Sobre Joseph Roth: um kaddish para Áustria
Por W. G. Sebald
E o conde
perguntou ao judeu: “Salomão, que pensas do mundo?”
“Senhor conde”, disse Piniowsky, “já não penso nada de nada”.
Joseph Roth,
O busto do imperador
Em maio de
1913, o jovem Joseph Moses Roth colocou um limpo ponto final no instituto
alemão de Brody à sua infância e juventude nada livres de cuidados, ao terminar
com a qualificação “sub auspiciis imperatoris”, a entrada de sua promoção, os
exames para o bacharelado. Estava a ponto de cair no mundo, passando por
Lemberg e Viena, e me parece que naquele momento virou as costas com pesar para
sua pátria, embora aquilo a que renunciou, ao fazê-lo, se converteu logo para
ele em símbolo de todos os irreparáveis negócios desastrosos que compõem a
existência.
Só em
retrospectiva descobriu a Galícia; colocou no lugar de uma pátria destruída
pela guerra, que com a dissolução do Império havia desaparecido definitivamente
dos mapas, um vasto país nostálgico da Coroa. Roth, que quanto mais o tempo passava
menos conseguia superar essa extinção, recordou num suplemento cultural, em
1929, o momento mítico em que o império dos Habsburgo ruiu “no mar dos
tempos... com todo seu poder armado... tão completamente, tão para sempre como
a infância insignificante, incomparável com o Império, de um súdito”.
Nessa comparação
de um império perdido com a infância perdida se manifesta a relação afetiva característica
do melancólico Roth com as derrotas e perdas sofridas. Se existe uma Terra
Prometida, se encontra muito atrás no passado, porque as palavras “tão completamente,
tão para sempre” que dão o tom emotivo na passagem citada não se referem apenas
ao momento de ruína mas são também o último reflexo do que em outro tempo foi.
Em vez disso, o futuro é um espelho.
É verdade
que Mendel Singer acredita, como se diz em Jó,
“aceitando as palavras de seus filhos, que a América é a terra de Deus, Nova
York a cidade das maravilhas e o inglês a língua mais bonita”; é verdade que se
diz que logo “os homens voarão como pássaros, nadarão como peixes, verão o
futuro como profetas, viverão em paz eterna e, em completa harmonia com os
astros, construirão arranha-céus”, mas não se convence a si mesmo nem convence
ao leitor, porque a paródia está já inscrita na perspectiva utópica. Por isso, dificilmente
pode estranhar que, apenas uma página depois, o par de miseráveis astros e de
múltiplas constelações que Mendel pode perceber acima do reflexo da cidade suscitem
nele a lembrança “das estreladas noites de sua pátria, os profundos azuis do
muito intenso céu, a foice suavemente curva da lua, o escuro sussurro dos
pinheiros do bosque, o canto dos grilos e o coaxar das rãs”.
Tais imagens
lembradas aparecem na obra de Roth reiteradas vezes e quase regularmente vem com
elas a vasta superfície da terra, a Natureza animada ao redor, o homem com
rosto levantado e o manto estrelado do céu. Sua forma específica recorda assim
a poesia hebraica da Natureza, sobre a qual Hermann Cohen disse que “abarca
sempre a totalidade do universo em sua unidade, tanto a vida na terra como os
luminosos espaços celestiais”. Embora, o que na poesia hebraica poderia ser
ainda um reflexo da ordem monoteísta inspira em Roth pela sensação de apátrida
que sopra sobre o campo do exílio.
Para Joseph
Roth, que se criou numa cidade em que os judeus constituíam a grande maioria da
população e que, como recorda David Bronsen, foi chamada por José II a nova
Jerusalém, a experiência do exílio começou com sua chegada de Viena a Nordbahnhof,
com seu quarto subalugado na Leopoldstad e o encontro com estudantes nacionalistas
alemães na universidade.
A Primeira
República, com seu crescente antissemitismo brutal, era um território
extremamente inseguro para um jovem escritor judeu, menos ainda na Berlin dos
anos vinte, quando Roth se mudou; estava muito inclinado a deixar que surgissem
nele sentimentos patrióticos. Em seu extenso ensaio publicado pela primeira vez
em 1927, Judeus errantes, que descreve
o trem para o oeste como um caminho equivocado, se diz que para os de fora “guarda
sua escuridão um gueto menos cruel”, quando “semimortos, conseguiram escapar os
suplícios do campo de concentração”. Corria, como disse, o ano de 1927, e é de
supor que, com o conceito de “campo de concentração”, Roth se referia aos campos
de acolhida e translado que funcionavam totalmente como instalações de ajuda,
nos quais, até o fim dos anos vinte, se alojava os judeus das antigas zonas
austríacas expulsos para o oeste.
Seja o que
for, o que Roth queria expressar com “as humilhações dos campos de concentração”,
o termo vai mais além do que nessa passagem pretende, não só porque o leitor conhece
o ulterior desenvolvimento da história, mas porque poucos previram as coisas
tão claramente e com tanta antecedência como Joseph Roth. Se Berlim permitiu-lhe
ainda a ilusão de poder passar inadvertido como cosmopolita, a cada viagem ao
interior ficava mais claro para si o monstruoso e inabitável que havia se
tornado seu país de acolhida; não em vão costumava cortar seu nome,
convertendo-o na quase inaudível sucessão de letras “Dtschld”, que dá a
impressão de ser uma metáfora da falta de carinho.
Na viagem ao
Harz que realizou em 1931 se detém numa pousada de Halberstadt, e a fim de se camuflar
toma uma cerveja, fuma um cigarro e lê o Amtsanzeiger,
a passagem em que se faz chacota da democracia. “As ideias do jornal”, escreve
Roth, “as tranquilizaram”, isto é, os senhores da mesa ao lado, “sobre as
minhas”. “E um deles pareceu estar tão contente comigo que levantou seu copo
para brindar por mim. Eu correspondi seriamente... e imediatamente tomei a decisão
de fugir dele”. O sarcasmo de Roth não pode esconder que nos olhos do vizinho
vê já a ameaça de morte. Bronsen destaca que Roth, à raiz de suas experiências
em Halbertstadt e Goslar, disse aos seus primos: “Não sabeis o quanto é tarde.
Essas cidades se encontram a cinco minutos do pogrom”.
Muito do que
Roth escreveu nos sete anos seguintes, que foram para ele os mais difíceis e,
ao mesmo tempo, os mais produtivos, esteve dedicado à liberação simbólica de um
mundo sobre o qual sabia estar entregue à destruição. As imagens literárias
deste europeu que Roth nos transmitiu corresponde às fotografias realizadas por
Roman Vishniak imediatamente antes do chamado estopim da guerra nas comunidades
judaicas da Eslovênia e da Polônia. Todas mostram signos do fim e, em sua comovedora
beleza, oferecem talvez a representação mais exata da indiferença moral dos que
então estavam dispostos à aniquilação.
Se disse
repetidas vezes que, na reconstituição literária da pátria, Roth rendeu
homenagem a um ilusionismo não livre de características sentimentalistas. Nada
mais contrário à realidade. Sem dúvida, Roth pode, em artigos que, por um cálculo
puramente político, escreveu para para uma publicação como Der Chrisliche Ständestaat, utilizar os meios de reportagem sensacionalista,
mas seus trabalhos literários, inclusive os melhores conceituados, têm, sem exceção,
uma tendência anti-ilusionista.
Inclusive A marcha Radetzky, que geralmente se considera
como sua mais bonita narrativa, é claramente, como história de uma catástrofe
irreversível, um romance de desilusão. No melhor dos casos, o pai do herói de
Solferino se permite ainda terminar sua vida confiado ao erário; por sua vez, a
visão de mundo aportada pelo próprio herói convertido em nobre se vê abalada
desde sua base pela deformação da sensível verdade, sancionada pelas mais altas
instâncias e para ele totalmente incompreensível, numa história falaciosa
destinada à sua piedosa utilização por estudantes. O chefe do distrito Von
Trotta, que representa a geração seguinte, acredita poder proteger-se das vicissitudes
da vida com um comportamento sumamente ritualizado, e só o desconcerta a infelicidade
cada vez mais visível de seu filho. Este, o pobre Carl Joseph, vai ruindo
paulatinamente em sua guarnição da fronteira, por amor às mulheres, pelos preceitos
do mundo dos homens, pela interação entre rouge
et noir, por nostalgia e pela aguardente de noventa graus, que lhe ajuda a
esquecer tudo. A força motriz da fábula é a graça do soberano, que não pesa
sobre a família dos Trotta como benigna mas quase como uma maldição, como “uma carga
de gelo quente”. Toda essa história é uma dança extremamente macabra.
“Nós já não
vivemos”. Com estas palavras o conde Chojnicki descobre do chefe do distrito o
horrível segredo do passado e, no final da famosa passagem em que Roth faz
desfilar ante nós a procissão de Corpus de Viena, se vê que uma espécie de
função metafísica que simula a vida traiu já foi traída pela ave imperial. Mesmo
assim, tudo é como antes. Passa a infantaria, a artilharia, os bósnios, os cavaleiros
cobertos de dourados e os conselheiros de mechas vermelhas. Segue meio esquadrão
de dragões, e logo aparece, no meio do ressoar de clarins, o rei de Jerusalém e
imperador do reino apostólico, figura principal dessa exibição de poder
legítimo, com sua casaca branca e um grande penacho de penas de papagaio no chapéu,
sobre o qual nos diz Roth, se mexia suavemente ao vento. Para nós, os leitores,
nos passa o mesmo que para o tenente de caçadores Carl Joseph, que presencia o
espetáculo. Deslumbramo-nos com o fulgor da procissão e não ouvimos, como ele, “o
grito sombrio dos abutres... da águia bicéfala dos Habsburgo seus cordiais
inimigos”.
Em geral as
aves... O engenho do narrador se sabe muito próximas a elas. Se escuta um grasnido
débil e rouco no céu quando os gansos selvagens, antes do estopim da guerra,
abandonam antecipadamente sua residência de verão, porque, como disse Chjnicki,
escutam já os disparos. Para não falar dos corvos, os profetas entre os
pássaros, que agora, pousados às centenas nas árvores, anunciam com seus negros
grasnidos a total desgraça.
Começam os
tempos ruins. Logo, “nas praças diante da igreja, nos povoados e aldeias,
soavam os disparos de quem executavam rapidamente as apressadas sentenças... A
guerra do exército austríaco”, comenta o narrador, “começava com os tribunais
de guerra. Dias e mais dias os falsos traidores e os verdadeiros permaneciam pendurados
das árvores... como lição para os vivos”. Pelos seus rostos inchados sabe Trotta
que são vítimas dessa mesma corrupção da lei e da carne que reconhece já em si
próprio há tempo. Não há nada nesse romance, que continuamente vá dissipando
todas as ilusões, que acabe numa transfiguração do reino dos Habsburgo; A marcha de Radetzky é antes uma obra
totalmente agnóstica, cujos sombrios acontecimentos, segundo parece ao tenente
Von Trotta, “eram em sinistra relação entre si, fruto das maquinações de uma
força gigantesca, odiosa, invisível”. Fica aberto a quem se refere a essa
personagem como antinômica. O certo é que, no final da narrativa, quando a fina
chuva incessante que envolve o palácio de Schönbrunn é a mesma que envolve o manicômio de Steinhof,
onde agora está internado o visionário conde Chojnicki, a ordem apostólica e a
pura demência ficam reduzidas a um denominador comum.
Que significa
então para uma consciência sem ilusões, da qual só poderia surgir um romance como
A marcha de Radetzky, o conceito que
na obra de Roth é sem dúvida o que com mais frequência retorna, isto é, o de
pátria? Todas as personagens deste autor anseiam a pátria de uma forma ou de
outra. Algumas vezes, a pátria é “as verdes sombras escuras dos castanheiros do
parque municipal [que] davam no lugar o sossego forte e pesado do verão”, outras
um lugar que um dia se abandona ou, como no caso do artífice profissional
Eibenschütz, o exército que, como nos comunica o narrador, havia sido “segundo
e talvez verdadeiro Nikolsburg”. Pode ser uma casa, como a de Josephine Matzner,
a de onde Mizzi Schinagl se recolheu, sabendo-se superior a todos os homens, ou
o fundo do oceano, para onde se vê arrastado Nissen Piczenik por seu insaciável
amor aos corais.
Para os
judeus errantes, entre os quais se conta o próprio Roth e que, como ele escreve,
têm suas tumbas em toda parte, a pátria não está em nenhum lugar e, por isso, é
a quintessência da utopia pura. Roth a extrapola do absoluto desconsolo da
História e, por meio de diminutas artimanhas artísticas, a utiliza para descrever
precisamente esse desconsolo. Em sua prosa há pequenas variações, intervalos de
semitons e cadências que parecem indicar que, mais além da infelicidade histórica,
que não possível excluí-la, deve haver algo diferente. Roth fez compreensível esse
outro mundo, rodeado de um estranho brilho e resplendor, quando sem fazer a
menor redução de sua crítica realmente desapiedada do comatoso sistema dos
Habsburgo, alegorizou o variegado império ao mesmo tempo, de uma maneira quase casual.
A forma que
toma sua alegoria é a de um mapa da monarquia em que, na imaginação do chefe de
distrito, os distintos países da Coroa aparecem unicamente como “imensas e multicoloridas
antessalas do Palácio Imperial”. O termo “antessalas”, unido à bela multiplicação
de cores, indica que esse mapa não representa o mundo real mas os campos da eternidade,
e que só se abre a visão escatológica, cujo topos mais conhecido é a Jerusalém celestial.
A essa
transposição alegórica se une na obra de Roth outra mais. É a figura do
imperador que, como supõe o jovem Trotta, em algum momento, alguma vez, num
momento muito determinado, envelheceu, “e desde aquele momento parecia permanecer
preso em sua velhice congelada e eterna, prateada e espantosa, como dentro de
uma armadura de cristal...” E logo se diz, nesse mesmo lugar: “Os anos não se
atreviam a atacá-lo. Seus olhos eram cada vez mais duros e mais azuis”. Benjamin
descreveu a função emblemática do cadáver na tragédia barroca. Só com o cadáver,
diz, pode impor-se a alegorização da Physis.
Uma alegorização idêntica temos na transformação ante nós de Franz Joseph num corpo
subtraído do tempo, que só celebra ainda espécie de sobrevivência. Em relação
ao corpo político da monarquia, de muitos membros e muitas cores, corresponde a
esse corpus, reduzido quase à sua substância inorgânica, a condição de uma relíquia
pela qual se exercita a memória. Roth
atribuía a essas relíquias força e eficácia. Por isso, é totalmente consequente
que se lhe ocorresse o plano de talvez salvar a Áustria num último momento, se
se enviava a Viena o sucesso do trono num caixão.
Ligações a esta post:
* Este texto é uma tradução livre de um excerto do ensaio "Ein Kaddisch für Österreich. Über Joseph Roth", de Unheimliche Heimat: Essays zur österreichischen Literatur, de J. G. Sebald.
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