Não adianta morrer, de Francisco Maciel

Por Pedro Fernandes



Este título de Francisco de Maciel, Não adianta morrer, é parte do verso de um poema dentre os mais conhecidos de Carlos Drummond de Andrade, “Os ombros suportam o mundo”. A confirmação dessa realização não é adivinhada pelo leitor porque revelada pelo próprio autor numa das epígrafes que abre o romance: “Alguns, achando bárbaro o espetáculo, / prefeririam (os delicados) morrer. / Chegou o tempo em que não adianta morrer”. As duas obras mantêm relações muito além de um verso que se transforma em título. Ambas veem o mundo entre o tom desencantado da resignação – de que já não sobra mais o que ser feito pela comunidade humana uma vez que esta parece haver escolhido uma vereda estreita e escura cuja saída ficou perdida e existir é agora só um tateio nas trevas – e o tom irônico, mordaz, que olha com a ideia do rebaixamento proposital da espécie, como se buscasse ser o motivo de reinventar as percepções do homem sobre o homem.

Entre uma via e outra se confirma a tese segundo a qual não se diferencia mais o estar vivo e estar morto, afinal, aquilo que nos colocava em possibilidade de estar vivo, a ação coletiva, é agora apenas o influxo de uns sobre outros; um levante massacrante da era do indivíduo iniciada desde o advento da razão e levado ao extremo com a consolidação de uma hegemonia do capital. Some nesse processo a mercantilização mesmo dos nossos sentidos, gostos e gestos, da própria existência; e, claro, nossa conformação quase religiosa, franciscaníssima, que nos faz passíveis às silenciosas imposições dos tais modelos predicados pelos donos do poder.

A transformação de tudo em coisa e a inação dos homens provam, portanto, uma geração que dentre mortos e vivos em nada se difere e em tudo se parece. Assim, se noutro tempo, morrer poderia significar algum gesto de heroísmo ou mesmo a possibilidade de redenção para um mundo de sentido, agora é só mais um gesto tornado produto entre produtos. É inclusive com uma cena de perseguição e fria morte, além das diversas recorrentes ao longo do romance, que Francisco Maciel expõe esse mundo desfigurado por uma barbárie silenciosa e imperativa nos subúrbios do mundo. Entre o que fomos e o que nos tornamos o que mudou foi a presença constante, não total, dos disfarces em torno da violência, da criação de uma espécie de falso escudo que nos mostra a sensação de que esse contexto atinge uns e a outros o mal é só um predicado visível pela televisão.

É possível que outros leitores e mesmo outras leituras mais atentas possam encontrar no rico universo de tragédias engendrado por Francisco Maciel em Não adianta morrer outras camadas que contradigam esta constatação – mas a primeira que fica é: não há nenhuma saída para atual conjuntura e existir continua sendo o mais raro dos milagres. Mesmo quando apontaria para outra saída – como em “A irmã mais nova de lourinho” em que apesar da inconstante relação entre irmãos parece haver certa unidade entre os da família do narrador – o que se passa é a violência, a loucura e danação dos indivíduos desde que a irmã mais nova dessa família só de irmãos homens é estuprada por quatro rapazes do condomínio onde moram. E o rosário de crueldades se esparrama para todos os lados. Mas, nem tudo é desespero; vale de degredados.

Francisco Maciel assume a posição de um atento cronista que transita entre o relato objetivo dos acontecimentos e a fabulação encantatória que muitas vezes descamba para o tom lírico e um realismo quase maravilhoso. Essa variabilidade não está apenas na maneira como se assume a escrita. Não adianta morrer se constrói de um fio narrativo muito frágil. Embora o leitor encontre um tema que une as situações evocadas, embora as situações de um capítulo por vezes desaguem noutro capítulo, não será possível encontrar uma unidade narrativa. Caleidoscópico, o único barbante com que são cerzidas as histórias é composto pela recorrência do mesmo grupo de personagens. No mais, parecerá ser esta uma antologia de contos ou de crônicas, uma vez que o tom de algumas histórias assume o caráter de um comentário sobre uma situação ou mesmo a situação evocada é espécie de força para que seu narrador estabeleça o entendimento do leitor acerca de algum tema. A sensação de continuidade, entretanto, ainda não aparece dada na recorrência de determinadas personagens, nem na de situações – mas na ideia de estamos lendo sempre a mesma história: uma continuidade fundada na descontinuidade.

Esse procedimento criativo de Francisco Maciel é produto de uma percepção da realidade enquanto sobreposição de situações em grande parte assemelhadas porque essa ideia de uma vida mais rica e interessante que outra pode até ser verdade, mas de que tudo seja regido por uma invisível linha horizontal que estabelece relações é apenas uma ilusão que domina nossos sentidos da percepção. Nesse sentido, a obra dinamita o preceito fundamental do tom realista: a habilidosa organicidade de elementos que favorecem ao leitor a ilusão verdadeira de que o narrado encontra um correspondente na realidade empírica. Isso porque não apenas em algumas circunstâncias o narrador investe no tom fabulatório, como não encontramos essa unidade capaz de propiciar uma compreensão organizada da realidade.

Fuga dos protocolos tradicionais? Em parte, sim. Em parte, não. Isso porque o que concebemos como unidade do real, repetimos, é só uma impressão construída a partir de uma organização linear estabelecida pelos sentidos. Afinal, quantas histórias vivemos da hora quando acordamos – e mesmo quando dormimos – e vamos dormir? Quais delas são produtos de situações passadas ou presentes ou futuras? Quantas outras nascem casualmente porque decidimos certa vez tomar uma condução diferente ou outro caminho de volta para casa? Com quais delas passamos a desenvolver uma relação tão estreita que é bem capaz de mudar o que havíamos elegido traçar para ser nossa história? Ou ainda, quantas fabulamos enquanto lemos este simples texto? Assim, essa fuga dos protocolos tradicionais se constitui, na verdade, uma tentativa mais coerente de perceber a realidade. Exterior e interior. O imenso jogo que é existir é brilhantemente capturado em Não adianta morrer.

Os tipos, as amizades estreitas, as que se desfazem, refazem, ou não voltam a se fazer, os problemas que esses tipos carregam, os que os vitimam, as solidões, a juventude, a velhice, a repetição das diversas formas de violência contra o corpo, os gostos, os modos de ser, os preconceitos, as transformações espaciotemporais, dos costumes, a doença, as tristezas, a loucura, o suicídio, a vingança, os crimes de toda sorte em nome do bem-estar de poucos, os status, a exploração e dilapidação dos patrimônios culturais e naturais, a beleza, a feiura, as imaginações, os desejos realizados, reprimidos e impossíveis de realizar – enfim, nada parece escapar do olhar atento desse cronista cujo produto final que oferece ao leitor é um rico painel sobre a comunidade humana integralmente presa à condição do capital. Se tudo capta, nada sobra.

Francisco Maciel encontra o raro equilíbrio entre dizer muito sem que para isso precise gastar todo o dicionário. Interessa-se, por reintroduzir expressões que há muito não estão comuns em determinados círculos, outras que são propositalmente forjadas de acordo com a situação evocada, outras ainda pegadas da língua do povo, reaproximando o romance daquilo que foi sua tarefa, aliás não exclusiva do discurso romanesco, mas cara desde sempre à literatura – o de ser bomba de oxigenação da linguagem.

Herdeiro do chamado realismo urbano brasileiro, o romance de Francisco Maciel alberga não somente a relação estreita com a objetividade e a fragmentação de ares da crônica ou do conto, formas narrativas muito próximas ao romance, mas interessa-se pelas presenças de outras criações variamente distintas tal como o teatro, a ópera, o poema – exercícios literários extremamente enriquecedores para o romance. Também se interessa pelas diversas atmosferas distintas do realismo, quais seja, a do suspense, a lírica, a do realismo maravilhoso pela presença de tons oníricos a Edgar Allan Poe, a Franz Kafka, a Herman Broch num claro flerte que justapõe a atmosfera drummondiana de “A máquina do mundo” aos cenários apocalípticos das distopias.

Para cumprir o círculo do texto, voltemos ao poema de Carlos Drummond de Andrade; as coisas em Não adianta morrer aparecem assustadoramente assentadas, despidas de qualquer espanto – mesmo as elucubrações oníricas; “tempo em que não se diz mais: meu Deus. / Tempo de absoluta depuração. / Tempo em que não se diz mais: meu amor. / Porque o amor resultou inútil. / E os olhos não choram. / E as mãos tecem apenas o rude trabalho. / E o coração está seco”.

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