Os diários de Sylvia Plath
Por Rafael Narbona
Sabemos
realmente o que se passava no interior de Sylvia Plath? Neurose, insatisfação
vital, uma profunda melancolia, um agudo sentimento de frustração? Pode-se
separar sua obra literária de sua dor psíquica e seu trágico final? Suas
mudanças de humor se refletem no literário e o que é vital, introduz os
diversos contrastes do drama. Sylvia ansiava a paz interior e os prazeres da
vida intelectual, mas se jogava reiteradas vezes no abismo da angústia e da
insegurança. Sua breve existência se caracterizou por uma oscilação permanente
entre a certeza e a dúvida, a plenitude e o medo, o fervor e o fatalismo. Seus Diários, inicialmente depreciados pelo
seu marido, o poeta Ted Hughes, nos revelam um temperamento místico e
intransigente, uma ambição sem limites e uma frágil autoestima.
Hughes
afirmava que se produzia em sua mente atormentada “um desejo ardente de separar
tudo o que impede uma intensidade definitiva, uma comunhão com o espírito, ou com
a realidade, ou sensivelmente, com a própria intensidade”*. Sylvia não concebia a
poesia como uma simples atividade criadora, mas como um exercício espiritual
orientado a criar um novo eu, livre de imposições. Escrever era seu caminho
particular para a perfeição, onde fazia renascer o que se mostrava para si como
uma nova identidade, mais autêntica. “Sylvia manifestava algo de violento nessa
busca, algo muito primitivo, talvez muito feminino, uma disposição, necessidade
talvez, de sacrificar tudo neste novo nascimento”, escreve Hughes. Tristemente,
a viagem por uma completa renovação interior e criativa incluía sementes
letais. A pulsão autodestrutiva se mostrou logo em seguida nas fantasias suicidas
que acabaram prevalecendo sobre o desejo de viver. Sua escrita não conseguiu
superar os anseios interiores e tudo foi interrompido tragicamente durante o
inverno londrino de 1963, quando decidiu abrir a entrada de gás no seu apartamento,
introduzir-se no forno, depois de colocar os filhos para dormir, e ela própria
dormir profundamente.
O suicídio
de Sylvia Plath imprime a seus Diários um
caráter agônico, mas não mórbido. Em nenhum momento se percebe um fascínio
doentio pela morte e sim um poderoso medo da infelicidade. Sylvia começa a escrevê-los durante o verão de 1950,
enquanto trabalha numa fazenda em Massachusetts. “Talvez eu nunca seja feliz,
mas esta noite estou contente”. Parece uma frase triste e demolidora, quase uma
profecia sombria, mas o parágrafo que a completa constitui uma celebração da vida.
Para a jovem Sylvia, a felicidade consiste num “morno e vago cansaço” depois de
uma extenuante jornada de trabalho plantando estolhos de morangos, “um copo de
leite frio com açúcar e um prato raso de mirtilos coberto com creme”. A felicidade
é uma vida comum, sensível, não uma experiência intelectual. “Agora sei como as
pessoas conseguem viver sem livros, sem faculdade”. É melhor agitar-se com a
servidão das grandes expectativas, que malogram o imediatismo do dia-a-dia. “Em
momentos assim me consideraria uma tola se pedisse mais...”.
Sylvia Plath
não deslinda sua delicada sensibilidade para captar a beleza de suas tendências
depressivas recorrentes e seus sonhos perturbadores: “Hoje pela manhã estou num
ponto baixo. Não dormi bem; insone, dei voltas ao redor da cama e tive pequenos
sonhos sórdidos e incoerentes. Acordei com a cabeça pesada, com a sensação de
que acabava de nada numa piscina de água quente contaminada”. Durante uma de
suas crises de insônia, abandona o quarto com a mente mergulhada em culpas
imaginárias buscando uma trégua no exterior. Seu mal-estar desaparece de uma
vez ao se encontrar com uma fresca noite de agosto. Acabara de chover, as
nuvens se movem lentamente por um céu com lua cheia, as gotas de água que caem
das árvores imitam o som das pisadas humanas, os grilos modulam seu doce canto.
Tudo parece perfeito, mas a beleza sempre esconde um anjo terrível. Exala a
“folhas mortas, a putrefação”. As sombras criadas pela lua e as luzes se
desagregam “como fantasmas azuis esquizofrênicos grotescos”. De volta ao seu
quarto, o suave toque nos lençóis limpos afasta as visões sobrecarregadas, mas
sua mente volta a naufragar na angústia: “Meu Deus, a vida é solidão, apesar de
todos os opiáceos, apesar do falso brilho das festas alegres sem propósito
algum, apesar dos falsos semblantes sorridentes que todos ostentamos”.
Sylvia admite
que vive com medo. Medo de si mesma. O medo é sua maneira de reagir ante os
estímulos. Tudo o que faz provoca-lhe uma comoção interior. Durante uma viagem
a Boston, se deita no carro e sente que as luzes da estrada e a música do rádio
se confundem, fazendo com que se afogue num trepidante redemoinho: “Tudo caiu
sobre mim como um penoso grito de dor”; Sylvia não quer renunciar a nada:
“Tenho que possuir algo. Quero parar tudo”.
Aos vinte
anos, fantasia com o êxtase sexual, mas se detém no limiar do prazer, frustrada
por uma sociedade que impõe severos limites ao desejo feminino. Uma educação
repressiva lhe impede gozar da liberdade que desfrutam os homens. Sempre se
pergunta se realmente deseja unir-se a outro ser. “Antes de entregar meu corpo
eu devo entregar os meus pensamentos, minha mente, meus sonhos”. Desdobrando-se
em dois, adverte para si: “E você não estava tendo nada disso”.
A escrita é
o centro de sua existência, mas lhe tortura a incerteza de não saber se
encontrará a palavra certa, a forma que objetive fielmente sua intimidade.
Deixar de escrever não é uma opção, pois significa interromper a relação com o
mundo. Um escritor que renuncia a criar é jogado à tempestade, sem outra
alternativa que desfazer-se numa solidão estéril e devastadora. Quando as
obrigações cotidianas a impedem de escrever, sente que anda às cegas: “Temo
pelo sentido e a finalidade de minha vida”. Nesses momentos, compreende que sua
vocação não é mero afã de reconhecimento, mas uma necessidade: “Escrever é
minha saúde”. Deve ganhar confiança em si mesma, se não quer ficar paralisada,
presa: “O pior inimigo da criatividade é a dúvida em suas próprias
capacidades”.
Embora
escreva um diário, sabe que suas páginas só constituem um desabafo: “Só escrevo
aqui quando não sei o que fazer, quando estou num beco sem saída. Nunca quando
estou feliz. Como hoje...” É uma confissão de novembro de 1959. Sylvia Plath
não concebe seu diário como uma relação com suas experiências, mas como a
história de sua vocação literária. Admite que não lhe interessa as pessoas, que
talvez por isso nunca tenha se sentido atraída pela narrativa. De fato, só
publicará um romance, A redoma de vidro,
que aparecerá no Reino Unido um mês antes de seu suicídio. Embora contenha
personagens, a trama só é um pretexto para abordar os obstáculos de uma vocação
literária fustigada pela neurose. Sylvia sabe que sua realização como ser
humano só pode se materializar no terreno da poesia. Não escava em seus
conflitos por narcisismo, mas para escapar da morte e aceder à beleza. Deseja
romper sua “redoma de vidro”, sair de si mesma, amar e ser amada, mas reconhece
que enfrentar um novo dia lhe produz terror: “Não me acordo pela manhã porque
quero voltar à prisão materna”. Não esconde que pode perder o controle de suas
atitudes: “Existe em mim uma violência que chega a vermelho vivo. Posso tirar a
vida – agora sei – ou inclusive matar outro”.
Sua meta é a
poesia, mas a prosa lhe ajuda a continuar, particularmente quando o alento lírico
rareia ou decai. “A prosa me sustenta. Posso fragmentá-la, resolvê-la,
reescrevê-la, retomá-la a qualquer momento: seus ritmos são mais descansados,
mais variáveis, a prosa não morre logo. [...] com a
prosa, sempre resta alguma esperança”. Isso não significa que renuncie ser
poeta. Tanto que não economiza esforços e não retrocede ante nenhum limite: “Escrevo
roçando a superfície de meu cérebro”. Não considera haver visitado todos os
infernos, mas constata que conhece bem seu inferno pessoal, repleto de
vertigens e desenganos. Admira Virginia Woolf, mas também reconhece que sua
obra lhe produz arrepios. Sabe que a escritora luta contra os mesmos demônios. Pergunta-se se é inevitável sofrer para escrever, se sua melancolia favorecerá a
inspiração, a profundidade e objetividade. Lamenta que se eduque as crianças com
a expectativa da felicidade, quando isso geralmente é excepcional. Sylvia escreveu:
“Morrer é uma arte, como tudo mais. Que eu pratico surpreendentemente bem”. Há uma fúria
adolescente nestas palavras. Seus Diários
revelam que queria viver, escrever, amar. A morte de Sylvia não acrescenta nada
à sua obra. A poesia perdeu e muito com sua prematura desaparição. É impossível não
pensar com tristeza nos poemas que ela deixou de escrever.
Pouco antes
de morrer, Ted Hughes adotou as medidas necessárias para publicar os diários completos
de Sylvia, revelando os cadernos que havia guardado no interesse de proteger
seus filhos e superar um drama que ele havia percebido guardar naqueles escritos.
Os papéis que no final vieram a lume tem acréscimos, mas não se altera nada do
essencial. Sylvia relata sua vida como mulher e escritora, como aluna,
professora, companheira e mãe, sem omitir suas crises depressivas, os quadros
de euforia e a terapia com eletrochoque que lhe reduz a ansiedade mas leva sua
mente a colapsos de semanas. As vezes, reconstrói seus sonhos. Numa das experiências
oníricas se encontra com Marilyn Monroe, tão instável quanto ela: “Convidava-me
para visitá-la durante as férias de Natal e me desejava uma nova vida
promissora e florescente”. Trata-se de um sonho de 4 de outubro de 1959. Sylvia
se suicida no dia 11 de fevereiro de 1963. Marilyn no dia 5 de agosto de 1962.
Anne Sexton, que seguiu o mesmo caminho no dia 4 de outubro de 1974, compôs um réquiem
para sua amiga Sylvia que também poderia servir para a atriz: “e sei
de tua morte pelas notícias, / um gosto espantoso como sal. / [...] que é tua
morte / se não uma velha pertinência, / um luar que caiu / de um de teus
poemas? / [...] Oh, duquesa divertida! / Oh, coisinha loira!” Os poetas nunca
deveriam se matar. Talvez não saibam, mas seu canto interrompido deixa um inconsolável
rastro de orfandade.
* Todas as
traduções apresentadas neste texto são livres; o próprio texto é uma tradução
de “Los diarios de Sylvia Plath” apresentado no El cultural
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