A melhor maneira de conhecer o ser humano é viajar a Marte (com Ray Bradbury)
Por Pedro Torrijos
Em setembro
de 1949, Ray Bradbury reuniu várias cópias de seus contos, colocou numa mala e pegou
um ônibus com destino a Nova York. Ali se hospedou numa pousada da YMCA por cinquenta
centavos a diária durante cinco dias, enquanto passava o tempo oferecendo sua coleção
de contos às principais editoras do país. Todas recusaram; não queriam
histórias curtas, queriam um romance.
Na penúltima
noite, Bradbury arrumou uma fita que acabaria por se converter em cena com um
editor da Doubleday Publishing chamado, casualmente e sem nenhuma relação,
Walter Bradbury. Doubleday também queria romances, assim, o outro Bradbury
perguntou a Ray se seria capaz de juntar seus contos numa só história e
apresentá-los em formato de um livro completo. “Já que quase todos giram em torno
do mesmo lugar, Marte, poderias chamá-lo de As
crônicas marcianas”. Dois dias depois, e com um cheque de setecentos e cinquenta
dólares no bolso, Ray pegou o mesmo ônibus e voltou para Los Angeles. Nesse trajeto
de três mil milhas foi escrevendo os rascunhos do fio condutor de seu romance,
entre eles, a história do senhor e da senhora K.
Em abril de
1950, Doubleday publicou a primeira edição de As crônicas marcianas. O segundo capítulo é intitulado “Ylla” e começa
assim:
“No planeta
Marte, à mar de um mar morto, havia uma casa com pilastras de cristal, e a cada
manhã era possível ver a senhora K saboreando os frutos dourados que cresciam
das paredes de cristal, ou limpando a casa com punhados de poeira magnética que
se grudava à sujeira e se dispersava depois no vento morno. À tarde, quando o
mar fossilizado ficava quente e imóvel, as videias se enrijeciam no quintal e a
pequena e distante cidade marciana de ossos se fechava toda, sem ninguém porta
afora, era possível ver o próprio senhor K em sua sala, lendo um livro de metal
com hieróglifos em relevo sobre os quais passava a mão, como quem toca uma
harpa. E do livro, à medida que seus dedos o percorriam, cantava uma voz, uma
voz antiga e suave, que contava histórias de quando o mar banhava o litoral com
um vapor vermelho e os homens punham em combate nuvens de inseto de metal e de
aranhas elétricas.”*
Com trinta
anos recém completos, Ray Bradbury via editado seu primeiro livro nas estantes
das livrarias. Era o início de uma carreira que ia se prolongar durante mais de
seis décadas em outros vinte e sete romances e mais de seiscentos contos que colocaria
o escritor de Illions no monte Olimpo dos mais importantes da literatura de ficção
científica e entre os melhores romancistas do século XX. Porque o realmente
importante não é seu nome aparecer pela primeira vez na capa de um livro; era
do seu interior contemplar Marte como nunca havia sido feito. O planeta vermelho
de As crônicas marcianas não era um
lugar ermo e hostil marcado por canais secos; não era o planeta que Galileu
havia visto em seu telescópio em 1610. Tampouco era um planeta feroz, lugar de alienígenas
sanguinários invasores; não era A guerra
dos mundos, de H. G. Wells. Nem sequer era a terra de um antigo império povoado
por reis, princesas e escravos; não era o John
Carter de Marte de Edgar Rice Burroughs, embora, sem dúvida, Ray tivesse
lido.
O Marte de
Bradbury é um lugar diferente mais não incompreensível, habitado por uma civilização
o suficiente parecida com a nossa tanto para poder descrevê-la demasiadamente
diferente como para construí-la em termos convencionais. O Marte de Bradbury é
quase um compêndio da fascinação do ser humano pelo planeta mais próximo da
Terra e, talvez por isso, só pode apresentá-lo com traços líricos:
“Ao amanhecer,
o sol, através das pilastras de cristal, derreteu a névoa que sustentava Ylla
enquanto dormia. Ela tinha ficado flutuando a noite toda sobre o assoalho,
protegida pelo tapete macio de neblina que brotou das paredes quando ela se
deitou para descansar. Dormiu a noite inteira naquele rio silencioso, como um
barco sobre a maré calma. Agora a névoa se dissipava, e o nível de neblina foi
baixando até ela ser depositada no porto do despertar.”
Marte não
era visto com olhos humanos mas sim pelos de seus próprios habitantes quem contam
contemplativos a natureza de seu mundo com o mesmo medo e a mesma suspeita e também
com o mesmo deslumbramento que nós temos pela galáxia, a chegada de uns
estranhos visitantes do terceiro planeta do Sistema Solar. Esse planeta que
deveria estar desabitado porque “seus níveis de oxigênio são muito elevados”. Os
invasores de Bradbury são seres humanos.
De maneira
muito criteriosa, As crônicas marcianas
contam a chegada a Marte dos humanos – estes fogem de uma Terra devastada e inabitável.
Encontram-se com as dificuldades próprias da colonização, trazem o conflito com
os habitantes originais do planeta, trazem armas incompreensíveis para os marcianos,
inaceitáveis, trazem doenças devastadores aos habitantes de marte. Bradbury fixa
as bases da melhor ficção especulativa; essa que, salpicada de puro sentido do
maravilhoso, olha a realidade a partir de um ângulo exótico para assim poder
explorar os recôncavos da condição humana que permaneceriam ocultos se se
tratassem a partir de perspectivas convencionais. Bradbury define um gênero que
viaja a outros mundos para conhecer o homem. Porque o planeta vermelho do
estadunidense não é Nergal, o deus sumério da guerra e da enfermidade, tampouco
é o grego Ares nem o Marte romano. Em As crônicas
marcianas, a guerra é levada por nós mesmos.
Quando a
sonda Mariner 4 enviou as primeiras fotografias orbitais de Marte em 1965, a
humanidade soube logo que o planeta vermelho não tinha rios nem colunas nem marcianos
que escutavam livros tocados como arpas. Era um deserto ocorre, ermo e
inóspito, Mas, essas imagens, junto à euforia do programa lunar Apollo,
plantaram a semente de um sonho que ainda nos toma toda vez que o Curiosity
Rover faz uma self desse mesmo
deserto. Talvez continuará sendo ermo mas não tem por que ser inóspito. Em palavras
que o próprio Ray Bradbury pronunciou quando a Viking 1 pousou em Marte em 1976: “Hoje
chegamos a Marte. Há vida em Marte, e somos nós”.
Ligações a esta post:
* As traduções de citações do livro são de Ana Ban (Biblioteca Azul, 2013). Este texto é uma tradução de "La mejor manera de conocer al ser humano es viajar a Marte (con Ray Bradbury)" editado pelo El País.
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