Nem autor nem autoridade
Por Luis Magriyà
Ao longo do
século XIX, o gênero romanesco foi estabelecendo uma aliança entre autor e
autoridade que, já propiciada pela etimologia, passou pelas previsíveis fases
de confiança, presunção, ceticismo e burla sem nunca renunciar um fim; é curioso,
por isso, que agora já topicamente chamamos “o controle férreo do narrador”. De
fato, tais fases não foram tão sucessivas como simultâneas, porque os romancistas,
conscientes de ter o “controle”, se permitiam alternar, até numa mesma obra, o crédito
com o descrédito, a satisfação com a frustração, a bravata com o ridículo. Como
nada deles escapa, embora de fato se escapasse, podiam fazer ambiciosas
histórias sérias como Balzac ou Zola, Tolstói ou Dostoiévski, engraçadas como
Thackeray ou Dickens (e Dostoiévski também), ou delicadíssimas como
Turguêniev... ou delicadamente cruéis como Flaubert.
A
consciência de que sim, pelo amor de Deus, sempre há algo que escapa talvez
tenha sido responsável pelo caso de Tchekhov não se dedicar nunca ao romance
mas ao conto e a novela e o caso de algumas das experiências mais inusitadas
sobre a limitação do poder e da consciência do narrador (Henry James, Herman
Melville) se concretizassem também, mais que em romances, em novelas. Mas,
ainda assim, nesses reduzidos rincões, pequenos, onde os narradores podiam se
perder e induzir o leitor a duvidar de sua autoridade, subsistia a dúvida de se
não haviam encontrado, nas estreitezas, justamente o lugar onde eram mais
poderosos.
Em 1925, num
romance de mais de 400 páginas (ainda por cima, um meta-romance), Os moedeiros falsos, André Gide se
apresentava como um autor / narrador que “se pergunta com curiosidade aonde a
narrativa vai levá-lo” mas ao mesmo tempo se regozijava com um capítulo
intitulado “O autor julga suas personagens”. No fim de tantas transparências,
descobriremos que o meta-romance finalmente resolvia (sim, resolvia) com a maior
seriedade e compromisso o dilema entre autor e autoridade.
Toda a obra
publicada de Kazuo Ishiguro, exceto o último romance, O gigante enterrado, está escrita numa primeira pessoa que desde o
início parece não acreditar nem ela mesma no que diz. No primeiro capítulo do seu
romance mais famoso, Os vestígios do dia,
notemos passagens como esta: “Ora, sempre achei que havia viajado muito pouco,
tolhido como sou por minhas responsabilidades na casa, mas evidentemente, ao
longo do tempo, a gente faz diversas excursões por uma ou outra razão
profissional, e, ao que parecia, eu estava muito mais familiarizado com aquelas
localidades vizinhas do que imaginava. Pois, como estava dizendo, ao rodar ao
sol na direção da divisa de Berkshire, continuei me surpreendendo com quanto a
paisagem me era familiar”; e esta: “Mas então a paisagem acabou ficando
irreconhecível, e entendi que havia ultrapassado todos os limites anteriores.
Já ouvi pessoas descreverem o momento em que o barco abre as velas, o momento
em que finalmente se perde a visão da terra. Imagino que a experiência de
inquietação misturada com alegria que sempre acompanha a descrição desse
momento seja muito semelhante ao que senti no Ford, quando a paisagem em torno
ficou estranha para mim.” Tal conjunção de incerteza e probabilidade é
característica da narrativa de seu autor, que parece totalmente confiada a um
indivíduo tão cuidadoso de sua capacidade de controle como advertida ou
inadvertidamente sujeito ao incontrolável. Normalmente sua vaidade se mostra
contra os fatos, embora nunca reconheça ou tarde muitíssimo a reconhecer a catástrofe.
Os romancistas do século XIX podiam tratar com sarcasmo ou com timidez o eu;
Ishiguro parte de um eu que vê de fora mais que (em patéticos momentos de
lucidez) de dentro não é nada.
Esta qualidade
terrível não se expressa, por sua vez, com os comuns jogos neorromânticos do século
XX e ainda do XXI (fanfarronice, languidez, jogos infantis), mas com uma
extrema e não menos desesperante formalidade. Uma formalidade que resulta algo
extemporânea mas que se entende de imediato quando nas epígrafes ou nas
primeiras linhas dos romances reluz a palavra Japão (nos dos primeiros) ou mais
sinistro ainda “Inglaterra” (em todos os demais). Os narradores de Ishiguro
estão educados na virtude cívica de não dizer e é extraordinário a tomada de partido
que o autor, a nível estilístico e estrutural e também com moral, retira dessa
repressão que obriga continuamente à digressão, ao circunlóquio, à correção, a
todas as estratégias concebidas para não ofender a ninguém – nem sequer a ele
próprio – e facilitar a coesão social.
Por um lado,
afeta a construção temporal da narração, conduzida com incrível virtuosismo
através de contínuas interrupções, adiantamentos, antecipações, retrocessos, como
se a linearidade – e isso é uma maliciosa e bonita inclinação um dos tabus da
pós-modernidade – fosse uma grosseria. Por outro, se aplica ao estilo, à mesma
frase, em que todo ruído é excesso; as metáforas e os adjetivos se evitam
porque são de mau gosto e o plano acabado, ultra-prosaico, clonado e até impresso se revela através de vários
usos de atenuantes. Joyce Carol Oates
disse que Não me abandone jamais foi composto
por “um Kafka medicado com Amplictil”; talvez não tenha visto o esplêndido alcance
que, para todos os efeitos, especialmente na destruição do eu, de sua autoridade
e de sua linguagem, podia ter algo de neuroléptico.
A justificativa
da Academia sueca para outorgar o Prêmio Nobel a Ishiguro não diferem muito da
que fez, precisamente sobre Não me
abandone jamais, o arcebispo de Canterbury em julho de 1996: “oferece uma
potente descrição das recentes mudanças culturais, e em particular da crescente
sensação de fragmentação e perda da comunidade que hoje se experimenta em muitas
partes do mundo”. Não faltam, portanto, em Ishiguro esses grandes temas que
tanto impressionam o Ocidente.
Mas,
importante é que se valoriza agora, como já aconteceu com Patrick Modiano, a estranha e
espinhosa forma com que esses temas desoladores se articulam em sua obra, tão
alheia à fastidiosa técnica do excesso lexical, à sentença de corte viril, aos
brilhos do ingênuo e da ironia, aos acadêmicos voos em torno de uma mesma
obsessão, os usos excessivos de recursos ficcionais e as obviedades pronunciadas
com voz cavernosa, preferivelmente diante de uma pintura da história, como se
orgulham os escritores consagrados desde há décadas por esse gênero conhecido como
“prosa de Prêmio Nobel”.
Ligações a esta post:
* Este texto é uma tradução de "Ni autor ni autoridad", publicado no jornal El País
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