selo fonográfico chamado Pauta.
Kazuo Ishiguro
não chegou a essas alturas. Preserva-se uma ou outra fotografia sua dos anos
setenta, cabeludo e rodeado de violões. Tinha um posto no serviço social em
Londres e dispunha tempo livre para polir suas canções e atuar em folk clubs. Em 1980, possivelmente,
viajou à Universidade de East Anglia, em Norwich (Inglaterra) para fazer um curso
em escrita criativa e por lá compreendeu que as duas ocupações eram incompatíveis:
“De repente, me vi com uma jaqueta de veludo com manchas nos cotovelos e pensei
que o tipo já não atendia ao de um músico”. Pode sonhar a boutade mas tem lógica se assumimos a importância capital do look no negócio musical britânico.
E o que ficou
da prática da música? Entrevista para a canônica série The art of fiction, da Paris
Review, Ishiguro se confessava discípulo de Bob Dylan e Joni Mitchell. Assegurava
estar fascinado pelo mistério, o território do inexplicável que detectou inicialmente
no repertório de Leonard Cohen.
Kazuo revela
conexões inesperadas: conta que humanizou sua personagem mais célebre –
Stevens, o mordomo de Os vestígios do dia
– depois de ouvir uma balada de Tom Waits, “Ruby’s arms”. Depois de publicada sua
primeira obra ainda estabelecia continuamente paralelismos entre o ofício de romancista
e o de compositor. “Escreves a canção, eleges o arranjo e depois cantas por cima”.
Na verdade, seus
últimos empenhos musicais estão longe dessa autossuficiência. Desde 2007, Ishiguro
compõe letras para a vocalista Stacey Kent, que seu companheiro, o saxofonista
Jim Tomlinson transforma em canções. A música Kent, lançada internacionalmente
pelo selo Blue Note, se insere numa onda meio Bossa Nova, embora essas canções
reflitam viagens por uma Europa fria; Stacey, aponta Ishiguro, sabe dar vida a
personagens de ficção, privilégio dos romancistas.
Stacey Kent
é estadunidense mas gosta especialmente da França, onde não é uma heresia alternar
música com literatura. É verdade. Patrick Modiano, o mais recente Nobel de
Literatura francês começou como Ishiguro escrevendo música e sobre música. Assinou
canções para Françoise Hardy e Régine; até gravou um LP atípico, Fonds de tiroir 1967, em parceria com o
ambicioso Hughes de Courson; sua própria filha, Marie Modiano, acumula quatro
discos com seu nome.
Mas voltemos
a Kazuo Ishiguro. O escritor continua a carreira por prazer; sua casa em
Londres está cheia de instrumentos musicais por toda parte. Poderia protagonizar,
sugiro, um interlúdio musical nos requintados e sisudos rituais do Nobel. Por
muito mal que saísse, sempre ficaria melhor que o seu antecessor, seu adorado
Bob Dylan, aquele senhor que pareceu chateado pelo galardão, talvez porque no
fundo soubesse que era um prêmio que não lhe servia.
* Este texto é uma tradução livre de "Al Nobel por la música", do El País.
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